A CANÇÃO
Sol nulo dos dias vãos,
Cheios de lida e de calma,
Aquece ao menos as mãos
A quem não entras na alma!
Que ao menos a mão, roçando
A mão que por ela passe,
Com extremo calor brando
O frio da alma disfarce!
Senhor, já que a dor é nossa
E a fraqueza que ela tem,
Dá-nos ao menos a força
De não a mostrar a ninguém!
Ah, a angústia, a raiva vil, o desespero
De não poder confessar
Num tom de grito, num último grito austero
Meu coração a sangrar!
Falo, e as palavras que digo são um som.
Sofro e sou eu.
Ah, arrancar à música o segredo do tom
Do grito seu!
Ah, a fúria de a dor nem ter sorte em gritar,
De o grito não ter
Alcance maior do que o silêncio, que volta, do ar,
Na noite sem ser!
FERNANDO PESSOA, 15 DE JANEIRO DE 1920
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