O MENINO DA SUA MÃE
No plaino abandonado
Que a morna brisa aquece,
De balas traspassado
- Duas de lado a lado -,
Jaz morto e arrefece.
Raia-lhe a farda o sangue.
De braços estendidos,
Alvo, louro, exangue,
Fita com olhar langue
E cego os céus perdidos.
Tão jovem! que jovem era!
(Agora que idade tem?)
Filho único, a mãe lhe dera
Um nome e o mantivera:
"O menino da sua mãe".
Caiu-lhe da algibeira
A cigarreira breve.
Dera-lha a mãe. Está inteira
E boa a cigarreira.
Ele é que já não serve.
De outra algibeira, alada
Ponta a roçar o solo,
A brancura embaínhada
De um lenço... Deu-lho a criada
Velha que o trouxe ao colo.
Lá longe, em casa, há aprece:
"Que volte cedo e bem!"
(Malhas que o Império tece!)
Jaz morto e apodrece
O menino da sua mãe.
Fernando Pessoa (publicado em Maio de 1926)
(A MÃE DO SEU MENINO)
UN SOIR À LIMA (excertos)
Vem a voz da radiophonia e dá
A notícia num arrastamento vão:
"A seguir
Un soir à Lima."
Cesso de sorrir...
Pára-me o coração...
E, de repente,
Essa querida e maldita melodia
Rompe do aparelho inconsciente...
Numa memória súbita e presente
Minha alma se extravia...
O grande luar de Africa fazia
A encosta arborizada reluzente.
A sala em nossa casa era ampla, e estava
Posta onde, até ao mar, tudo se dava
À clara escuridão do luar ingente...
Mas só eu à janela.
Minha mãe estava ao piano
E tocava...
Exactanente
Un soir à Lima.
Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!
Que é do seu alto porte?
Da sua voz continuamente acolhedora?
Do seu sorriso carinhoso e forte?
O que hoje há
Que mo recorda é isto que oiço agora:
"Un soir à Lima".
Prossegue na radiophonia
A mesma, a mesma melodia
O mesmo Un soir à Lima.
Seu cabelo grisalho era tão lindo
Sob a luz.
E eu que nunca pensei que ela morresse
E me deixasse entregue a quem eu sou!
Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.
Ninguèm é homem para a sua mãe!
E inda através de lágrimas não falha
À memória que tenho
O recorte perfeito da medalha
Daquele perfeitíssimo perfil.
Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,
Meu coração teu e infantil.
Vejo teus dedos no teclado e há
Luar lá fora eternamente em mim.
Tocas em meu coração, sem fim,
Un soir à Lima.
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Não ter aqui numa gaveta
Não ter aqui numa algibeira,
Fechada, havida, completa,
Essa cena inteira!
Não poder arrancar
Do espaço, do tempo, da vida
E isolar
Num lugar da alma onde ficasse possuída
Eternamente
Viva,quente,
Essa sala, essa hora,
Toda a família e a paz e a música que há
Mas real como ali está
Ainda, agora,
Quando, mãe, mãe, tocavas
Un soir à Lima.
Mãe, mãe, fui teu menino
Tão bem dobrado
Na sua educação
E hoje sou um trapo que o Destino
Fez enrolado e atirado
Para um canto do chão.
Jazo, mesquinho,
Mas ao meu coração
Sobe, num torvelinho
A memória de quanto ouvi do que há
No que há de carícias, de lar, de ninho,
Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sòzinho,
Un soir à Lima.
Onde é que a hora, e o lar e o amor está
Quando mãe, mãe, tocavas
Un soir À Lima
.................................................................................
Mas, mãe, não haverá
Um Deus que me não torne tudo vão,
Ou outro mundo em que isso agora está?
Divago ainda: tudo é ikusão.
Un soir à Lima.
Quebra-te coração...
Fernando Pessoa 17/9/35