quinta-feira, 30 de junho de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS




DOIS EXCERTOS DE ODES

(fins de duas odes, naturalmente)

I

Vem, noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito.

Vem, vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas,
Funde num campo teu, todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhes todas as diferenças que de longe eu vejo
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz, e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.

Nossa Senhora
Das cousas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que nem saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
Um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o que há na vida.

Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.

Vem dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desesperados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão as cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo, fanático e quente,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta
Ao Oriente que é tudo o nós não temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde, - quem sabe? -, Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...

Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-a misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!

Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé, enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.

Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente como um gesto materno afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa na tua face,
Todos os sons soam de outra maneira
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar,
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,

A lua começa a ser real.

II

Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes, nas grandes cidades,
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um Ocidental"!

Que inquietação profunda, que desejo de outras cousas,
Que não são países, nem momentos, nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!

Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...

Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por essa hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por essa hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência absolutamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo.

Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu nem sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por essa hora cuja misericórdia é torturante e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra cousa que não as cousas,
Cuja passagem não roça vestes pelo chão da Vida Sensível
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.

Cruza as mãos sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter,
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver tu que tu me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria
- Tu que me conheces - quem eu sou...

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE JUNHO DE 1914


quarta-feira, 29 de junho de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS


A rapariga inglesa, tão loura, tão jovem, tão boa
Que queria casar comigo...
Que pena eu não ter casado com ela...
Teria sido feliz
Mas como é que eu sei se teria sido feliz?
Como é que eu sei qualquer coisa a respeito do que teria sido
Do que teria sido, que é o que nunca foi?

Hoje arrependo-me de não ter casado com ela,
Mas antes por até a hipótese de me poder arrepender de ter casado com ela.
E assim é tudo arrependimento,
E o arrependimento é pura abstracção.
Dá um certo desconforto
Mas também dá um certo sonho...

Sim, aquela rapariga foi uma oportunidade da minha alma.
Hoje o arrependimento é que é afastado da minha alma.
Santo Deus! que complicação por não ter casado com uma inglesa que já me deve ter esquecido!...
Mas se não me esqueceu?
Se (porque há disso) me lembra ainda e é constante
Escuso de me achar feio, porque os feios também são amados
(E às vezes por mulheres!)
Se não me esqueceu, ainda me lembra.
Isto realmente, é já outra espécie de arrependimento.
E fazer sofrer alguém não tem esquecimento.

Mas, afinal, isto são conjecturas da vaidade.
Bem se há-de ela lembrar de mim, com o quarto filho nos braços,
Debruçada sobre o Daily Mirror a ver a Princesa Maria.

Pelo menos é melhor pensar que é assim.
É um quadro de casa suburbana inglesa,
É uma boa paisagem íntima de cabelos louros,
E os remorsos são sombras...
Em todo o caso, se assim é, fica um bocado de ciúme.
O quarto filho do outro, o Daily Mirror na outra casa.
O que podia ter sido...
Sim, sempre o abstracto, o impossível, o irreal mas perverso -
O que podia ter sido.
Comem marmelada ao pequeno-almoço em Inglaterra...
Vingo-me em toda a burguesia inglesa de ser um parvo português.

Ah, mas ainda vejo
O teu olhar realmente tão sincero como azul
A olhar como uma outra criança para mim...
E não é com piadas de sal do verso que te apago da imagem
Que tens no meu coração;-Não te disfarço, meu único amor, e não quero nada da vida.

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JUNHO DE 1930


terça-feira, 28 de junho de 2016

FAZ ESTE MÊS 114 ANOS




ANTÍGONA

Como te amo? Não sei de quantos modos vários
Eu te adoro, mulher de olhos azuis e castos;
Amo-te co'o fervor dos meus sentidos gastos;
Amo-te co'o fervor dos meus preitos diários.

É puro o meu amor, como os puros sacrários;
É nobre o meu amor, como os mais nobres fastos;
É grande como os mar's altíssonos e vastos;
É suave como o odor de lírios solitários.

Amor que rompe enfim os laços crus do Ser;
Um tão singelo amor, que aumenta na ventura;
Um amor tão leal que aumenta no sofrer;

Amor de tal feição que se na vida escura
É tão grande e nas mais vis ânsias do viver,
Muito maior será na paz da sepultura!

Ilha Terceira

FERNANDO PESSOA, JUNHO DE 1902


segunda-feira, 27 de junho de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS




ACASO

No acaso da rua o acaso da rapariga loura.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade, e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata,
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal de nem sequer ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio, se calhar,
Se calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loura,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo numa outra cidade,
Numa outra espécie de rua;
E houve esta que vi há muito tempo numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo o que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estarei eu a fazer versos em gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loura?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo sou o mesmo, e isso é o mesmo também.

ÁLVARO DE CAMPOS, 27 DE JUNHO DE 1929


domingo, 26 de junho de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS



ASSOUPISSEMENT

Canta-me, canta, sem parar,
Sem nada querer conseguir,
Uma canção que faça sonhar...
Sem fazer sentir...

Estou como se tivesse pena.
Não conheço ninguém no mundo.
Canto que a noite está serena
E qualquer história é amor profundo...

Tudo serve... O luar, o rio,
A barquinha que está a boiar...
Tudo menos este fastio
De desejar e de pensar...

Canta, não queres, bem sei...Nada...
Deixa-me desejar não ser
Com a alma leve e descansada...
Dormis, vestígios do saber?

FERNANDO PESSOA, 26 DE JUNHO DE 1929


sábado, 25 de junho de 2016

FAZ HOJE 88 ANOS




Da noite extensa onde não vemos
Surge um 'splendor
(Pausam os barcos sobre os remos)
Vem dar verdade à fé que temos
O nosso Rei, nosso Senhor.

Não morreu na África perdida.
Não pode ser
Que a Fé completa seja ida
Inda que vá a forma de a vida,
Pois acabar não é morrer.

Ele, o Senhor do intento erguido
Alto na história
No plaino ardente foi caído
Como um (...)


FERNANDO PESSOA, 25 DE JUNHO DE 1928


sexta-feira, 24 de junho de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




O cão que veio do abismo
Roeu-me os ossos da alma,
E erguendo a perna - o que eu cismo -
Mijou no meu misticismo
Que me dava a minha calma.

O cão veio de onde dorme
Aquele anseio que tenho
Por qualquer coisa de enorme
Que indistintamente forme
A forma de quanto estranho.

E depois de isso completo
O cão que veio do abismo
Que estava inteiro e repleto
Fez sobre tudo o dejecto
Que é hoje o meu misticismo.

ÁLVARO DE CAMPOS, 24 DE JUNHO DE 1934


quinta-feira, 23 de junho de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS



Reli, como quem lê uma obra alheia,
O que escrevi nessa distância minha
De jovem, a de que a alma ficou cheia.
Porque foi o melhor que a alma tinha;

Reli, e desconheço quem foi o poeta
Nessa ocasião em que esplendi absorto,
E o que sou hoje é uma sombra preta
Sobre o chão limpo desse poeta morto.

Reli; nem saberei que é que fui
Quando fui o poeta que não sou...
Não sei que rio por minha alma flui.
Sei que trouxe meu ser e mo levou.


FERNANDO PESSOA, 23 DE JUNHO DE 1934


quarta-feira, 22 de junho de 2016

FAZ HOJE 99 ANOS




CANÇÃO TRISTE

O Sol, que dá nas ruas, não dá
No meu carinho.
A felicidade quando virá?
Por que caminho?

Horas e horas por fim são meses
De ansiado bem.
Eu penso em ti indecisas vezes
E tu ninguém!

Não tenho barco para a outra margem,
Nem sei do rio.
Ah! E envelhece já a tua imagem
E eu sinto frio.

Não me resigno, não me decido,
Choro querer...
Sempre eu! Ó sorte dá-me o olvido
De pertencer!

Enterrei hoje outra vez meu sonho
Amante má.
Tornou-se triste por ser risonho,
E não ser já.

Inútil brisa roçando leve
Já morta flor,
Saudando a um bem que não se teve
Vácuo com dor.

Triste se é triste, e de o ser não finda
Quando é conforto
Como mãe louca que embala ainda
Um filho morto.

FERNANDO PESSOA, 22 DE JUNHO DE 1917


terça-feira, 21 de junho de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS




TOMÁMOS A VILA DEPOIS DE INTENSO BOMBARDEAMENTO

A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um comboio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe -
Dos que bóiam nas banheiras -
À beira da estrada.

Cai sobre a estrada o escuro,
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...

E o da criança loura?


FERNANDO PESSOA, 21 DE JUNHO DE 1929

segunda-feira, 20 de junho de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS



BICARBONATO DE SÓDIO

Súbita, uma angústia...
Ah que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!

Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.

Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?

Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não, vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E-xis-tir...

Meu Deus! Que budismo me esfria o sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!

Dêem-me de beber, que não tenho sede!

ÁLVARO DE CAMPOS, 20 DE JUNHO DE 1930


domingo, 19 de junho de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS



A palidez do dia é levemente dourada.
O sol de inverno faz luzir como orvalho as curvas
Dos troncos de ramos secos.
O frio leve treme.

Desterrado da pátria antiquíssima da minha
Crença, consolado só por pensar nos deuses,
Aqueço-me trémulo
A outro sol do que este -

O sol que havia sobre o Parténon e a Acrópole
O que alumiava os passos lentos e graves
De Aristóteles falando.
Mas Epicuro melhor

Me fala, com a sua cariciosa voz terrestre
Tendo para os deuses uma atitude também de deus,
Sereno e vendo a vida
À distância a que está.




RICARDO REIS, 19 DE JUNHO DE 1914


sábado, 18 de junho de 2016

FAZ HOJE 84 ANOS




Estou cansado da inteligência.
Pensar faz mal às emoções.
Uma grande reacção aparece.
Chora-se de repente, e todas as tias velhas fazem chá de novo
Na antiga casa da quinta velha.
Pára, meu coração!
Sossega, minha esperança factícia!
Quem me dera nunca ter sido senão o menino que fui...
Meu sono bom, porque tinha simplesmente sono e não ideias que esquecer!
Meu horizonte de quintal e praia!
Meu fim antes do princípio!

Estou cansado da inteligência.
Se ao menos com ela se percebesse qualquer coisa!
Mas só percebo um cansaço no fundo, como baixam na taça
Aquelas coisas que o vinho tem e amodorram o vinho.

ÁLVARO DE CAMPOS, 18 DE JUNHO DE 1930


sexta-feira, 17 de junho de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS



POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA

I

Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios
E as rosas também,
E terei os lírios -
Os melhores lírios -
E as melhores rosas
Sem receber nada,
A não ser a prenda
Da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.

II

Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guardo as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem -
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestidinho azul, meus Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova - tão jovem como diria o Ricardo Reis -
E a minha visão de ti explode literariamente,

E deito-me para trás na praia e rio como um elemento inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!

ÁLVARO DE CAMPOS, 17 DE JUNHO DE 1929


quinta-feira, 16 de junho de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelos sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.

Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...
Isto.

Um internado num manicómio é, ao menos, alguém.
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos,
Estou assim...

Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.

Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, a por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?

Estala, coração de vidro pintado!

ÁLVARO DE CAMPOS, 16 DE JUNHO DE 1934


quarta-feira, 15 de junho de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS




Vai alta a nuvem que passa,
Branca, desfaz-se a passar,
Até que parece no ar
Sombra branca que esvoaça.

Assim no pensamento
Alta vai a intuição,
Mas desfaz-se em sonho vão
Ou em vago sentimento.

E se quero recordar
O que foi nuvem ou sentido
Só vejo alma ou céu despido
Do que se desfez no ar.

FERNANDO PESSOA, 15 DE JUNHO DE 1933