domingo, 31 de janeiro de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS




FÉRIAS DE SETEMBRO

Aqui estou posto, onde algas e cortiça
À praia sem ninguém a maré traz;
Onde não há verdade nem justiça
Mas só o som sem nada que o mar faz.

E aqui, ao pé do antigo promontório,
Alheio em pedra bruta ao nome seu,
Volto, depois de um grande fado inglório,
À confusa substância que sou eu.

Tantas grandezas me pesaram na alma,
Tanta vicissitude me formou,
Que agora, a sós sem mim, não sei da calma
Que deveria ter, nem sei quem sou.

Fui tão estrangeiro no que fui, tão vago
Andei de mim em quanto consegui,
Que me recolho como o fim de um estrago
Do que me resta, e não é nada em si.

Pensei, fugindo às torres e às praças,
Trazer comigo eu mesmo, e aqui me achar,
Liberto de venturas e desgraças,
Tal qual eu sou, sem nada me alterar.

Mas ai!, não é em vão que se caminha
Fora da alma, entregue à vida e à sorte.
A alma que trago já não é a minha.
Sou um sobrevivente à própria morte.

Deixei quem fui nas algas e a cortiça
De um mar pior que este que se ergue aqui.
Aqui não há verdade nem justiça.
Não as achei também onde vivi.

Pesa-me a simples natureza. Anseio
Por me encontrar, e sinto-me sentir
Que só voltando ao exílio de onde veio
Minha alma poderá se conseguir.

Mas nem posso ficar nem regressar.
Vendi a alma aos dias e às noções.
Não tenho pátria em mim a que voltar,
Nem próprios pensamentos ou emoções.

Metade meu, metade alheio, agora.

FERNANDO PESSOA, 31 DE JANEIRO DE 1930


sábado, 30 de janeiro de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS





Algures no tempo ido,
Num 'spaço já esquecido,
Tive, guardada, não sei
Onde, nem se inda a terei,
Uma pequena porção
De ser feliz sem razão.

É uma espécie de fermento
Que se usa no pensamento
Para fazer bolo doce.
Com uma pequena dose
Consegue-se o que se quer.
O pior de tudo é viver.

Uma mão-cheia é bastante
Para aproveitar o instante
E dourá-lo de elegia.
Usa-se com água fria.
Outras é com água quente
(Lágrimas). É indiferente.

FERNANDO PESSOA, 30 DE JANEIRO DE 1931


sexta-feira, 29 de janeiro de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS



Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tictaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que se não conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.

Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu...

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933


quinta-feira, 28 de janeiro de 2016

FAZ HOJE 94 ANOS




CANÇÃO DE OUTONO

No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO DE 1922


quarta-feira, 27 de janeiro de 2016

FAZ HOJE 88 ANOS



Quando, cheio do próprio dó,
No meio do ermo e horrível universo,
Cada um conhece que 'stá só
E que quanto mais saúda os céus e o pó
Mais somente em si mesmo está imerso;

Quando, na fria e alheia solidão
Que é tudo, quando o sente o coração,
Quando são mortos os que nos amaram
E só os que nos estremam nos finaram,
Para fazer mais fria e mais sozinha
A casa sem raiz que nos deixaram
E a abandonada vinha...

Então, quando uma nova consciência,
Um pavor louco da infinita treva,
Nos enche a inexistência
E uma névoa do além se eleva...

Então, Senhor, erguendo o olhar sem rumo,
Surge da inerte noite, como um dia

Teu vulto misericordioso,
Teu gesto paternal e cuidadoso,
Tua tristeza e alegria...

FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1928