terça-feira, 31 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 90 ANOS






Pequeno é o espaço que de nós separa
O que havemos de ser quando morrermos.
Não conhecemos quem será então
Aquele que hoje somos.
Só o passado, comum a nós e a ele,
Será indício de que a nossa alma
Persiste e, como antiga ama, conta
Histórias esquecidas...
Se pudéssemos pôr o pensamento
Com exacta visão adentro d'idéia
Que havemos de ter naquela hora,
Estranhos olharíamos
O que somos, cuidando ver um outro,
E o 'spaço temporal que hoje habitamos
Luz onde a nossa alma nasceu
Alheia antes de a termos.


RICARDO REIS 31 DE JANEIRO DE 1922


segunda-feira, 30 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS






O rio, sem que eu queira, continua.
Espelha-se, fora do eu ser eu, a lua
Nas águas do meu ser independentes...
Meus pensamentos, sóbrios ou doentes
Nunca saem p'ra fora do meu ser.
No barco ao pé da margem, ao mover
O remador os remos, fica tudo...
A noite é clara, o coração é mudo
E a palavra que eu vou dizer, e fora,
A ser dita, a noção na alma da hora,
Passa como um murmúrio vão do vento...
E eu, só na noite com o meu pensamento
Não me distingo do que me rodeia...
E então é só real a lua cheia...

FERNANDO PESSOA, 30 DE JANEIRO DE 1919

domingo, 29 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS




Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tiquetaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que se não conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está está aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.

Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu...


ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933

sábado, 28 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 90 ANOS



CANÇÃO DE OUTONO


No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão.


Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.


Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.


FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO, DE 1922

sexta-feira, 27 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 103 ANOS




NOCTURNO


Dorme, criança, dorme
Dorme que eu velarei;
Sozinho na noite enorme
Dum conto me lembrarei
Que depois, - dorme, criança, dorme -
Cantando te contarei.

Era um céu negro e imenso
E em baixo um mar sem fim
Um horror frio e suspenso
E uma voz descia dentro em mim
Sobre o mar, sobre o mar imenso
Chorando dizia assim:

"Cai lentamente o pranto,
Resvala para o chão,
E eu choro, mas fico no entanto
Na mesma solidão
Como o silêncio amargo do pranto -
No fundo do coração.

Sonhei que amaria
Um espírito do luar
Que morrendo eu encontraria
Ao pé de mim a sonhar
E agora choro noite e dia
Sobre as ondas deste mar.

Chamo qual se saudade
Homem do sempre-além
Mas apenas na soledade
Minha voz vai e vem.
E a minha alma sente funda saudade
De quando o sonho era um bem.

Andei, passei chorando
Chorando há muito vou
Cesse o ardor vago e brando
De quem muito sonhou
Mas só a si triste e chorando
A minha alma se encontrou.

Me sinto em mim um soluço
Pesadelo d'amargor
O abismo eterno em que me debruço
É a eternidade sem amor..."
E assim, com um soluço
Esvai-se a voz da dor.

Quando fores grande - dorme! -
Este conto contarei...
Por ora na noite enorme
Enquanto te embalarei
Ignora tudo, criança, dorme,
Dorme que eu velarei...


FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1909

quinta-feira, 26 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS





Já sinto em sonho sobre eu 'star morto
          A erva crescer.
E como a noiva que vê do porto
         A nau crescer


Que traz seu noivo e chora por tê-lo,
        Porque, chegado,
Morre a feliz 'sperança de vê-lo
       E a 'sperança é bela.


Assim... não sei...sobre o eu estar morto
       A erva...


Mas que tem isso com eu estar morto.
       Sinto-o e não sei...


Morre a 'sperança que tem de vê-lo,
E tê-lo é perder querê-lo ter ao lado.


FERNANDO PESSOA, 26 DE JANEIRO DE 1917

quarta-feira, 25 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS



ISOLA D'ORO


Muito longe, muito longe...
Nem tu sabes, filha
Como era longe, tão longe
Aquela (...) ilha


Onde eu vivi, tão sonhando
Uma vida que não tive
E onde Essa cujo olhar brando
Foi sonho meu, inda vive...


Nem tu sabes como é longe
Num Oriente de outra terra
Essa ilha onde eu fui monge!
Ao longe havia uma serra


Aquém  erra o olhar sombrio
De arvoredos de outro ser
Corria por ele um rio
Com outro modo de correr


Foi aí que eu aprendi,
Foi aí que eu fui buscar
O sonho que busco em ti
E que em ti não posso achar...


É por ter ali vivido
Que não posso ter amor
A quanto há entre o ruído
Deste mundo em meu redor.


Por isso quando te olho
Não penso em ti, mas evoco
Outro amor que em mim desfolho...
Por isso nunca te toco,


Por isso vivo sozinho
Alheadamente tristonho...
Não sei construir um ninho
Senão com penas de sonho


Das que há naquela ilha
Que amei antes de viver...
Não me olhes... Eu sonho, filha...


II


Mas tu tens às vezes gestos
Modos rápidos de olhar,
Leves (...) lestos
Que não tens consciência


Que lembram gestos de Aquela
Que viveu comigo além
Naquela ilha que é bela
Pelo Mundo que não tem


E eu pergunto de repente
Se tu serás ela, e como
Eu próprio sejas doente
De universo... E um vago assomo


De querer-te no ignorar-te
De te amar até esquecer-te
Torna-se toda a minha arte...
Ah, o tédio que este céu verte!


FERNANDO PESSOA, 25 DE JANEIRO DE 1912



terça-feira, 24 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS




O TRAIDOR


Puseram-no contra a parede
Com os olhos vendados.
Parou um silêncio... Uma sede
Tomou-o... Houve passos afastados...

A casa branca sorria
No seu passado de infância...
No ar sem aroma havia
A sua alegre fragrância...

A mãe a beijá-lo... O arco
A meio do quintal...
Uma voz... A luz no charco
Viu tudo que fez mal...

Depois a cabeça loura,
Os olhos azuis, a voz
Primeiro... à porta....a hora
(...)

O seu sorrir, o olhar
Que lhe deu tudo, o instante
Em que se viu debruçar
Fogo... disse o comandante.

FERNANDO PESSOA, 24 DE JANEIRO DE 1917

segunda-feira, 23 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 87 ANOS





A luz do sol afaga o imenso dia.
Um sopro brando, quase não de inverno,
Sobriamente os campos inebria.
Ah, mas o que há de eterno?
Em que é que a alma sem sonhar se fia?


Meu coração nada recebe da hora
Salvo o vácuo de nada receber.
Como criança abandonada, chora,
Que não sabe o que quer,
Nem por onde ir, nem porque se demora.


E alheio a isto, que sou eu, que brando
O sol de inverno lembra a primavera!
Que afago busca o que em mim 'stá sonhando,
Que 'spera quem nada 'spera?
Que fica a quem sabe que está passando?


FERNANDO PESSOA, 23 DE JANEIRO DE 1925

domingo, 22 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS





A tua voz fala amorosa
Tão meiga fala, que me esquece
Que é falsa a sua meiga prosa.
Meu coração desentristece.


Sim, como a música sugere
que há na música não 'stá,
Meu coração nada mais quere
Que a melodia que em ti há.


Amas-me? Quem o crera? Fala
Na mesma voz que nada diz...
Se és uma música que embala
Eu oiço, ignoro e sou feliz.


Que importa que a verdade exalça
Se sou feliz desta maneira?
Nem há felicidade falsa.
Enquanto dura é verdadeira.


FERNANDO PESSOA, 22 DE JANEIRO DE 1929

sábado, 21 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS




Frei, João, teus poemas
Ascéticos, não mostram
Mais do que o teu desejo
De não sentir nada...


FERNANDO PESSOA, 21 DE JANEIRO DE 1915

sexta-feira, 20 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS


FAZ HOJE 79 ANOS


Cabeça augusta, que uma luz contorna,
Que há entre mim e o mundo que me faz
(Porque em espinhos a auréola se torna?)
Ansiar a minha morte e a tua paz?

A tua história - Pilatos ou Caifás
Que tem? São sonhos que o narrar transtorna,
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.
É em meu coração abandonado
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na Cruz onde está ermo e pregado
O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!


FERNANDO PESSOA, 20 DE JANEIRO DE 1933

quinta-feira, 19 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 92 ANOS






POEMA INCOMPLETO

A dor, que me tortura sem que eu tenha
Caminho ou alma para lhe fugir,
Parece que, ao tocar-me, me desdenha,
E só me toca p'ra o fazer sentir.

Um nojo, não de mim por minha dor,
Mas como que de minha dor por mim,
Jaz no fundo soez do meu rancor
Contra a dor sem razão que não tem fim.

E, neste circuito de dor e mágoa,
Não me encontro senão p'ra me odiar,
Como o viandante à noite ouve um som de água
Apenas para dele se afastar.


FERNANDO PESSOA, 19 DE JANEIRO DE 1920

quarta-feira, 18 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS






Teu nome ignoro. Teu perfil deslembro.
Tuas palavras esqueci.
Era manhã, nevoeiro, era Dezembro,
Quando te achei e te perdi.
Sonho ou relembro?


Não sei. Era manhã e o nevoeiro
Envolvia o que havia e o que eu pensava,
Como um falso refúgio derradeiro
Do que em parte nenhuma estava.
Sonho, prolixo e inteiro,


Mas se, nas teclas tua mão errar,
Assim, despida de ser tua, sei
Que talvez poderia achar
Entre o que não pude encontrar
Aquilo que não acharei.


FERNANDO PESSOA, 18 DE JANEIRO DE 1934

terça-feira, 17 de janeiro de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS





A linha da casaria
Que está dada ao sol cadente,
Do oblíquo sol pouco quente
Brilha iluminada e fria.


Assim o meu coração,
Que está dado ao desamparo
Do que na razão é raro,
E que é a pura razão,


Sente brilhar nele brando
Um resquício de saudade...
Quando tornarei, verdade
De quando era eu? Quando?


FERNANDO PESSOA, 17 DE JANEIRO DE 1934

segunda-feira, 16 de janeiro de 2012

POEMA SEM DATA





                   VIII

Num meio dia de fim de primavera
Tive um sonho como uma fotografia.
Vi Jesus Cristo descer à terra.

Veio pela encosta de um monte
Tornado outra vez menino,
A correr e a rolar-se pela erva
E a arrancar flores para as deitar fora
E a rir de modo a ouvir-se de longe.

Tinha fugido do céu.
Era nosso demais para fingir
De segunda pessoa da trindade.
No céu era tudo falso, tudo em desacordo
Com flores e árvores e pedras.
No céu tinha que estar sempre sério
E de vez em quando de se tornar outra vez homem
E subir para a cruz, e estar sempre a morrer
Com uma coroa toda à roda de espinhos
E os pés espetados por um prego com cabeça.
E até com um trapo à roda da cintura
Como os pretos das ilustrações.
Nem sequer o deixavam ter pai e mãe
Como as outras crianças.
O seu pai era duas pessoas -
Um velho chamado José, que era carpinteiro,
E que não era pai dele;
E o outro era uma pomba estúpida,
A única pomba feia do mundo
Porque não era do mundo nem era pomba.
E a sua mãe não tinha amado antes de o ter.
Não era uma mulher: era uma mala
Em que ele tinha vindo do céu.
E queriam que ele, que só nascera da mãe,
E nunca tivera pai para amar com respeito
Pregasse a bondade e a justiça!

Um dia que Deus estava a dormir
E o Espírito Santo andava a voar,
Ele foi à caixa dos milagres e roubou três.
Com o primeiro fez com que ninguém soubesse que ele tinha fugido.
Com o segundo criou-se eternamente humano e menino.
Com o terceiro criou um Cristo eternamente na cruz
E deixou-o pregado na cruz que há no céu
E serve de modelo às outras.
Depois fugiu para o sol
E desceu pelo primeiro raio que apanhou.

Hoje vive na minha aldeia comigo.
É uma criança bonita de riso e natural.
Limpa o nariz ao braço direito,
Chapinha nas poças de água,
Colhe as flores e gosta delas e esquece-as.
Atira pedras aos burros,
Rouba fruta dos pomares
E foge a chorar e a gritar dos cães,
E porque sabe que elas não gostam
E que toda a gente acha graça,
Corre atrás das raparigas
Que vão em ranchos pela estrada
Com as bilhas à cabeça
E levante-lhes as saias.

A mim ensinou-me tudo.
Ensinou-me a olhar para as coisas,
Aponta-me todas as coisas que há nas flores,
Mostra-me como as pedras são engraçadas
Quando a gente as tem na mão
E olha devagar para elas.

Diz-me muito mal de Deus.
Diz-me que é um velho estúpido e doente
Sempre a escarrar no chão
E a dizer indecências.
A Virgem Maria leva as tardes da eternidade a fazer meia.
E o Espírito Santo coça-se com o bico
E empoleira-se nas cadeiras e suja-as.
Tudo no céu é estúpido como a Igreja Católica.
Diz que Deus não percebe nada
Das coisas que criou -
"Se é que ele as criou, do que duvido" -
"Ele diz, por exemplo, que os seres cantam a sua glória,
Mas os seres não cantam nada.
Se cantassem eram cantores.
Os seres existem e mais nada,
E por isso se chamam seres"

E depois, cansado de dizer mal de Deus,
O Menino Jesus adormece nos meus braços
E eu levo-o ao colo para casa.

........................................................................

Ele mora comigo na minha casa a meio do outeiro.
Ele é a Eterna Criança, o deus que faltava.
Ele é o humano que é natural,
Ele é o divino que sorri e brinca.
É por isso que eu sei com toda a certeza
Que ele é o Menino Jesus verdadeiro.

E a criança tão humana que é divina
É esta minha quotidiana vida de poeta,
É porque ele anda sempre comigo que eu sou poeta sempre,
E que o meu mínimo olhar
Me enche de sensação,
E o mais pequeno som, seja do que for,
Parece falar comigo.

A Criança Nova que habita onde vivo
Dá-me uma mão a mim
E a outra a tudo o que existe
E assim vamos os três pelo caminho que houver,
Saltando e cantando e rindo
E gozando o nosso segredo comum
Que é o de saber por toda a parte
Que não há mistério no mundo
E que tudo vale a pena.

A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direcção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São a cócegas que me faz, brincando, nas orelhas.

Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos os dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.

Ao anoitecer brincamos às cinco pedrinhas
No degrau da porta da casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo o universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.

Depois eu conto-lhe histórias das coisas só dos homens
E ele sorri, porque tudo é incrível.
Ri dos reis e dos que não são reis,
E tem pena de ouvir falar das guerras
E dos comércios, e dos navios
Que ficam fumo no ar dos altos mares,
Porque ele sabe que tudo isso falta àquela verdade
Que uma flor tem ao florescer
E que anda com a luz do sol
A variar os montes e os vales
E a fazer doer aos olhos os muros caiados.

Depois ele adormece e eu deito-o.
Levo-o ao colo para dentro de casa
E deito-o, despindo-o lentamente
E como seguindo um ritual muito limpo
E todo materno até ele estar nu.

Ele dorme dentro da minha alma
E às vezes acorda de noite
E brinca com os meus sonhos.
Vira uns de pernas para o ar,
Põe uns em cima dos outros
E bate as palmas sozinho
Sorrindo para o meu sono.

.................................................................................

Esta é a história do meu Menino Jesus.
Por que razão que se perceba
Não há-de ser ela mais verdadeira
Que tudo quanto os filósofos pensam
E tudo quanto as religiões ensinam?

ALBERTO CAEIRO


FAZ HOJE 84 ANOS



TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janela do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubesse quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Como o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira das carruagens de um combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou, achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fóra,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dntro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das trazeiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre o que só tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier,ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos da estrêlas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar, a Via Láctea e o Indefinido.

(Como chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida deste versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol ,p'ro decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existe e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo.
E tudo isso é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos, e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aqém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e que não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrei.
Ele deixará a tabuleta, eu os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono do mistério da superfície,
Sempre isso, ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escreve-los
E saboreio no cigarro o prazer da libertaçáo de todo os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.


Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cdeira. Vou à janela.

O homem sai da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus e gritei-lhe Adeus ó Esteves! e, o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.


ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE JANEIRO DE 1928