sexta-feira, 31 de janeiro de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS





FÉRIAS DE SETEMBRO

Aqui estou posto, onde algas e cortiça
À praia sem ninguém a maré traz;
Onde não há verdade nem justiça
Mas só o som sem nada que o mar faz.

E aqui, ao pé do antigo promontório,
Alheio em pedra bruta ao nome seu,
Volto, depois de um grande fado inglório,
À confusa substância que sou eu.

Tantas grandezas me pesaram na alma,
Tanta vicissitude me formou,
Que agora, a sós sem mim, não sei da calma
Que deveria ter, nem sei quem sou.

Fui tão estrangeiro no que fui, tão vago
Andei de mim em quanto consegui,
Que me recolho como o fim de um estrago
Do que me resta, e não é nada em si.

Pensei, fugindo às torres e às praças,
Trazer comigo eu mesmo, e aqui me achar,
Liberto de venturas e desgraças,
Tal qual eu sou, sem nada me alterar.

Mas ai!, não é em vão que se caminha
Fora da alma, entregue à vida e à sorte.
A alma que trago já não é a minha.
Sou um sobrevivente à própria morte.

Deixei quem fui nas algas e a cortiça
De um mar pior que este que se ergue aqui.
Aqui não há verdade nem justiça.
Não as achei também onde vivi.

Pesa-me a simples natureza. Anseio
Por me encontrar, e sinto-me sentir
Que só voltando ao exílio de onde veio
Minha alma poderá se conseguir.

Mas nem posso ficar nem regressar.
Vendi a alma aos dias e às noções.
Não tenho pátria em mim a que voltar,
Nem próprios pensamentos ou emoções.

Metade meu, metade alheio, agora.

FERNANDO PESSOA, 31 DE JANEIRO DE 1930


quinta-feira, 30 de janeiro de 2020

FAZ HOJE 99 ANOS





À la manière de A. Caeiro

A mão invisível do vento roça por cima das ervas.
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,
E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.

Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.
Também por mim um desejo inutilmente bafeja
As hastes das intenções, as flores do que imagino,
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.

RICARDO REIS, 30 DE JANEIRO DE 1921


quarta-feira, 29 de janeiro de 2020

FAZ HOJE 87 ANOS




A clareza falsa, rígida, não-lar dos hospitais
A alegria humana, vivaz, sobre o caso da vizinha
Da mãe inconsolável a que o filho morreu há um ano

Trapos somos, trapos amamos, trapos agimos -
Que trapo tudo que é este mundo!

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933


terça-feira, 28 de janeiro de 2020

FAZ HOJE 98 ANOS





CANÇÃO DE OUTONO

No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO DE 1922