quinta-feira, 30 de abril de 2020

FAZ HOJE 107 ANOS




MISSA NEGRA

O rasto do sol perdido morreu
No céu 'scuro como uma capa...
Minha alma é um cardeal ateu
Que em breve vai ser feito Papa...


Como um crente estranho, na alma luz-me só isto,
(E um fogo de horror a alma lhe esfria)
Cuspir na face de Cristo
E violar a Virgem Maria...


E apraz-lhe e apavora o crente ateu
Isto com um fogo e horror carnal -
Fazê-lo e depois ver que é real o Céu
E que o Inferno é verdadeiro e real!




FERNANDO PESSOA, 30 DE ABRIL DE 1913

quarta-feira, 29 de abril de 2020

FAZ HOJE 92 ANOS




Às vezes medito,
Às vezes medito e medito mais fundo, e ainda mais fundo
E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície,
E todo o universo é um mar de caras de olhos abertos para mim.
Cada coisa, - o candeeiro da esquina, uma pedra, uma árvore -
É um olhar que me fita de um abismo incompreensível,
E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.
Ah, haver coisas!
Ah, haver seres!
Ah, haver maneira de haver seres
De haver haver
De haver como haver haver,
De haver...
Ah, existir o fenómeno abstracto de existir,
Haver consciência e realidade,
O que quer que isto seja...
Como posso eu exprimir o horror que tudo isto me causa?
Como posso eu dizer como é isto para se sentir?
Qual é alma de haver ser?

Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver...

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE ABRIL DE 1928

terça-feira, 28 de abril de 2020

FAZ HOJE 85 ANOS



Elle est si belle,
La petite rebelle,
Ce joyau de jeunesse;
Elle est si belle
Que mon coeur s'en blesse.
Oh, quelle tristesse,
Quel amour sans cris
Car celle
Qui est si belle
Est toujours la femme d'autrui.

Oh qu'importe
Qu'elle le soit déjà
Ou que mon destin ne comporte
Que ne l'avoir obtenu pas?
Ne pas l'avoir ou la perdre
C'est le même amour sans cris
Dans ce coeur meurtri.
Oh, elle,
Celle
Qui est si belle,
Est toujours la femme d'autrui.

FERNANDO PESSOA, 28 DE ABRIL DE 1935

segunda-feira, 27 de abril de 2020

FAZ HOJE 104 ANOS




Movem nossos braços outros braços que os nossos,
Falam na nossa boca lábios que não nos pertencem.
Não somos agentes; nós somos acções - os destroços
De gestos apenas metade neste mundo em que a vida
Passa como um cortejo em que os olhos de Deus pensem
E entre ele e o cortejo pensado há quem age esta lida.

Somos cartas mandadas de espírito para espírito na treva,
Quebrada a ponte, nós somos a ponte, e isso é falso...
Farrapos das intenções dos anjos que a treva leva
E ao alto de cada alma nossa ergue-se um cadafalso...

Tudo isto se passa entre Deus e o ser que não temos
E no intervalo chora o som da ida nos remos.

FERNANDO PESSOA, 27 DE ABRIL DE 1916

domingo, 26 de abril de 2020

FAZ HOJE 94 ANOS




Nada me prende a nada
Quero cinquenta cousas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonho irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.

Fecharam-me todas as portas abstractas e adequadas.
Correram cortinas por dentro de todas as hipóteses que eu poderia ver na rua.
Não há na travessa achada o número de porta que me deram.

Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...

Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.

Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(O passado é uma névoa natural de lágrimas falsas),
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final,
Os meus exércitos sonhados derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.

Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei
E aqui tornei a voltar, e a voltar
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?

Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo e a alma menos minha?

Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter de viver...

Oura vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...

Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocados de mim -
Um bocado de ti e de mim!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 26 DE ABRIL DE 1926

sábado, 25 de abril de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS




O Inverno passa, tardando
Em passar.
O ar, asperamente brando,
Faz 'sperar.

Se tudo quanto eu desejo
Fosse meu,
Nunca teria um ensejo
De ser eu.

O Inverno passa, mas dura.

FERNANDO PESSOA, 25 DE ABRIL DE 1931

sexta-feira, 24 de abril de 2020

FAZ HOJE 92 ANOS



O sonho que se opôs a que eu vivesse
A 'sperança que não quis que eu acordasse,
O amor fictício que nunca era esse,
A glória eterna que velava a face...

Por onde eu, louco sem loucura, passe
Esse conjunto absurdo a teia tece...
E, por mais que o Destino me ajudasse,
Quero crer que o Deus dele me esquecesse.

Por isso sou o deportado, e a ilha
Com que, de natural e vegetável
A imaginação se maravilha.

Nem frutos tem nem água que é potável...
Do barco naufragado vê-se a quilha...
(...)

FERNANDO PESSOA, 24 DE ABRIL DE 1928

quinta-feira, 23 de abril de 2020

FAZ ESTE MÊS 86 ANOS







Na paz da noite, cheia de tanto durar,
Dos livros que li
Que li a sonhar, a sentir, a mal meditar,
Nem vendo que os vi,

Ergo a cabeça subitamente estonteada
Do lido e do vão
De ler e vejo que não há paz na noite acabada -
Não no meu coração.

Criança, era outro...Naquele em que me tornei,
Cresci e esqueci.
Tenho de meu agora um silêncio, uma lei.
Ganhei ou perdi?

FERNANDO PESSOA, ABRIL DE 1934

quarta-feira, 22 de abril de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS




Toda beleza é um sonho, inda que exista.
Porque beleza é sempre mais do que é.
Tua beleza vista
Não está de mim ao pé.

Disto de mim o que em ti vejo, mora
Onde sonho. Se existes, não o sei
Senão porque é agora
Aquilo que sonhei.

A beleza é uma música que, ouvida
Em sonhos, para a vida transbordou.
Mas não é bem a vida:
É a vida que sonhou.

FERNANDO PESSOA, 22 DE ABRIL DE 1934

terça-feira, 21 de abril de 2020

FAZ HOJE 88 ANOS




Azuis os montes que estão longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Não quero.
Que pesa o escrúpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vários, e como eles,
Exterior a mim me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às féria em que existo.

RICARDO REIS, 21 DE ABRIL DE 1932

segunda-feira, 20 de abril de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS




Se eu me sentir sono
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,

Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça
Num chão qualquer,

Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que achamos
A sombra da paz.

FERNANDO PESSOA, 20 DE ABRIL DE 1934

domingo, 19 de abril de 2020

FAZ HOJE 85 ANOS




A paz do dia, a luz que faz a paz, -
Tudo isso faz
Que eu um momento esqueça quem me fiz -
O poeta abstracto e infeliz,
Que escreve para dar a entender
Que não tem nada que dizer.




FERNANDO PESSOA, 19 DE ABRIL DE 1935

sábado, 18 de abril de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS




Guardo ainda, como um pasmo
Em que a infância sobrevive,
Metade do entusiasmo
Que tenho porque já tive.

Quase às vezes me envergonho
De crer tanto em que não creio.
É uma espécie de sonho
Com a realidade no meio.

Girassol do falso agrado,
Em torno do centro mudo
Fala, amarelo, pasmado
Do negro centro que é tudo

FERNANDO PESSOA, 18 DE ABRIL DE 1931

sexta-feira, 17 de abril de 2020

FAZ ESTE MÊS 86 ANOS



Na paz da noite, cheia de tanto durar,
Dos livros que li
Que li a sonha, a sentir, a mal meditar,
Nem vendo que os vi,

Ergo a cabeça subitamente estonteada
Do lido e do vão
De ler e vejo que não há paz na noite acabada -
Não no meu coração.

Criança, era outro... Naquele em que me tornei,
Cresci e esqueci.
Tenho de meu agora um silêncio, uma lei.
Ganhei ou perdi?

FERNANDO PESSOA, ABRIL DE 1934

quinta-feira, 16 de abril de 2020

FAZ HOJE 106 ANOS




Do meu velho solar
Abriram-se as portas
De par em par...

Que razão havia
Para que se abrissem?
Nada lá existia...

Não havia nada...
Não havia mesmo
A memória errada

Duns antepassados...
Pobre solar velho...
E a Vida?... Aos bocados...

FERNANDO PESSOA, 16 DE ABRIL DE 1914

quarta-feira, 15 de abril de 2020

FAZ HOJE 92 ANOS




Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, que é feito de ti nesta forma de vida?

Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva...

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, meu coração não aprendeu a tua serenidade.
Meu coração não aprendeu nada.
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu nem outro nem ninguém.
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Porque é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Porque é que me deste a tua alma se eu não sabia que fazer dela
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Porque é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida,
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino humano é ser escravo.
Acordaste-me, mas o sentido de ser humano é dormir.

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE ABRIL DE 1928

terça-feira, 14 de abril de 2020

FAZ HOJE 92 ANOS




ADIAMENTO

Depois de amanhã, sim, só depois de amanhã...
Levarei amanhã a pensar em depois de amanhã,
E assim será possível; mas hoje não...
Não, hoje nada; hoje não posso.
A persistência confusa da minha subjectividade objectiva,
O sono da minha vida real, intercalado,
O cansaço antecipado e infinito,
Um cansaço de mundos para apanhar um eléctrico...
Esta espécie de alma...
Só depois de amanhã...
Hoje quero preparar-me,
Quero preparar-me para pensar amanhã no dia seguinte...
Ele é que é decisivo.
Tenho já o plano traçado; mas não, hoje não traço planos...
Amanhã é o dia dos planos.
Amanhã sentar-me-ei à secretária para conquistar o mundo;
Mas só conquistarei o mundo depois de amanhã...
Tenho vontade de chorar,
Tenho vontade de chorar muito de repente, de dentro...
Não, não queiram saber mais nada, é segredo, não digo.
Só depois de amanhã...
Quando era criança o circo de domingo divertia-me toda a semana.
Hoje só me diverte o circo de domingo de toda a semana da minha infância...
Depois de amanhã serei outro,
A minha vida triunfar-se-á,
Todas as minhas qualidades reais de inteligente, lido e prático
Serão convocadas por um edital...
Mas por um edital de amanhã...
Hoje quero dormir, redigirei amanhã...
Por hoje, qual é o espectáculo que me repetiria a infância?
Mesmo para eu comprar os bilhetes amanhã,
Que depois de amanhã é que está bem o espectáculo...
Antes, não...
Depois de amanhã terei a pose pública que amanhã estudarei.
Depois de amanhã serei finalmente o que hoje não posso nunca ser.
Só depois de amanhã...
Tenho sono como o frio de um cão vadio.
Tenho muito sono.
Amanhã te direi as palavras, ou depois de amanhã...
Sim, talvez só depois de amanhã...

O porvir...
Sim, o porvir...

ÁLVARO DE CAMPOS, 14 DE ABRIL DE 1928