segunda-feira, 30 de novembro de 2015

Faz hoje 80 anos que o Fernando Pessoa morreu, por isso se lhe dedicam estes belos sonetos sobre o temas do esquecimento que os mortos merecem aos vivos:

I



Ao pé de mim os mortos esquecidos

Volveram todos.  Eu em sonhos os vi.

Se os amei, como foi que os esqueci?

Se os esqueci, como foram queridos?




Rápida vida, como os fizeste idos!
Com que fria memória os lembro daqui!

Já desleixo chorar o que perdi.

Lembro-os longe da sombra dos sentidos.




Quando os perdi, pensei:Cada momento

Me lembrará sua presença morta,

Eterna em meu constante pensamento.




Mas lentamente a vida fecha a porta.

Fechada toda, o olhar 'stá desatento
Para longe de Deus quem me transporta?


II




Quantos nos deram seu fiel amor

A quem não damos uma fiel memória!

Amaram-nos. Parece uma história.

O invisível já não tem calor.




De vez em quando lembram, e uma dor
Esforça-se por não ser transitória.

Mas vem uma conversa, e foi-se a glória

De sentir ter quebrado este torpor.




Deus vos faça ou inscientes ou piedosos,

Ó mortos que julgamos que lembramos

E que entre nossas distracções e gozos

Inconscientemente abandonamos.

Mas foi sobre vós que os rumorosos

Ciprestes, deslembrados, derramamos

.

III




Múrmura voz das árvores mexidas
Por um nocturno, vago, leve vento,

Casa-te com meu triste sentimento

Que paira sobre as campas esquecidas!




De quantas almas, no silêncio idas,

Não há neste momento um pensamento!

Que Deus as guarde do conhecimento

De como estão longínquas e perdidas!




Ah, quão inteiramente eram mortais!

Não fazem falta à vida leve e forte.

Sem eles, os que amavam são iguais…




Quem vai tem em quem fica a pior sorte.

Nós é que os mortos enterramos mais!

É em nosso coração que vive a Morte!







FERNANDO PESSOA 11 DE ABRIL DE 1925

FAZ HOJE 81 ANOS





Tantos poemas contemporâneos!
Tantos poetas absolutamente de hoje -
Interessante tudo, interessante todos...
Ah, mas é quase tudo...
É tudo vestíbulo
É tudo só para escrever...
Nem arte,
Nem ciência
Nem verdadeira nostalgia...
Este olhou bem o relevo desse cipreste...
Esse viu bem o poente por trás do cipreste...
Este reparou bem na emoção que tudo isso daria...
Mas depois?...
Ah, meus poetas, meus poemas - e depois?
O pior é sempre o depois...
É que para dizer é preciso pensar -
Pensar com o segundo pensamento -
E vocês, meus velhos, poetas e poemas,
Pensam só com a rapidez primária da asneira - é e da pena -

Mais vale o clássico seguro,
Mais vale o romântico cantante,
Mais vale qualquer coisa, ainda que má,
Que os arredores inconstruídos duma qualquer coisa boa ...
'Tenho a minha alma!'
Não, não tens: tens a sensação dela.
Cuidado com a sensação!
Muitas vezes é dos outros,
E muitas vezes é nossa
Só pelo acidente estonteado de a sentirmos...




ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE NOVEMBRO DE 1934


domingo, 29 de novembro de 2015

FAZ HOJE 81 ANOS



Sonhei - quem não sonhara? - porque a tarde
Baixava o azul do céu e já se via
Uma estrela pequena, sem alarde,
Ainda em dia a desmentir o dia.

Tudo quanto mal fiz ou não queria
Numa fogueira que não vejo arde,
Meu coração, que espera e não confia,
É como um poço ao qual a água tarde.

Sonhei. Pois não havia de sonhar
Vendo ante mim este céu brando e o mar,
Ao longe um lago, parecer parado...

Sonho... Não sei de quê, mas foi de um bem
Que não sei se era algum ou se era alguém
E que só conheci como ignorado.


FERNANDO PESSOA, 29 DE NOVEMBRO DE 1934


sábado, 28 de novembro de 2015

FAZ HOJE 82 ANOS


Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.

Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.

Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.

Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.

Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há 'sperança de um mar,
Mas nem desejo de o ter.


FERNANDO PESSOA, 28 DE NOVEMBRO DE 1933


sexta-feira, 27 de novembro de 2015

FAZ HOJE 91 ANOS




Marinheiro-Monge
Desta mar profundo
Rema-me p'ra longe
De eu sentir o mundo.

Rema, e de teus braços
O angular potente
Que impele o barco apague os traços
Do meu sentir doente!

Chia a 'spuma e alveja
'Spuma é o mundo certo.
Como a água contra nós fresqueja
'Spelhando tão perto!

Marinheiro-Monge
Deste mar de além,
Leva-me p'ra longe
De se qu'rer um bem!

Como pesa a vida
Se ela nos não fôr
Mais indefinida
Do que peso e dor!

Rema, e olha-me mudo,
Vendo sem visão,
Quero sentir tudo
Sem ter coração!

Marinheiro-Monge
Deste mar sem fim,
Rema p'ra longe
Do que sou p'ra mim!

FERNANDO PESSOA, 27 DE NOVEMBRO DE 1924


quinta-feira, 26 de novembro de 2015

FAZ HOJE 88 ANOS



Há luz no tojo e no brejo
Luz no ar e no chão...
Há luz em tudo que vejo,
Não no meu coração...

E quanto mais luz lá fora
Quanto mais quente é o dia
Mais por contrário chora
Minha íntima noite fria.


FERNANDO PESSOA, 26 DE NOVEMBRO DE 1927

quarta-feira, 25 de novembro de 2015

FAZ HOJE 84 ANOS



Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo
São - tictac visível - quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela directamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!

Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.

Quem será? Doente, moedeiro falso, insone simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.

Sobre o parapeito da janela traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira a que agarro,
Debruço-me para o infinito, e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita...
Tem graça; não tens luz eléctrica.
Ó candeeiro de petróleo da minha infância perdida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 25 DE NOVEMBRO DE 1931