quinta-feira, 28 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS





No país das lagoas a tarde 
É uma lagoa também... 
O céu em água de fogo arde 
E a sombra vem 
Sem rasto, ou alarde 
Como as sombras que as águas têm. 

No país das lagoas doente 
Passei, e o coração 
Ficou-me entre a extensão silente 
Da solidão, 
Como uma alga ou um reflexo - hálito rente 
À consciência exterior da sensação. 

No país das lagoas, paisagem 
Que faz a alma parar 
De uma angústia sem nome e sem fim - pajem 
De não poder pensar - 
No país das lagoas passei como uma aragem 
Por sobre as lagoas doentes, à procura do mar. 


FERNANDO PESSOA, 28 DE FEVEREIRO DE 1917

quarta-feira, 27 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 93 ANOS





À MEMÓRIA DO PRESIDENTE-REI
                 SIDÓNIO PAIS


Longe da fama e das espadas, 
Alheio às turbas ele dorme. 
Em torno há claustros ou arcadas? 
Só a noite enorme. 

Porque para ele, já virado 
Para o lado onde está só Deus,  
São mais que Sombra e que Passado 
A terra e os céus. 

Só com sua alma e com a treva, 
A alma gentil que nos amou 
Inda esse amor e ardor conserva? 
Tudo acabou? 

No mistério onde a Morte some 
Aquilo a que a alma chamou a vida 
Que resta dele a nós - só o nome 
E a fé perdida? 

Ali o gesto, a astúcia, a lida, 
São já para ele, sem as ver, 
Vácuo de acção, sombra perdida, 
Sopro sem ser. 

Se Deus o havia de levar, 
Para que foi que no-lo trouxe - 
Cavaleiro leal, do olhar 
Altivo e doce? 

Soldado-rei que oculta sorte 
Como em braços da Pátria ergueu, 
E passou como o vento norte 
Sob o ermo céu. 

Mas a alma acesa não aceita 
Essa morte absoluta, o nada 
De quem foi Pátria, e fé eleita, 
E ungida espada. 

Se o amor crê que a Morte mente 
Quando a quem quer leva de novo, 
Quão mais crê o Rei ainda existente 
O amor de um povo! 

Quem ele foi sabe-o a Sorte, 
Sabe-o o Mistério e a sua lei. 
A Vida fê-lo herói, e a Morte 
O sagrou Rei! 

Não é com fé que nós não cremos 
Que ele não morra inteiramente. 
Ah, sobrevive! Inda o teremos 
Em nossa frente. 

No oculto para o nosso olhar, 
No visível à nossa alma, 
Inda sorri com o antigo ar 
Da força calma. 

Ainda de longe nos anima, 
Inda na alma nos conduz - 
Gládio de fé erguido acima 
Da nossa cruz! 

Nada sabemos do que oculta 
O véu igual de noite e dia. 
Mesmo ante a Morte a Fé exulta: 
Chora e confia. 

Apraz ao que em nós quer que seja 
Qual Deus quis nosso querer tosco, 
Crer que ele vela, benfazeja 
Sombra connosco. 

Não sai da alma nossa a fé 
De que, alhures que o mundo e o fado, 
Ele inda pensa em nós e é 
O bem-amado. 

Tenhamos fé, porque ele foi. 
Deus não quer mal a quem o deu. 
Não passa como o vento o herói 
Sob o ermo céu. 

E amanhã, quando queira a Sorte, 
Quando findar a expiação, 
Ressurrecto da falsa morte, 
Ele já  não,  

Mas a ânsia nossa que encarnara, 
A alma de nós de que foi braço, 
Tornará, nova forma clara, 
Ao tempo e ao espaço. 

Tornará feito qualquer outro, 
Qualquer cousa de nós com ele; 
Porque o nome do herói morto 
Inda compele; 

Inda comanda, a armada ida 
Para os campos da Redenção. 
Às vezes leva à frente, erguida 
"Spada, a Ilusão. 

E um raio só do ardente amor, 
Que emana só do nome seu, 
Dê sangue a um braço vingador, 
Se esmoreceu. 

Com mais armas que com Verdade 
Combate a alma por quem ama. 
É lenha só a Realidade: 
A fé é a chama. 

Mas ai, que a fé já não tem forma 
Na matéria e na cor da Vida, 
E, pensada, em dor se transforma 
A fé perdida! 

P"ra que deu Deus a confiança 
A quem não ia dar o bem? 
Morgado da nossa esperança, 
A Morte o tem! 

Mas basta o nome e basta a glória 
Para ele estar connosco, e ser 
Carnal presença de memória 
A amanhecer; 

"Spectro real feito de nós, 
Da nossa saudade e ânsia, 
Que fala com oculta voz 
Na alma, a distância; 

E a nossa própria dor se torna 
Uma vaga ânsia, um "sperar vago, 
Como a erma brisa que transtorna 
Um ermo lago. 

Não mente a alma ao coração. 
Se Deus o deu, Deus nos amou. 
Porque ele pode ser, Deus não 
Nos desprezou. 

Rei-nato, a sua realeza, 
Por não podê-la herdar dos seus 
Avós, com mística inteireza 
A herdou de Deus; 

E, por directa consonância 
Com a divina intervenção, 
Uma hora ergueu-nos alta a ânsia 
De salvação. 

Toldou-o a Sorte que o trouxera 
Outra vez com nocturno véu. 
Deus p’ra que no-lo deu, se era 
P"ra o tornar seu? 

Ah, tenhamos mais fé que a esp’rança! 
Mais vivo que nós somos, fita 
Do Abismo onde não há mudança 
A terra aflita. 

E se assim é; se, desde o Assombro 
Aonde a Morte as vidas leva, 
Vê esta pátria, escombro a escombro, 
Cair na treva; 

Se algum poder do que tivera 
Sua alma, que não vemos, tem, 
De longe ou perto - porque espera? 
Porque não vem? 

Em nova forma ou novo alento, 
Que alheio pulso ou alma tome, 
Regresse como um pensamento, 
Alma de um nome! 

Regresse sem que a gente o veja, 
Regresse só que a gente o sinta - 
Impulso, luz, visão que reja 
E a alma pressinta! 

E qualquer gládio adormecido, 
Servo do oculto impulso, acorde, 
E um novo herói se sinta erguido 
Porque o recorde! 

Governa o servo e o jogral. 
O que íamos a ser morreu. 
Não teve aurora a matinal 
‘Strela do céu. 

Vivemos só de recordar. 
Na nossa alma entristecida 
Há um som de reza a invocar 
A morta vida; 

E um místico vislumbre chama 
O que, no plaino trespassado, 
Vive ainda em nós, longínqua chama - 
O DESEJADO. 

Sim, só há a esp’rança, como aquela 
- E quem sabe se a mesma? - quando 
Se foi de Aviz a última estrela 
No campo infando. 

Novo Alcácer Quibir na noite! 
Novo castigo e mal do Fado! 
Por que pecado novo o açoite 
Assim é dado? 

Só resta a fé, que a sua memória 
Nos nossos corações gravou, 
Que Deus não dá paga ilusória 
A quem amou. 

Flor alta do paul da grei, 
Antemanhã da Redenção, 
Nele uma hora encarnou el-rei 
Dom Sebastião. 

O sopro de ânsia que nos leva 
A querer ser o que já fomos, 
E em nós vem como em uma treva, 
Em vãos assomos, 

Bater à porta ao nosso gesto, 
Fazer apelo ao nosso braço, 
Lembrar ao sangue nosso o doesto 
E o vil cansaço, 

Nele um momento clareou, 
A noite antiga se seguiu, 
Mas que segredo é que ficou 
No escuro frio? 

Que memória, que luz passada 
Projecta, sombra, no futuro, 
Dá na alma? Que longínqua espada 
Brilha no escuro? 

Que nova luz virá raiar 
Da noite em que jazemos vis? 
Ó sombra amada, vem tornar 
A ânsia feliz. 

Quem quer que sejas, lá no abismo 
Onde a morte a vida conduz, 
Sê para nós um misticismo 
A vaga luz 

Com que a noite erma inda vazia 
No frio alvor da antemanhã 
Sente, da esp’rança que há no dia, 
Que não é vã. 

E amanhã, quando houver a Hora, 
Sendo Deus pago, Deus dirá 
Nova palavra redentora 
Ao mal que há. 

E um novo verbo ocidental 
Encarnando em heroísmo e glória, 
Traga por seu broquel real 
Tua memória! 

Precursor do que não sabemos, 
Passado de um futuro a abrir 
No assomo de portais extremos 
Por descobrir. 

Sê estrada, gládio, fé, final, 
Pendão de glória em glória erguido! 
Tornas possível Portugal 
Por teres sido! 

Não era extinta a antiga chama 
Se tu e o amor puderam ser. 
Entre clarins te a glória aclama, 
Morto a vencer! 

E, porque foste, confiando 
Em QUEM SERÁ porque tu foste, 
Ergamos a alma, e com o infando 
Sorrindo arroste, 

Até que Deus o laço solte 
Que prende à terra a asa que somos, 
E a curva novamente volte 
Ao que já fomos, 

E no ar de bruma que estremece 
(Clarim longínquo matinal!) 
O DESEJADO enfim regresse 
A Portugal! 


Fernando Pessoa, 27 de Fevereiro de 1920

terça-feira, 26 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS



Lábios que pousam e que entreabertos 
Escutam palavras do coração... 
Assim dentro dos olhos, mão 
Consciente sobre o sofá, madeixa caída 
Ligeiramente 

P’ra quê, se o sonho é melhor que a vida?  

FERNANDO PESSOA, 26 DE FEVEREIRO DE 1917

segunda-feira, 25 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS






A MARINHA

Mas o vento do Norte,
O vento do norte cheio de espuma e frio
Soprou sobre a tua sorte e sobre a minha sorte
E a nossa sorte, como uma areia levada, fugiu.
Perdeu-se na noite,
Perdeu-se na noite e no longe com o vento a soprar
E só fica na minha memória a memória do açoite
Do vento na noite que levou a minh'alma a uivar, a uivar...

Pela praia nocturna, meu amor perdido, pela praia...
Pela praia nocturna sob um céu sem lua e sem calma
Nós demos as mãos
E esquecemos a vida, e o mundo, a nossa própria alma...
O som do mar embalava, o seu ruído brusco perdia
A rudeza, o ser só exterior, vinha aureolar
Aquilo invisível em nós que nos alava e prendia
E o resto era a noite longínqua e o suspiro do mar.

Passamos por tantas terras dentro das emoções!
Buscamos tão órfãos a porta e a mãe da nossa alma!
Mas as mãos que se tinham presas sentiram os corações
Acharam-se no nosso silêncio e na noite talvez calma.

Nós éramos o Amor.   Fora de nós o oceano
Levou na noite de trás para diante o sossego do ruído
Que tarda como nós, mas não morre, embalou o meu engano
Que era certo agora em nós e no nosso absorto sentido.

Sempre estava connosco salvo a abdicação do mundo
Que toca na alma na noite e no céu e no mar
Mas o nosso amor era uma ilha no oceano sem fundo
Do consolo da vida, das ondas lá longe e do vento a esperar.

Nada jurámos. A alma era tudo, o corpo da hora
Velou-se na sombra da noite absoluta e no mar que tremia...
Quem havia além de nós com alma e com vida agora?
Fora de nós de quente e humano e certo, o que havia?

Não tínhamos vivido antes daquele momento
Antes tinha sido o nosso corpo e a nossa alma...
Vindo de uma outra bando o nosso pensamento
Que era uma calma morte e a dita da noite sem calma.

Tudo pensámos menos o amor, e só ela havia...
Cada um era só ele; o outro não era preciso...
As mãos tornando-se leves na alma que não as sentia
E tudo estava em cada um por ser o outro, o indeciso...

Pela primeira vez nada sobrava ou faltava -
Pela primeira vez nada era aos nossos pés
Nada era nada sobre o não que ali estava
Pela primeira vez, pela primeira vez

Uma pessoa impossível  feita de morte dos dois
Passeava sozinha, era o nada tudo, ali na areia...
E o mundo era uma ilusão, com seus dias e com seus sóis,
E a alma era falsa com a sua dor  e a alegria em que anseia.

Não bem alma, não bem vida, apenas amor...
Não bem nós, nem o mundo, uma outra cousa real...
E o espaço vazio em que isso era verdadeiro, um sabor
A unidade suprema, além do bem e do mal.

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917

domingo, 24 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS





Tudo foi dito antes que se dissesse.
O vento aflora vagamente a messe,
E deixa-a porque breve se apagou.
Assim é tudo-nada. Bebe e esquece.

Na eterna sesta de não desejar
Deixa-te, bêbado e asceta, estar.
Lega o amor aos outros, que a beleza
Foi feita só para se contemplar.

FERNANDO PESSOA, 24 DE FEVEREIRO DE 1933
(Dois “rubai”)

sábado, 23 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 81 ANOS



SEGUNDO GRAU


Há um frio e um vácuo no ar.
‘Stá sobre tudo a pairar,
Cinzento- preto o luar.

Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
'Sperança e inútil afã.

É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.

Absurdo erro disperso
No 'spaço, água onde é imerso
O cadáver do universo.

É como o meu coração
Nulo e pleno, vasto e vão,
Na antemanhã da visão.

FERNANDO PESSOA, 23 DE FEVEREIRO DE 1932 

sexta-feira, 22 de fevereiro de 2013

FAZ HOJE 86 ANOS



Sou como uma criança nada 
Num (…) solar antigo, 
Longe de vila, aldeia ou de estrada, 
Monótono e sombrio abrigo, 
De onde se a vida nunca vê 
Sem nunca se saber porquê. 

Tarde p’ra dor ou alegria, 
Tarde desde o primeiro dia! 

Tudo - acção, fé, prazer, amor 
Dão-me só dúvida e terror. 

Cativo de meu próprio ser, 
Submisso do meu vão destino, 
Sem ter a quem possa acolher 

Não posso ir, não sei partir. 

Em vão, de dentro de mim mesmo 
Vozes me chamam para fora, 
Em vão, tropel de (…) a esmo, 
O mundo dos outros me implora - 
Em vão. Falam a quem não sabe 
Que gesto ou que razão lhe cabe. 

De longe passam romarias, 
Ao longe o labor soa e canta, 
Pelas estradas 


FERNANDO PESSOA, 22 DE FEVEREIRO DE 1927