terça-feira, 28 de fevereiro de 2017

FAZ HOJE 100 ANOS





No país das lagoas a tarde
É uma lagoa também...
O céu em água de fogo arde
E a sombra vem
Sem rasto, ou alarde
Como as sombras que as águas têm.

No país das lagoas doente
Passei, e o coração
Ficou-me entre a extensão silente
Da solidão,
Como uma alga ou um reflexo - hálito rente
À consciência exterior da sensação.

No país das lagoas, paisagem
Que faz a alma parar
De uma angústia sem nome e sem fim - pajem
De não poder pensar -
No país das lagoas passei como uma aragem
Por sobre as lagoas doentes, à procura do mar.

FERNANDO PESSOA, 28 DE FEVEREIRO DE 1917


segunda-feira, 27 de fevereiro de 2017

FAZ HOJE 108 ANOS




Soam vãos, dolorido epicurista,
Os versos teus, que a minha dor despreza;
Já tive a alma sem descrença presa
Desse teu sonho, que perturba a vista.

Da Perfeição segui em vã conquista,
Mas vi depressa, já sem a alma acesa,
Que a própria ideia em nós dessa beleza
Um infinito de nós mesmos dista.

Nem à nossa alma definir podemos
A Perfeição em cuja estrada a vida,
Achando-a intérmina, a chorar perdemos.

O mar tem fim, o céu talvez o tenha,
Mas não a ânsia de Coisa indefinida
Que o ser indefinida faz tamanha.

FERNANDO PESSOA, 27 DE FEVEREIRO DE 1909


domingo, 26 de fevereiro de 2017

FAZ HOJE 83 ANOS


TORMENTA

Que jaz no abismo sob o mar que se ergue?
Nós, Portugal, o poder ser.
Que inquietação do fundo nos soergue?
O desejar poder querer.

Isto, e o mistério de que a noite é o fausto...
Mas súbito, onde o vento ruge,
O relâmpago, farol de Deus, um hausto
Brilha, e o mar escuro estruge.

FERNANDO PESSOA, 26 DE FEVEREIRO DE 1934


sábado, 25 de fevereiro de 2017

FAZ HOJE 100 ANOS





A MARINHA

Mas o vento do Norte,
O vento do norte cheio de espuma e frio
Soprou sobre a tua sorte e sobre a minha sorte
E a nossa sorte, como uma areia levada, fugiu.
Perdeu-se na noite,
Perdeu-se na noite e no longe com o vento a soprar
E só fica na minha memória a memória do açoite
Do vento na noite que levou a minh'alma a uivar, a uivar...

Pela praia nocturna, meu amor perdido, pela praia...
Pela praia nocturna sob um céu sem lua e sem calma
Nós demos as mãos
E esquecemos a vida, e o mundo, a nossa própria alma...
O som do mar embalava, o seu ruído brusco perdia
A rudeza, o ser só exterior, vinha aureolar
Aquilo invisível em nós que nos alava e prendia
E o resto era a noite longínqua e o suspiro do mar.

Passamos por tantas terras dentro das emoções!
Buscamos tão órfãos a porta e a mãe da nossa alma!
Mas as mãos que se tinham presas sentiram os corações
Acharam-se no nosso silêncio e na noite talvez calma.

Nós éramos o Amor. Fora de nós o oceano
Levou na noite de trás para diante o sossego do ruído
Que tarda como nós, mas não morre, embalou o meu engano
Que era certo agora em nós e no nosso absorto sentido.

Sempre estava connosco salvo a abdicação do mundo
Que toca na alma na noite e no céu e no mar
Mas o nosso amor era uma ilha no oceano sem fundo
Do consolo da vida, das ondas lá longe e do vento a esperar.

Nada jurámos. A alma era tudo, o corpo da hora
Velou-se na sombra da noite absoluta e no mar que tremia...
Quem havia além de nós com alma e com vida agora?
Fora de nós de quente e humano e certo, o que havia?

Não tínhamos vivido antes daquele momento
Antes tinha sido o nosso corpo e a nossa alma...
Vindo de uma outra bando o nosso pensamento
Que era uma calma morte e a dita da noite sem calma.

Tudo pensámos menos o amor, e só ela havia...
Cada um era só ele; o outro não era preciso...
As mãos tornando-se leves na alma que não as sentia
E tudo estava em cada um por ser o outro, o indeciso...

Pela primeira vez nada sobrava ou faltava -
Pela primeira vez nada era aos nossos pés
Nada era nada sobre o não que ali estava
Pela primeira vez, pela primeira vez

Uma pessoa impossível feita de morte dos dois
Passeava sozinha, era o nada tudo, ali na areia...
E o mundo era uma ilusão, com seus dias e com seus sóis,
E a alma era falsa com a sua dor e a alegria em que anseia.

Não bem alma, não bem vida, apenas amor...
Não bem nós, nem o mundo, uma outra cousa real...
E o espaço vazio em que isso era verdadeiro, um sabor
A unidade suprema, além do bem e do mal.

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917


sexta-feira, 24 de fevereiro de 2017

FAZ HOJE 102 ANOS




Estendo os braços para ti...
A noite cai nas nossas mãos...
Nós éramos melhor que irmãos
Na outra vida que vivi.

Teus girassóis eram na alma...
Os teus tanques nos gestos teus...
Tu inclinavas-te p'ra Deus
E a noite era uma grande palma...

Perdi-te quando me encontrei...
Não quis a vida que me deram...
Nossos beijos de outrora eram
Segundo uma divina lei...

Aparecias entre véus...
Passavas entre o trigo e a tarde...
Inda no meu coração arde
O poente que nos dera Deus...

Deixa que eu peça a Deus por ti
Para que venhas algum dia
Quando a vida estiver vazia
E eu chore o muito que vivi.

Então talvez de entre palmeiras
Tua presença abra em flor
Caminharás no meu amor
Como uma brisa por bandeiras.

Água nas cascatas desfeitas
Do meu sorriso enternecido...
Serás o íntimo sentido
Das nossas horas mais perfeitas...

Lua subindo no horizonte
Da minha imagem de ti
A tua vida estrelas e
Tantas estrelas que em vão conte.

Em teu torno, halo misterioso,
Sete planetas com anéis...
Seguindo como (...) fiéis
O teu advento silencioso.

E a vida longe, como um belo
Manto deixado em desvario...
Nós indo p'ra o Castelo Esguio
E Deus saliente do Castelo.

FERNANDO PESSOA, 24 DE FEVEREIRO DE 1915