A MARINHA
Mas o vento do Norte,
O vento do norte cheio de espuma e
frio
Soprou sobre a tua sorte e sobre a
minha sorte
E a nossa sorte, como uma areia
levada, fugiu.
Perdeu-se na noite,
Perdeu-se na noite e no longe com o
vento a soprar
E só fica na minha memória a memória
do açoite
Do vento na noite que levou a
minh'alma a uivar, a uivar...
Pela praia nocturna, meu amor
perdido, pela praia...
Pela praia nocturna sob um céu sem
lua e sem calma
Nós demos as mãos
E esquecemos a vida, e o mundo, a
nossa própria alma...
O som do mar embalava, o seu ruído
brusco perdia
A rudeza, o ser só exterior, vinha
aureolar
Aquilo invisível em nós que nos
alava e prendia
E o resto era a noite longínqua e o
suspiro do mar.
Passamos por tantas terras dentro
das emoções!
Buscamos tão órfãos a porta e a mãe
da nossa alma!
Mas as mãos que se tinham presas
sentiram os corações
Acharam-se no nosso silêncio e na
noite talvez calma.
Nós éramos o Amor. Fora de nós o
oceano
Levou na noite de trás para diante o
sossego do ruído
Que tarda como nós, mas não morre,
embalou o meu engano
Que era certo agora em nós e no
nosso absorto sentido.
Sempre estava connosco salvo a
abdicação do mundo
Que toca na alma na noite e no céu e
no mar
Mas o nosso amor era uma ilha no
oceano sem fundo
Do consolo da vida, das ondas lá
longe e do vento a esperar.
Nada jurámos. A alma era tudo, o
corpo da hora
Velou-se na sombra da noite absoluta
e no mar que tremia...
Quem havia além de nós com alma e
com vida agora?
Fora de nós de quente e humano e
certo, o que havia?
Não tínhamos vivido antes daquele
momento
Antes tinha sido o nosso corpo e a
nossa alma...
Vindo de uma outra bando o nosso
pensamento
Que era uma calma morte e a dita da
noite sem calma.
Tudo pensámos menos o amor, e só ela
havia...
Cada um era só ele; o outro não era
preciso...
As mãos tornando-se leves na alma
que não as sentia
E tudo estava em cada um por ser o
outro, o indeciso...
Pela primeira vez nada sobrava ou
faltava -
Pela primeira vez nada era aos
nossos pés
Nada era nada sobre o não que ali
estava
Pela primeira vez, pela primeira vez
Uma pessoa impossível feita de morte
dos dois
Passeava sozinha, era o nada tudo,
ali na areia...
E o mundo era uma ilusão, com seus
dias e com seus sóis,
E a alma era falsa com a sua dor e a
alegria em que anseia.
Não bem alma, não bem vida, apenas
amor...
Não bem nós, nem o mundo, uma outra
cousa real...
E o espaço vazio em que isso era
verdadeiro, um sabor
A unidade suprema, além do bem e do
mal.
FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE
1917