segunda-feira, 31 de agosto de 2015

FAZ HOJE 85 ANOS




É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de 'queres?'
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão o meu intuito.
Caminharei sem regressar.

FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1930


domingo, 30 de agosto de 2015

FAZ HOJE 82 ANOS



No sono antes do sono,
No sonho sem sonhar,
Passam em abandono
Sombras, formas sem dono,
Que surgem a acabar.

É um mito do interlúdio
Que há entre a vida e a vida.
Meu mal sonhar ilude-o.
Minha dor esquecida
Não sabe quem a olvida.

E, assim, entre entre e entre,
Dos sonhos que vou tendo,
Como um japão excentre,
Abro a sorrir o ventre,
E morro, o ventre vendo.


FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933


sábado, 29 de agosto de 2015

FAZ HOJE 86 ANOS




DILUENTE

A vizinha do número catorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo
da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião de cair.
Posso morrer como o orvalho seca
Por uma arte natural da natureza solar.
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche de lágrimas...
Glória? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose às avessas...
Dêem-me Água de Vidago que eu quero esquecer a vida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE AGOSTO DE 1929


sexta-feira, 28 de agosto de 2015

FAZ HOJE 80 ANOS




O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim -
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
É o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo-andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE AGOSTO DE 1935


quinta-feira, 27 de agosto de 2015

FAZ HOJE 85 ANOS




Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter este bem que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos do caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só - veste de seda -,
E fala só - leque animado.

FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO DE 1930