quarta-feira, 31 de julho de 2019

FAZ HOJE 84 ANOS




O REI

O rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei, coroaram-n'O de espinhos
E por trono lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares ansiosos e sozinhos.
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
Essas pálpebras mortas de Jesus.

O Rei fala, e o seu gesto tudo preenche,
O som da sua voz tudo transmuda.
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Diz-me a verdade aquela boca muda,
E essas mãos presas dão-me a Liberdade.

FERNANDO PESSOA, 31 DE JULHO DE 1935


terça-feira, 30 de julho de 2019

FAZ HOJE 105 ANOS





Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol),
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupa
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos
E há noite lá fora.

RICARDO REIS, 30 DE JULHO DE 1914


segunda-feira, 29 de julho de 2019

FAZ HOJE 95 ANOS





O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A 'sprança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha 'sprança
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças
Mas as mortas esperanças -
Mortas, porque hão-de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

FERNANDO PESSOA, 29 DE JULHO DE 1924


domingo, 28 de julho de 2019

FAZ HOJE 84 ANOS





A OUTRA

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podemos ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejo...
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso?
Da Outra.

Ah, talvez mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar.
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém em viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remos e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!

FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935