quarta-feira, 31 de julho de 2013

FAZ HOJE 78 ANOS



O REI

O Rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei coroaram-n'O de espinhos
E por trono Lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares ansiosos e sozinhos.
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
Essas pálpebras mortas de Jesus.

O Rei fala, e um seu gesto tudo preenche,
O som da sua voz tudo transmuda.
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Diz-me a Verdade aquela boca muda,
E essas mãos presas dão-me a Liberdade.


FERNANDO PESSOA, 31 DE JULHO DE 1935


terça-feira, 30 de julho de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS




NOMEN ET PRAETEREA NIHIL

Mina-me a alma com suavidade,
Com uma incerta angústia meu ser come
Uma vaga, indecisa saudade
Só de um nome.

Onde o ouvi? Qual era? Não o sei.
O seu efeito em mim apenas vive
E a ideia de que ouvindo-o é que criei
A dor que em mim revive.

Rainha o teve? ou que princesa morta?
Ou fada incerta o usou para fadar?
Quem ele foi agora não me importa.
Sem ele não sei já sonhar.

Ao pé dele - não sei se em quem o tinha,
Se nele só, ouvindo-o e nada mais -
Sinto a felicidade viver minha.
Sílabas irreais,

Murmúrio vago, arfar de incerta sugestão,
Tirai da flor do ramo, só para ouvir
O segredo, o mistério ou a canção,
Que faz a dor sorrir,

Indefinida incompreensão falada
Da vida por passar, como a que foi!...
Nome sem fim! Não me sejas nada!
Sem ti a vida dói...

Sem a esperança oculta no teu vago
E amortecido brilho sou apenas,
O cansaço de mim, certo e aziago,
Morta flor nada sendo à flor do lago.



FERNANDO PESSOA, 30 DE JULHO DE 1917



Tradução do título: " A voz e nada mais"

segunda-feira, 29 de julho de 2013

FAZ HOJE 89 ANOS


O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado 
Quantos anos foi de vida! 
Ah, quanto do meu passado 
Foi só a vida mentida 
De um futuro imaginado! 

Aqui à beira do rio 
Sossego sem ter razão. 
Este seu correr vazio 
Figura, anónimo e frio, 
A vida vivida em vão. 

A ‘sprança que pouco alcança! 
Que desejo vale o ensejo? 
E uma bola de criança 
Sobe mais que a minha ‘sprança 
Rola mais que o meu desejo. 

Ondas do rio, tão leves 
Que não sois ondas sequer, 
Horas, dias, anos, breves 
Passam - verduras ou neves 
Que o mesmo sol faz morrer. 

Gastei tudo que não tinha. 
Sou mais velho do que sou. 
A ilusão, que me mantinha, 
Só no palco era rainha: 
Despiu-se, e o reino acabou. 

Leve som das águas lentas, 
Gulosas da margem ida, 
Que lembranças sonolentas 
De esperanças nevoentas! 
Que sonhos o sonho e a vida! 

Que fiz de mim? Encontrei-me 
Quando estava já perdido. 
Impaciente deixei-me 
Como a um louco que teime 
No que lhe foi desmentido. 

Som morto das águas mansas 
Que correm por ter que ser, 
Leva não só as lembranças 
Mas as mortas esperanças - 
Mortas, porque hão-de morrer. 

Sou já o morto futuro. 
Só um sonho me liga a mim - 
O sonho atrasado e obscuro 
Do que eu devera ser - muro 
Do meu deserto jardim. 

Ondas passadas, levai-me 
Para o olvido do mar! 
Ao que não serei legai-me, 
Que cerquei com um andaime 
A casa por fabricar. 





FERNANDO PESSOA, 29 DE JULHO DE 1924

domingo, 28 de julho de 2013

FAZ HOJE 78 ANOS



A OUTRA

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um ao outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são de mel de boca,
São que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podem ter.
Quem abraço?
A Outra?

Bem sei, és bela, és quem desejo...
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso
Da Outra?

Ah, talvez, mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar,
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais alguém na viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remo e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, o teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!





FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935

sábado, 27 de julho de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS




Teu perfil, teu olhar real ou feito, 
Lembra-me aquela eterna ocasião 
Em que eu amei Semiramis, eleito 
Daquela plácida visão. 

Amei-a, é claro, sem que o tempo e espaço 
Tivessem nada com o meu amor. 
Por isso guardo desse amor escasso 
O meu amor maior. 

Mas, ao olhar-te, lembro, e reverbera 
Quem fui em que eu sou. 
Quando eu amei Semiramis, já era 
Tarde no Fado, e o amor passou. 

Quanta perdida voz cantou tão bem
Nos séculos perdidos que hoje são
Uma memória irreal do coração!
Quanta voz viva, hoje de ninguém!


FERNANDO PESSOA, 27 DE JULHO DE 1934


sexta-feira, 26 de julho de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS




Depois que todos foram
E foi também o dia,
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e a minha agonia.

A festa fora alheia
E depois que acabou
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Quem eu fui e quem sou.

Tudo fora por todos.
Brincaram, mas enfim
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Só eu, e eu sem mim.

Talvez que no parque antigo
A festa volte a ser.
Ficaram entre as sombras
Das áleas apertadas
Eu e quem sei não ser.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JULHO DE 1930


quinta-feira, 25 de julho de 2013

FAZ HOJE 97 ANOS



Há uma vaga mágoa
No meu coração.
Como que um som de água
Suma solidão...
Um som ténue de água...

Memoro o que, morto,
Ainda vive em mim
Memoro-o, absorto
Num sonho sem fim,
Estéril e absorto.

Será que me basta
Esta vida em vão?
Que nada se afasta
Da sua solidão...
Nem de mim me afasta?

Não sei. Sofro o acaso
Da mágoa em meu ser...
Cismo, e há em mim o ocaso
Do que quis viver -
Sempre só o ocaso. 



FERNANDO PESSOA, 25 DE JULHO DE 1916

quarta-feira, 24 de julho de 2013

FAZ HOJE 98 ANOS

Ah quem me dera a calma
De alguém me compreender e ser comigo!
 Meu mais próximo amigo
Dista de mim o infinito de uma alma.

 Não tenho confidente
Salvo Deus, porque ele é meu ser por dentro,
 Dobro-me para o centro
Do meu ser, Deus, que me continua, ausente.


FERNANDO PESSOA, 24 DE JULHO DE 1915


terça-feira, 23 de julho de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS


Todos dias agora acordo com alegria e pena.
Antigamente acordava sem sensação nenhuma; acordava.
Tenho alegria e pena porque perco o que sonho
E posso estar na realidade onde está o que sonho.
Não sei o que hei-de fazer das minhas sensações.
Não sei o que hei-de ser comigo.
Quero que ela me diga qualquer coisa para eu acordar de novo.

Quem ama é diferente de quem é
É a mesma pessoa sem ninguém.

ALBERTO CAEIRO, 23 DE JULHO DE 1930

segunda-feira, 22 de julho de 2013

FAZ HOJE 88 ANOS



I

Que triste, à noite, no passar do vento, 
O transvasar da imensa solidão 
Para dentro do nosso coração, 
Por sobre todo o nosso pensamento. 

No sossego sem paz se ergue o lamento 
Como de universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são 
Sentinelas do nosso isolamento. 

"Stamos sós com a treva e a voz do nada. 
Tudo quanto perdemos mais perdemos. 
De nós aos que se foram não há "strada. 

O vácuo incarna em nós, na vida; e os céus 
São uma dúvida certa que vivemos. 
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus. 


II

"Stou só. A atra distância, que infinita 
A alma separa de outra, se alargou. 
Em mim, porém, meu ser se unificou. 
Sou um universo morto que medita. 

Se estendo a mão na solidão aflita, 
Nada há entre ela e aquilo que tocou. 
Satélite de um astro que findou, 
Rodeio o abismo, "strela erma e maldita. 

Não há porta no cárcere sem fim 
Em que me vivo preso. Nunca houve 
Porta neste meu ser que finda em mim. 

Vivo até no passado a solidão. 
Na erma noite agora o vento chove 
E um novo nada enche-me o coração... 

III

Evoco em vão lembranças comovidas - 
Quadros, afectos, rostos e ilusões 
São pó - pó frio, cinza sem visões, 
E são vidas ou cousas já vividas. 

Quê? Até do passado sinto vivas 
As cousas que fui eu. Que solidões 
Me sinto! 

E, sem orgulho de ser todo o Inferno 
E vivo em mim a angústia insuperável 
Do ermo que se sente vácuo e eterno. 



FERNANDO PESSOA, 22 DE JULHO DE 1925

domingo, 21 de julho de 2013

FAZ HOJE 92 ANOS



Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.


FERNANDO PESSOA, 21 DE JULHO DE 1913

sábado, 20 de julho de 2013

FAZ HOJE 100 ANOS




Ó praia de pescadores,
Neste pleno dia mole...
Acalmam todas as dores
Quando se estendem ao sol...

Procuro sereno o jeito
De receber toda a luz
E esta praia onde me deito
É quente e macia cruz.

Como uma vela ou uma rede
Ou numa vela deitado
E acalma em mim toda a sede
De me querer sossegado...

E ali p'ra além de meus pés
Ruge o mar próximo e eterno...
Tenho toda a alma rés-vés
De um vago sorriso terno

Que envolve em oca bondade
O céu vazio que fito
Se relembro, é sem saudade...
E adormeço se medito...

Até que sob mim a areia
É mar e eu sinto embalar-me
O som bom da maré cheia
A trazer-me e a levar-me.

E barco de nulo sorvo
Com todo o corpo o saber
Que o sentir-me não é estorvo
A sentir ou nada ser.

E de tanto olhar o céu
Sinto-me ele - o sol me doura.
Tiro o ser eu como a um véu
E estou por fora da Hora...





FERNANDO PESSOA, 20 DE JULHO DE 1913