sábado, 1 de janeiro de 2011

POEMAS DO ANO NOVO




FAZEM HOJE 91 ANOS

1.

A antiga canção,

Amor, renova agora.

Na noite, olhos fechados, tua voz

Dói-me no coração

Por tudo quanto chora.

Cantas ao pé de mim, e eu ‘stou a sós.



Não, a voz não é a tua

Que se ergue e acorda em mim

Murmúrios de saudade e de inconstância,

O luar não vem da lua

Mas do meu ser afim

Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.



Não, não é o teu canto

Que como um astro ao fundo

Da noite intensa do meu coração

Chama em vão, chama tanto…

Quem sou não sei… e o mundo?...

Renova, amor, a lembrada canção.



Cantas mais que por ti,

Tua voz é uma ponte

Por onde passa, inúmero, um segredo

Que nunca recebi –

Murmúrio do horizonte,

Água na noite, morte que vem cedo.



Assim, cantas sem que existas.

Ao fim do luar pressinto

Melhores sonhos que estes da ilusão.


2.

Longe de mim em mim existo

À parte de quem sou

A sombra e o movimento que consinto.


3.

Pudesse eu como o luar

Sem consciência encher

A noite e as almas inundar

A vida de não-pertencer.


FERNANDO PESSOA, 1 DE JANEIRO DE 1920


FAZEM HOJE 90 ANOS


1.


Ah, sempre no curso leve do tempo pesado

A mesma forma de viver!

O mesmo modo inútil de ser enganado

Por crer ou por descrer!



Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,

A mesma desilusão

Do mesmo olhar lançado do alto da torre

Sobre o plaino vão!


Saudade, ‘sperança – muda o nome, fica

Só à alma vã

No pobreza de hoje a consciência de ser rica

Ontem ou amanhã.


Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante

Do tempo sem fim

O mesmo momento voltando improfícuo e constante

Do que quero em mim!



Sempre, ou no dia ou na noite, sempre – seja

Diverso – o mesmo olhar de desilusão

Lançado do alto da torre da ruína da igreja

Sobre o plaino vão!


2.


Cansa ser, sentir dói, pensar destruí

Alheio a nós, em nós e fora,

Rui a hora, e tudo nela rui.

Inutilmente a alma chora.


De que serve? O que é que tem de servir?

Pálido esboço leve

Do sol de Inverno sobre meu leito a sorrir…

Vago sussurro breve



Das pequenas vozes com que a manhã acorda,

Da fútil promessa do dia,

Morta ao nascer, na ’sperança longínqua e absurda

Em que a alma se fia.


FERNANDO PESSOA, 1 DE JANEIRO DE 1921

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