Na véspera de não partir nunca
Ao menos não há que arrumar malas
Nem que fazer planos em papel
Com acompanhamento involuntário de
esquecimentos,
Para o partir ainda livre do dia seguinte.
Não há que fazer nada
Na véspera de não partir nunca.
Grande sossego de já não haver sequer de que
ter sossego!
Grande tranquilidade a que nem sabe encolher
ombros
Por isto tudo, ter pensado o tudo
É o ter chegado deliberadamente a nada.
Grande alegria de não ter precisão de ser
alegre,
Como uma oportunidade virada do avesso.
Ah! quantas vezes vivo
A vida vegetativa do pensamento!
Todos os dias sine linea
Sossego, sim, sossego...
Grande tranquilidade...
Que repouso, depois de tantas viagens,
físicas e psíquicas!
Que prazer olhar para as malas fitando como
para nada!
Dormita, alma, dormita!
Aproveita, dormita!
Dormita!
É pouco o tempo que tens! Dormita!
É a véspera de não partir nunca!
ÁLVARO DE CAMPOS, 27 DE SETEMBRO DE 1934