sexta-feira, 31 de março de 2017

FAZ HOJE 115 ANOS




Mote:

Teus olhos contas escuras,
São duas, Avé Marias
Dum rosário d'amarguras
Que eu rezo todos os dias.

(Augusto Gil)

Glosa:

Quando a dor me amargurar,
Quando sentir penas duras,
Só me podem consolar
Teus olhos, contas escuras.

Deles só brotam amores;
Não há sombra d'ironias;
Esses olhos sedutores
São duas Avé Marias.

Mas se a ira os vem turvar
Fazem-me sofrer torturas
E as contas todas rezar
Dum rosário d'amarguras.

Ou se os alaga a aflição
Peço p'ra ti alegrias
Numa fervente oração
Que rezo todos os dias!

FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1902


quinta-feira, 30 de março de 2017

FAZ HOJE 86 ANOS





Não tenho quinta nenhuma.
Se a quero ter p'ra sonhar,
Tenho que a extrair da bruma
Do meu mole meditar.

E então, desfazendo a névoa
Que há sempre dentro de nós,
Progressivamente elevo-a
Até uma quinta a sós.

Vejo os tanques, vejo as calhas
Por onde a água vai pequena,
Vejo os caminhos com falhas,
Vejo a eira erma e serena.

E, contente deste nada
Que em mim mesmo faço externo,
Gozo a frescura relvada
Da não-quinta em que me interno.

Vilegiatura impossível,
Dou-lhe nós para lembrar,
E esqueço-a ao primeiro nível
Do meu mole meditar.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1931


quarta-feira, 29 de março de 2017

FAZ HOJE 86 ANOS




Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma,

E isto lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1931


terça-feira, 28 de março de 2017

FAZ HOJE 87 ANOS




D. JOÃO
INFANTE DE PORTUGAL

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;

Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita -
O todo, ou o seu nada.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930