FAZEM HOJE 91 ANOS
1.
A antiga canção,
Amor, renova agora.
Na noite, olhos fechados, tua voz
Dói-me no coração
Por tudo quanto chora.
Cantas ao pé de mim, e eu ‘stou a sós.
Não, a voz não é a tua
Que se ergue e acorda em mim
Murmúrios de saudade e de inconstância,
O luar não vem da lua
Mas do meu ser afim
Ao mito, à mágoa, à ausência e à distância.
Não, não é o teu canto
Que como um astro ao fundo
Da noite intensa do meu coração
Chama em vão, chama tanto…
Quem sou não sei… e o mundo?...
Renova, amor, a lembrada canção.
Cantas mais que por ti,
Tua voz é uma ponte
Por onde passa, inúmero, um segredo
Que nunca recebi –
Murmúrio do horizonte,
Água na noite, morte que vem cedo.
Assim, cantas sem que existas.
Ao fim do luar pressinto
Melhores sonhos que estes da ilusão.
2.
Longe de mim em mim existo
À parte de quem sou
A sombra e o movimento que consinto.
3.
Pudesse eu como o luar
Sem consciência encher
A noite e as almas inundar
A vida de não-pertencer.
FERNANDO PESSOA, 1 DE JANEIRO DE 1920
FAZEM HOJE 90 ANOS
1.
Ah, sempre no curso leve do tempo pesado
A mesma forma de viver!
O mesmo modo inútil de ser enganado
Por crer ou por descrer!
Sempre, na fuga ligeira da hora que morre,
A mesma desilusão
Do mesmo olhar lançado do alto da torre
Sobre o plaino vão!
Saudade, ‘sperança – muda o nome, fica
Só à alma vã
No pobreza de hoje a consciência de ser rica
Ontem ou amanhã.
Sempre, sempre, no lapso indeciso e constante
Do tempo sem fim
O mesmo momento voltando improfícuo e constante
Do que quero em mim!
Sempre, ou no dia ou na noite, sempre – seja
Diverso – o mesmo olhar de desilusão
Lançado do alto da torre da ruína da igreja
Sobre o plaino vão!
2.
Cansa ser, sentir dói, pensar destruí
Alheio a nós, em nós e fora,
Rui a hora, e tudo nela rui.
Inutilmente a alma chora.
De que serve? O que é que tem de servir?
Pálido esboço leve
Do sol de Inverno sobre meu leito a sorrir…
Vago sussurro breve
Das pequenas vozes com que a manhã acorda,
Da fútil promessa do dia,
Morta ao nascer, na ’sperança longínqua e absurda
Em que a alma se fia.
FERNANDO PESSOA, 1 DE JANEIRO DE 1921
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