segunda-feira, 30 de abril de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS


MISSA NEGRA




O rasto do sol perdido morreu
No céu 'scuro como uma capa...
Minha alma é um cardeal ateu
Que em breve vai ser feito Papa...


Como um crente estranho, na alma luz-me só isto,
(E um fogo de horror a alma lhe esfria)
Cuspir na face de Cristo
E violar a Virgem Maria...


E apraz-lhe e apavora o crente ateu
Isto com um fogo e horror carnal  -
Fazê-lo e depois ver que é real o Céu
E que o Inferno é verdadeiro e real!




FERNANDO PESSOA, 30 DE ABRIL DE 1913

domingo, 29 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS




Às vezes medito,
Às vezes medito e medito mais fundo, e ainda mais fundo
E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície,
E todo o universo é um mar de caras de olhos abertos para mim.
Cada coisa, - o candeeiro da esquina, uma pedra, uma árvore -
É um olhar que me fita de um abismo incompreensível,
E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.
Ah, haver coisas!
Ah, haver seres!
Ah, haver maneira de haver seres
De haver haver
De haver como haver haver,
De haver...
Ah, existir o fenómeno abstracto de existir,
Haver consciência e realidade,
O que quer que isto seja...
Como posso eu exprimir o horror que tudo isto me causa?
Como posso eu dizer como é isto para se sentir?
Qual é alma de haver ser?

Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver...


ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE ABRIL DE 1928

sábado, 28 de abril de 2012

FAZ HOJE 91 ANOS




Com a brisa da tarde
Desce um vasto sossego
Sob a triste cidade
Fito a cidade e sou cego
Para mais que um todo em luz.
Sinto como uma cruz
Que a minha alma trouxesse.
Um vasto sossego desce.


FERNANDO PESSOA, 28 DE ABRIL DE 1921

sexta-feira, 27 de abril de 2012

FAZ HOJE 96 ANOS


Movem nossos braços outros braços que os nossos,
Falam na nossa boca lábios que não nos pertencem.
Não somos agentes; somos acções - os destroços
De gestos apenas metade neste mundo em que a vida
Passa como um cortejo em que os olhos de Deus pensem
E entre ele e o cortejo pensado há quem age esta lida.


Somos cartas mandadas de espírito para espírito na treva,
Quebrada a ponte, nós somos a ponte, e isso é falso...
Farrapos das intenções dos anjos que a treva leva
E ao alto de cada alma nossa ergue-se um cadafalso...


Tudo isto se passa entre Deus e o ser que não temos
E no intervalo chora o som da ida nos remos.




FERNANDO PESSOA, 27 DE ABRIL DE 1916

quinta-feira, 26 de abril de 2012

FAZ HOJE 86 ANOS



Se te queres matar, por que  não te queres matar?

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria... 
Ah, se ousares, ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo policromo do nosso dinamismo, sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes, como eu, a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outro, sobretudo a morte.
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notícias dos  jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro um alívio em todos
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas aniversariante:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada. Absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti,
Duas vezes no ano suspiram ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
Se és assim, ó mito,  não serão os outros  assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciências da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das cousas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


ÁLVARO DE CAMPOS, 26 DE ABRIL DE 1926

quarta-feira, 25 de abril de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS


O Inverno passa, tardando
Em passar.
O ar, asperamente brando,
Faz 'sperar.


Se tudo quanto eu desejo
Fosse meu,
Nunca teria um ensejo
De ser eu.


O Inverno passa, mas dura.




FERNANDO PESSOA, 25 DE ABRIL DE 1931

terça-feira, 24 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS






O sonho que se opôs a que eu vivesse
A 'sperança que não quis que eu acordasse,
O amor fictício que nunca era esse,
A glória eterna que velava a face...


Por onde eu, louco sem loucura, passe
Esse conjunto absurdo a teia tece...
E, por mais que o Destino me ajudasse,
Quero crer que o Deus dele me esquecesse.


Por isso sou o deportado, e a ilha
Com que, de natural e vegetável
A imaginação se maravilha...


Nem frutos tem nem água que é potável...
Do barco naufragado vê-se a quilha...
(...)




FERNANDO PESSOA, 24 DE ABRIL DE 1928

segunda-feira, 23 de abril de 2012

FAZ HOJE 89 ANOS



Não basta abrir a janela
Para ver os campos e o rio.
Não é bastante não ser cego
Para ver as árvores e as flores.
É preciso não ter filosofia nenhuma.
Com filosofia não há árvores: há ideias apenas.
Há só cada um de nós, como uma cave.
Há só uma janela fechada, e o mundo lá fora;
E um sonho do que se poderia ver se a janela se abrisse,
Que nunca é o que se vê quando se abre a janela.


ALBERTO CAEIRO, ABRIL DE 1923 

domingo, 22 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS



Passava eu na estrada pensando impreciso,
Triste à minha moda.
Cruzou um garoto, olhou-me, e um sorriso
Agradou-lhe a cara toda.


Bem sei, bem sei: sorriria assim
A um outro qualquer.
Mas então sorriu assim para mim...
Que mais posso eu qu'rer?


Não sou nesta vida nem eu nem ninguém,
Vou sem ter prazo...
Que ao menos na estrada, me sorria alguém
Ainda que por acaso.


FERNANDO PESSOA, 22 DE ABRIL DE 1928





sábado, 21 de abril de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS




Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento.
Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.
Adormeço sem dormir, ao relento da vida.

É inútil dizer-me que as acções têm consequências.
É inútil eu saber que as acções usam consequências.
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Antes do dia de névoa não chega coisa nenhuma.

Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Nem vem com a tarde oportunidade nenhuma.


ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE ABRIL DE 1930

sexta-feira, 20 de abril de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS



Não tenho pressa. Pressa de quê?
Não têm pressa o sol e a lua: estão certos.
Ter pressa é crer que a gente passa adiante das pernas,
Ou que, dando um pulo, salta por cima da sombra.
Não: não sei ter pressa.
Se estendo o braço, chego exactamente onde o meu braço chega -
Nem um centímetro mais longe.
Toco só onde toco, não onde penso.
Só me posso sentar onde estou.
E isto faz rir como todas as verdades  absolutamente verdadeiras verdades,
Mas o que faz rir a valer é que nós pensamos sempre noutra cousa,
E estamos fora dela porque estamos aqui.


ALBERTO CAEIRO, 20 DE ABRIL DE 1919

quinta-feira, 19 de abril de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS


A paz do dia, a luz que faz a paz, -
Tudo isso faz
Que eu um momento esqueça quem me fiz -
O poeta abstracto e infeliz,
Que escreve para dar a entender
Que não tem nada que dizer.




FERNANDO PESSOA, 19 DE ABRIL DE 1935

quarta-feira, 18 de abril de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS




Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.


Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade no meio.


Girassol do falso agrado,
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo




FERNANDO PESSOA. 18 DE ABRIL DE 1931

terça-feira, 17 de abril de 2012

FAZ ESTE MÊS 78 ANOS


Na paz da noite, cheia de tanto durar,
Dos livros que li
Que li a sonhar,a sentir, a mal meditar,
Nem vendo que os vi,


Ergo a cabeça subitamente estonteada
Do lido e do vão
De ler e vejo que não há paz na noite acabada -
Não no meu coração.


Criança, era outro...Naquele em que me tornei,
Cresci e esqueci.
Tenho de meu agora um silêncio, uma lei.
Ganhei ou perdi?




FERNANDO PESSOA, ABRIL DE 1934

segunda-feira, 16 de abril de 2012

FAZ HOJE 98 ANOS




Do meu velho solar
Abriram-se as portas
De par em par...


Que razão havia
Para que se abrissem?
Nada lá existia...


Não havia nada...
Não havia mesmo 
A memória errada


Duns antepassados...
Pobre solar velho...
E a vida?... Aos bocados...




FERNANDO PESSOA, 16 DE ABRIL, DE 1914

domingo, 15 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS


Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior  sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como o pó de todos os ventos,
Ergo as mão para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu,nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, o meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada,
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas por que é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter alma com que a ver clara?
Por que me chamaste para o alto do montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela,
Como quem está carregado de ouro no deserto,
Ou canta com voz divina entre as ruínas?
Por que é me acordaste para a sensação e a nova alma
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono, 
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano  é dormir.


ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE ABRIL DE 1928

sábado, 14 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS


ADIAMENTO


Depois de amanhã. sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã.
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não,  hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar  muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidade reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por edital...
Mas por um edital de amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...


O porvir...
Sim, o porvir...


ÁLVARO DE CAMPOS 14 DE ABRIL DE 1928

sexta-feira, 13 de abril de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS


AURÉOLA




Em torno à minha fronte que descora
Que Deus beijou
Num Nunca deste mundo, num outrora
De um outro Tempo, que Deus não criou,


Brilha, vaga aos olhares dos carnais
E dispersa no dia
Uma Auréola de ânsias imortais
Que é a minha Alma divina de agonia.


E eu tão Deus, tão Deus me sinto, tanto,
Que rezo a mim, meus Deus,
E que recebo as gotas do meu pranto
Como incenso elevado a mim, meus céus;


Porque eu sou mais do que conheço e sinto
Contenho um eu-além,
Tenho em mim todo o mundo, e em mim pressinto
Mais cousas e outras do que o mundo tem.


Nos meus olhos cegando para a vida
Passam quasis de ver
Uma outra realidade entretecida
Daquilo a que chamamos o não-ser.


Por isso, meu Altar e meu Calvário
E minha Cruz
Eu santifico-me ante mim, lendário
De já ter visto Deus, numa outra Luz,


E assim tão alto sobe no Ideal
A minha inspiração
Que fulge em torno à minha fronte, real,
Uma auréola de amor e redenção.


Redimido da sombra e do Imperfeito
Conquisto o Santo-Graal,
Porque contenho dentro do meu peito
Um Eu que absolve em Bem  meu próprio Mal.


Sombra, atravesso a vida. alheio a ela,
Brilho, estrela, de Além,
Sou Tudo e Deus; minha alma é mais que bela
Pois da minha alma é que a Beleza vem.


Transbordo-me de humano, e (...), e sóbrio
Para o eu que Deus é.
Sou Deus tendo consciência de si-próprio
Sou um Cristo de uma outra,a minha, fé.


Deus é tudo; eu sou Deus portanto e ó calma
Deus, absoluto e Deus
Cujo amor desceu a ser minha alma
P'ra que minha alma pudesse subir até Deus


O meu orgulho humilíssimo, esplendor
De pequenez, fulgindo
Em Auréola desce de Outro Amor
Em torno à minha fronte, luz sorrindo..


A embriaguez de (...) e do Mistério
E da Revelação...
Sinto.-me imponderável, áureo e aéreo
E outra-coisa que a minha imperfeição,


Sinto-me já por dentro de ares, mares
Alma da Natureza
Que belo sou quando de sóis e luares!
Quando floresço (...)


O universo é meu corpo de delírio,
E o que há mais que universo,
A alegria de o ter é o meu martírio,
Por ele fujo, consciente e disperso.


Até que a mim regresso quando embrumo
Meu ser de mim,
Sou outra vez esse ser que é sombra e fumo
Falsa ascensão com falso não-ter-fim...


Eu sou fogo... Isso sei, ainda que o esqueça
Meu quotidiano ser...
A auréola que tenho é a alma acesa
Que é tanta que a não posso a mim 'sconder.


Ascensão! Ascensão! Luz do cimo da alma!
Santificado!




FERNANDO PESSOA, 13 DE ABRIL DE 1913

quinta-feira, 12 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS




DEMOGORGON


Na rua cheia de sol vago há casas paradas e gente que anda.
Uma tristeza cheia de pavor esfria-me.
Pressinto um acontecimento  do lado de lá das frontarias e dos movimentos.
Não, não, isso não!
Tudo menos saber o que é o Mistério!
Superfície do universo, ó Pálpebras Descidas,
Não vos ergais nunca!
O olhar de Verdade Final não deve poder suportar-se!


Deixai-me viver sem saber nada, e morrer sem ir saber nada!
A razão de haver ser, a razão de haver seres, de haver tudo,
Deve trazer uma loucura maior que os espaços
Entre as almas e entre as estrelas.


Não, não, a verdade não! Deixai-me estas casas e esta gente,
Assim mesmo, sem mais nada, estas casas e esta gente...
Que bafo horrível e frio me toca em olhos fechados?
Não os quero abrir de viver! Ó Verdade, esquece-te de mim!


ÁLVARO DE CAMPOS, 12 DE ABRIL DE 1928

quarta-feira, 11 de abril de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS


APOSTILA


Aproveitar o tempo!
Mas o que é o tempo, para que eu o aproveite?
Aproveitar o tempo!
Nenhum dia sem linha...
Trabalho honesto e superior...
O trabalho à Virgílio, à Milton...
Mas é tão difícil ser honesto ou ser superior!
É tão pouco provável ser Milton, ou ser Virgílio!


Aproveitar o tempo!
Tirar da alma os bocados precisos - sem mais nem menos -
Para com eles juntar os cubos ajustados
Que fazem gravuras certas na história
(E estão certas também do lado de baixo que se não vê)...
Pôr as sensações em castelo de cartas, pobre China dos serões,
E os pensamentos em dominó, igual contra igual,
E a vontade em carambola difícil...
Imagens de jogos, ou de paciências, ou de passatempos -
Imagens da vida, imagens das vidas, Imagens da Vida...


Verbalismo...
Sim, verbalismo...
Aproveitar o tempo!
Não ter um minuto que o exame de consciência desconheça...
Não ter um acto indefinido ou factício...
Não ter um movimento desconforme com propósitos...
Boas maneiras da alma...
Elegância de persistir...


Aproveitar o tempo!
Meu coração está cansado como um mendigo verdadeiro.
Meu cérebro está pronto como um fardo posto ao canto.
Meu canto (verbalismo!) está tal como está e é triste.
Aproveitar o tempo!
Desde que comecei a escrever passaram cinco minutos.
Aproveitei-os ou não?
Se não sei se os aproveitei, que saberei de outros minutos?


(Passageira que viajavas tantas vezes no mesmo compartimento comigo
No comboio suburbano,
Chegaste a interessar-te por mim?
Aproveitei o tempo olhando para ti?
Qual foi o ritmo do nosso sossego no comboio andante?
Qual foi o entendimento que não chegámos  ter?
Qual foi a vida que houve nisto? Que foi isto à vida?)


Aproveitar o tempo!
Ah, deixem-me não aproveitar nada!
Nem tempo, nem ser, nem memórias de tempo  ou de ser!
Deixem-me ser uma folha de árvore, titilada por brisas,
A poeira de um estrada, involuntária e sozinha,
O regato casual da chuvas que vão acabando,
O vinco deixado na estrada pelas rodas enquanto não vêm outras,
O pião do garoto, que vai parar,
E oscila, no mesmo movimento que o da terra.
E estremece, no mesmo movimento que o da alma,
E cai, como caiem os deuses, no chão do Destino.


ÁLVARO DE CAMPOS, 11 DE ABRIL DE 1928

terça-feira, 10 de abril de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS




FONTE




Fresca e viva
A água aviva
Só de ouvida,
Minha vida.


Sinto mais
Leves, ais
Minha dor
Quasi amor.


Fonte calma
Dou-te a alma
Dá-me a tua
Fresca e nua.


Já que a aurora
A ambos doura,
Minha irmã
Na manhã.


FERNANDO PESSOA, 10 DE ABRIL DE 1912