quarta-feira, 12 de janeiro de 2011

FAZ HOJE 84 ANOS


ODE MORTAL



Tu, Caeiro, meu mestre, qualquer que seja o corpo

Com que vestes agora, distante ou perto, a essência

Da tua alma universal localizada,

Do teu corpo divino intelectual…



Viste com a tua cegueira perfeita, sabes o não ver…

Porque o que viste com os teus dedos materiais e admiráveis

Foi a face sensível, e não a face fisiognómica das coisas

Foi a realidade, e não o real.

Porque a verdade que é tudo é só a verdade que há em tudo

E a verdade que há em tudo é a verdade que o excede!

É à luz que ela é visível,



E ela só é visível porque há luz.

Ah, sem receio!

Ah, sem angústia!

Ah, sem cansaço antecipado da marcha

Nem cadáver velado pelo próprio cadáver na ideia

Nas noites em que o vento assobia no mundo deserto

E a casa onde durmo é o túmulo de tudo,

Nem o sentir-se morto impossivelmente sentindo-se cadáver,

Nem a consciência de não ter consciência dentro de tábuas e chumbo,

Nem nada…

Olho o céu de dia e olho o céu de noite

E este universo ‘sférico e côncavo

Vejo-a como uma esfera dentro da qual vivemos,

Limitada porque é a parte de dentro

Mas com estrelas e o sol rasgando o visível

Por fora, para o convexo que é infinito…



Gritai de alegria, gritai comigo, gritai,

Coisas cheias, sobre-cheias,

Que sois minha vida turbilhonante…

Eu vou sair da esfera oca

Não por uma estrela, mas pela luz de uma estrela –

Vou para o espaço real…

Que espaço cá dentro é espaço de estar fechado

E só parece infinito por estar fechado muito longe…

Muito longe em pensá-lo.



A minha mão está já no puxador-luz.

Vou abrir com um gesto largo,

Com um gesto autêntico e mágico,

A Porta para o Convexo,

A Janela para o Informe,

A Razão para o maravilhoso definitivo.



Vou poder circum-navegar por fora este dentro

Que tem as estrelas no fim, vou ter o céu

Por baixo do sobrado curvo –

Tecto da cave das coisas reais,

Da abóbada nocturna da morte e da vida…



Vou partir para FORA,

Para o Arredor Infinito,

Para a circunferência exterior, metafísica,

Para a luz por fora da noite,

Para a Vida-morte por fora da morte-Vida.



E aí, no Verdadeiro,

Tirarei os astros e a vida da algibeira como um presente ao Certo,

Lerei a Vida de novo, como uma carta guardada

E então, com luz melhor, verei bem a letra e saberei.



O cais está cheio de gente a ver-me partir.

Mas o cais é à minha volta e eu encho o navio –

E o navio é cama, caixão, sepultura –

E eu não sei o que sou pois já não estou ali…



E eu, que cantei

A civilização moderna, aliás igual à antiga,

As coisas do meu tempo só porque esse tempo foi meu,

As máquinas, os motores,

Vou em diagonal a tudo para cima.

Passo pelos interstício de tudo,

E como um pó sem ser rompo o envólucro

E partirei, globo-trotter do Divino,

Quantas vezes, quem sabe?, regressando ao mesmo ponto

(Quem anda de noite que sabe do andar de noite?)

Levarei na sacola o conjunto do visto –

O céu e de estrelas , e o sol em todos os modos,

E todas as estações e as suas maneiras de cores,

E os campos, e as serras, e as terras que cessam em praias

E o mar para além, e para além do mar que há além.



E de repente se abrirá a Última Porta das coisas,

E Deus, como um Homem, me aparecerá por fim.

E será o Inesperado que eu esperava –

O Desconhecido que eu conheci sempre –

O único que eu sempre conheci.



ÁLVARO DE CAMPO, 12 DE JANEIRO DE 1927


Sem comentários: