sexta-feira, 31 de dezembro de 2010

FAZ HOJE 81 ANOS


Nunca, por mais que viaje, por mais que conheça

O sair de um lugar, o chegar a um lugar, conhecido ou desconhecido,

Perco, ao partir, ao chegar, e na linha móbil que os une,

A sensação de arrepio, o medo do novo, a náusea –

Aquela náusea que é o sentimento que sabe que o corpo tem a alma.

Trinta dias de viagem, três dias de viagem, três horas de viagem –

Sempre a opressão se infiltra no fundo do meu coração.



ÁLVARO DE CAMPOS, 31 DE DEZEMBRO DE 1929

quinta-feira, 30 de dezembro de 2010

FAZ HOJE 76 ANOS


Não: devagar.

Devagar, porque não sei

Onde quero ir.

Há entre mim e os meus passos

Uma divergência instintiva.



Há entre quem sou e estou

Uma diferença de verbo

Que corresponde à realidade.



Devagar

Sim, devagar

Quero pensar o que quer dizer

Este devagar



Talvez o mundo exterior tenha pressa de mais.

Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.

Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima

Talvez isso tudo

Mas o que me preocupa é esta palavra: devagar

O que é que tem de ser devagar?

Se calhar é o universo

A verdade manda Deus que se diga.

Mas ouviu alguém isso a Deus?



ALVARO DE CAMPOS, 30 DE DEZEMBRO DE 1934

quarta-feira, 29 de dezembro de 2010

FAZ HOJE ANOS

FAZ HOJE 99 ANOS


O Bibliófilo


Ó ambições!... Como eu quisera ser

Um pobre bibliófilo parado

Sobre o eterno folio desdobrado

E sem mais na consciência de viver.



Podia a primavera enverdecer

E eu sempre sobre o livro recurvado

Sorriria a um arcaico passado

De uma medieval moça qualquer.



A vida não perdia nem ganhava

Nada por mim, nenhum gesto meu dava

Um gesto mais ao amor profundo.



E eu lia, a testa contra a luz acesa,

Sem nada querer ser em beleza

E sem nada ter sido com o mundo.


FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1919



Cansado do universo e sociedade

Da abstracção que não finda e é o fundo

Do meu fatal pôr-olhos sobre o mundo,

Pobre de amor e rico de ansiedade,

Já nada me seduz nem me persuade.



FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1919



FAZ HOJE 92 ANOS


Báquica Medieval


O nosso patrão é pai.

Faz-nos o bem.

Bebamos à saúde dele,

E à nossa também!

Não falte trigo p’ra semente,

Remédio ao doente,

Nem vinho à gente!



O nosso rei é padrinho.

Que Deus o ajude!

Bebamos à saúde dele,

E à nossa saúde!

Não falte caridade a quem deve,

Direito a quem recebe,

Nem vinho a quem bebe!



E vá à saúde da terra.

Que é bem preciso!

Livre-nos Deus, a nós e a ela,

De seca e granizo!

Que há três coisas que Deus proibiu –

A fome, o frio,

E um copo vazio!



FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1918

terça-feira, 28 de dezembro de 2010

FAZ HOJE 91 ANOS

Hoje em que nada é português
Salvo a desgraça,
E em que um sopro maligno e soez
Por sobre as nossas almas passa;


Hoje, em que manda quem serviu
Por condição,
E o próprio amor à Pátria é frio
Por Pátria ser um nome vão;


Hoje que, ruído o trono e a glória
Só o Traidor,
O louro e o ouro da vitória
Goza, vil como um vil actor;


Hoje uma voz que se levante
E diga, embora
Chore de ver, chorando cante,
Que vem nascendo além a Aurora,


Diga em palavras já tocadas
De outra Visão,
O Rei, e a vinda das espadas,
E o fim da Horda e da Traição.


FERNANDO PESSOA 28 DE DEZEMBRO DE 1919

segunda-feira, 27 de dezembro de 2010

FAZ 98 ANOS


Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de


Londres p’ra York, onde nasceste (dizes…
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes,


Embora não o saibas, que morri…
Mesmo ele a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará… Depois vai dar


A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande…
Raios partam a vida e quem lá ande!....


(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente,
uns quatro meses antes do “Opiário”, portanto
Dezembro de 1913)

ÁLVARO DE CAMPOS, DEZEMBRO DE 1913

domingo, 26 de dezembro de 2010

FAZ 99 ANOS


ANÁLISE


Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica ao meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longamente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti nem a mim sinto.
E assim neste ignorar-me a ver-te, minto
À ilusão da sensação, e sonho
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que me sinto que sonho o que me sinto sendo.


FERNANDO PESSOA, DEZEMBRO DE 1911

sábado, 25 de dezembro de 2010

POEMAS DE NATAL


FAZ HOJE 98 ANOS
Uma Melodia

Uma melodia
No meu ser nasceu…
Senti-a, perdi-a;
Nascendo, morreu…

Relâmpago breve,
Vendo-a, não a vi;
Mas minha alma a teve,
Nova, e sua, e em si.


Com que horror de mágoa
Buscu-a em vão, em vão…
Fujiu-me da mão, água…
Nem abri a mão!


Que importa, olhos meus?
Passou por meu ser
De Deus para Deus…
Torná-la-ei a ter…


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1912


Faz hoje 92 anos


No ouro sem fim da tarde morta,
Na poeira de outro sem lugar
Da tarde que me passa à porta
Para não parar.


No silêncio dourado ainda
Dos arvoredos verde-fim,
Recordo. Eras antiga e linda
E estás em mim…


Tua memória há sem que houvesses,
Teu ar, sem que fosses alguém.
Como uma brisa me estremeces
E eu choro um bem…


Perdi-te. Não te tive. A hora
É suave para a minha dor.
Deixa meu ser que rememora
Sentir o amor,


Ainda que amar seja um receio,
Uma lembrança falsa e vã.
E a noite deste vago anseio
Não tenha manhã.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1918


FAZ HOJE 92 ANOS


O sol às casas, como a montes,
Vagamente doura.
Na cidade sem horizontes
Uma tristeza loura


Com a sombra da tarde desce
E um pouco dói
Porque quanto é tarde
Tudo quanto foi.


Nesta hora mais que em outra choro
O que perdi.
Em cinza e ouro rememoro
E nunca o vi.


Felicidade por nascer,
Mágoa a acabar,
Ânsia de só aquilo ser
Que há-de ficar –


Sussurro sem que se ouça, palma
Da isenção.
Ó tarde, fica noite, e alma
Tenha perdão.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1918



Faz hoje 87 anos


Se hás-de ser o que choras
Ter que ser, não o chores.
Se toda a mole imensa
Do mundo ser-te-á noite,
Aproveita esse breve
Dia, e sem choro ou cura
Goza-o, contente por viveres
O pouco que te é dado.


RICARDO REIS, 25 DE DEZEMBRO DE 1923


FAZ HOJE 80 ANOS


Aquela loura a olhar a rir
Que tinha o lenço descaído
E cujo andar faz descobrir
O que há por trás do seu vestido,
Aquela loura fez-me mal


E o meu olhar foi casual
É isto. A gente vive asceta
E acha bastante só pensar
E em plena rua vem a seta
Que um corpo é arco de atirar.
Sim, o ascetismo continua
Mas fica essa visão da rua.


E entre mim e o que escrevo passa
O maneio que não olvido,
O olhar rindo com graça
A boca, o lenço descaído,
E já o meu coração não tem
A paz que a ela e a mim convém.


Mas (não desejo exagerar)
Não pesa muito essa visão
Que vem assim arreliar
A minha firme solidão…
O mal que faz consegue conter
Toda a brandura do prazer.


Bem: vamos à filosofia.
A cada qual, inda se o nada
Acata, há sempre uma alegria
Que dá e passa e dói e agrada…
E solidão todos a têm
O caso é que procurem bem.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS

Chove. É dia de Natal
Lá para o Norte é melhor:
Há neve que faz mal
E um frio que ainda é pior.


E toda a gente é contente
Porque é dia de o ficar.
Chove no Natal presente,
Antes isso que nevar.


Pois apesar de ser esse
O Natal da convenção,
Quando o corpo me arrefece
Tenho frio e Natal não.


Deixo sentir a quem quadra
E o Natal a quem o faz,
Pois se vai mais uma quadra
Apanho um Natal nos pés.


Não quero ser dos ingratos
Mas, com este mesmo céu,
Puseram-me nos sapatos
Só o que a chuva me deu.


FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


Não tenho ninguém que me ame.
‘Spera lá, tenho; mas é
Difícil ter-se a certeza
Daquilo em que se não crê.


Não é não crer por descrença,
Porque sei: gostam de mim.
É um não crer por feitio
E teimar em ser assim.


Não tenho ninguém que me ame.
Para este poema existir
Tenho por força de ter
Esta mágoa de sentir.


Que pena não ser amado!
Meu perdido coração!
Et cetera, e está acabado
O meu poema pensado.
Sentir é outra questão…

FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


O sino da igreja velha
Tem um som familiar,
E as casas baixas de telha
Têm telhados a brilhar.


Não sei a que o sino toca
Não sei o que o sino evoca
Meu coração não coloca
As coisas no seu lugar.


Era tão feliz outrora
Que já não sei se era eu.
Aquele que sou agora
Se existe, é porque morreu.


Não tem missa na igreja,
Nem coisa alguma que seja
O que sente ou deseja.
E o sino cessa no ceu.


E à missa a que vão crentes
Ou a que vai quem lá vai
Que o sino com sons frequentes
Toca esse som que lhe sai –


Seja o que for vai tocando
E no meu coração brando
Como uma clepsidra soando
Cada som lembrado cai.

FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


Na praia baixa a onde morre
E se desfaz a chiar,
Olho, mas nada me ocorre
Senão que estou vendo o mar.


Dizem que o mar reza cânticos,
Que a onda é renda e veludo,
Mas os poetas românticos
Já venderam isso tudo.


Por isso ante o mar real
E as ondas como ali há,
Acho tudo natural.
Versos? Um outro os fará…


FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930


FAZ HOJE 80 ANOS


Por trás daquela janela
Cuja cortina não muda
Coloco a visão daquela
Que a alma em si mesma estuda
No desejo que a revela.


Não tenho falta de amor.
Quem me queira não me falta.
Mas teria outro sabor
Se isso fosse interior
Àquela janela alta.


Porquê? Se eu soubesse, tinha
Tinha tudo o que desejo ter.
Amei outrora a Rainha,
E há sempre na alma minha
Um trono por preencher.


Sempre que posso sonhar,
Sempre que não vejo, ponho
O trono nesse lugar;
Além da cortina é o lar,
Além da janela o sonho.


Assim, passando, entreteço
O artifício do caminho
E um pouco de mim me esqueço.
Pois mais nada à vida peço
Do que ser o seu vizinho.


FERNANDO PESSOA 25 DE DEZEMBRO DE 1930