quinta-feira, 31 de outubro de 2019

FAZ HOJE 92 ANOS





Ó curva do horizonte, quem te passa
Passa da vista, não de ser ou de 'star.
Assim talvez a anónima desgraça
Chamada morte, saiba não mutar.

Na curva da consciência, se nos perde
A visão do que amamos, não o ser...


FERNANDO PESSOA, 31 DE OUTUBRO DE 1927


quarta-feira, 30 de outubro de 2019

FAZ HOJE 88 ANOS





Sim, não tenho razão...
Deixa-me distrair-me do argumento mental,
Não tenho razão, está bem, é uma razão como outra qualquer...

Se nem creio? Nem sei.
Creio que sim. Mas repito.
O amor deve ser constante?
Sim, deve ser constante,
Só no amor ,é claro.
Digo ainda outra vez...

Que embrulhada a gente arranja na vida!
Sim, está bem, amanhã trago o dinheiro.

Ó grande sol, tu não sabes nada disto,
Alegria que se não pode fitar no azul sereno inatingível.

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE OUTUBRO DE 1931


terça-feira, 29 de outubro de 2019

FAZ HOJE 99 ANOS







Eu no tempo não choro que me leve
A juventude, o já encanecer
A cabeça que pouco ainda esteve
Sob o sol alto e a tarde a arrefecer.

Nem choro que não me ames, que faleça
O amor que vi em ti, que também haja
Uma tarde do amar, que desfaleça
E a noite fique, (...)

Mais que tudo choro já não te amar,
Sim, choro a tragédia de não ser o mesmo na alma,
De te ser infiel sem infidelidade,
De me ter esquecido de ti sem propriamente te aborrecer.

Não é o tempo ido em que te amei que choro.
Choro não te amar já por isso ser natural.
Choro ter-te esquecido, choro não me poder lembrar
Com saudade do tempo em que te amei.

Isso é que choro, sim, com as verdadeiras lágrimas
Que contêm em si os piores mistérios -
A morte essencial das cousas,
O acabar das almas, mais grave que o dos corpos,
O abismo onde a única esperança é poder haver Deus
E um outro sentido desconhecido a tudo que se teve e se foi
Um outro lado, nem côncavo nem convexo à curva da vida.


FERNANDO PESSOA, 29 DE OUTUBRO DE 1920


segunda-feira, 28 de outubro de 2019

FAZ HOJE 95 ANOS





Quando nos iremos, ah quando iremos de aqui?
Quando, do meio destes amigos que não conheço,
Do meio destas maneiras de compreender que não compreendo,
Do meio destas vontades involuntariamente
Tão contrárias à minha, tão contrárias a mim?!

Ah, navio que partes, que tens por fim partir,
Navio com velas, navio com máquina, navio com remos,
Navio com qualquer coisa com que nos afastemos,
Navio de qualquer modo deixando atrás esta costa,
Esta, a sempre esta costa, esta sempre esta gente,
Só válida à emoção através da saudade futura,
Da saudade, esquecimento que se lembra,
Da saudade, engano que se deslembra da realidade,
Da saudade, remota sensação do incerto
Vago misterioso antepassado que fomos,
Renovação da vida antenatal, (...)
Absurdamente surgindo, estática e constelada
Do vácuo dinâmico do mundo.

Que eu sou daqueles que sofrem sem sofrimento,
Que têm realidade na alma,
Que não são mitos, são a realidade
Que não têm alegria do corpo ou da alma, daqueles
Que vivem pedindo esmola com a vontade de perdê-la...
Eu quero partir, como quem exemplarmente parte.
Para que hei-de estar onde estou se é só onde estou?
Para que hei-de ser sempre eu se eu não posso ser quem sou,
Mas isto tudo é como uma realidade longínqua
Daqueles que não partiram ou daqueles
Cujo lar é nenhum e de memória
Quando, navio (...), deixaremos o lar que não temos?

Navio, navio, vem!
Ó lugre, corveta, barca, vapor de carga, paquete,
Navio carvoeiro, veleiro de mastro, carregado de madeira,
Navio de passageiros de todas as nações diversas,
Navio todos os navios,
Navio possibilidade de ir em todos navios
Indefinidamente, incoerentemente,
À busca de nada, À busca de não buscar,
À busca só de partir.
À busca só de não ser
À primeira morte possível ainda em vida -
O afastamento, a distância, a separar-nos de nós.

Porque é sempre de nós que nos separamos quando deixamos alguém,
É sempre de nós que partimos quando deixamos a costa,
A casa, o campo, a margem, a gare, ou o cais.
Tudo que vimos é nós, vivemos só nós o mundo.
Não temos senão nós dentro e fora de nós,
Não temos nada, não temos nada, não temos nada...
Só a sombra fugaz no chão da caverna no depósito de almas,
Só a brisa breve feita pela passagem da consciência,
Só a gota de água na folha seca, inútil orvalho,
Só a roda multicolor girando branca aos olhos
Do fantasma inteiro que somos,
Lágrima das pálpebras descidas
Do olhar velado divino.

Navio quem quer que seja, não quero ser eu! Afasta-me
A remo ou vela ou máquina, afasta-me de mim!
Vá. Veja eu o abismo abrir-se entre mim e a costa,
O rio entre mim e a margem.
O mar entre mim e o cais,
A morte, a morte, a morte, entre mim e a vida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE OUTUBRO DE 1924