terça-feira, 31 de dezembro de 2013

FAZ HOJE 81 ANOS





Por mais que tente, não me desembrulho.
Há qualquer cousa de confuso em mim.
Lá pela confusão não dar barulho,
Não quer dizer que lhe não seja afim.

Na noite informe ao luar brilha o jardim.
O mar ao longe dorme o seu marulho.
Que quieto é tudo! Como até o orgulho
De poder ser alguém aqui tem fim!

Como nesta nocturna quietação
Tudo se acalma e até se desconhece
No fundo ignoto do ermo coração.

Ah, com que quantidade tudo esquece!
Como tudo é silêncio e confusão
Onde só o som das árvores estremece!


FERNANDO PESSOA, 31 DE DEZEMBRO DE 1932



segunda-feira, 30 de dezembro de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS



Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar o que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa de mais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra: devagar...
O que é que tem de ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?


ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE DEZEMBRO DE 1934


domingo, 29 de dezembro de 2013

FAZ HOJE 102 ANOS




Ó ambições!... Como eu quisera ser
Um pobre bibliófilo parado
Sobre o eterno fólio desdobrado
E sem mais na consciência de viver.

Podia a primavera enverdecer
E eu sempre sobre o livro recurvado
Servia a um arcaico passado
De uma medieval moça e qualquer.

A vida não perdia nem ganhava
Nada por mim, nenhum gesto meu dava
Com gesto mais ao seu Amor profundo.

E eu lia, a testa contra a luz acesa,
Sem nada querer ser como a beleza
E sem nada ter sido como o mundo.


FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1911


sábado, 28 de dezembro de 2013

FAZ HOJE 94 ANOS



Hoje em que nada é português
Salvo a desgraça,
E em que um sopro maligno e soez
Por sobre as nossas almas passa;

Hoje, em que manda quem serviu
Por condição,
E o próprio amor à Pátria é frio
Por Pátria ser um nome vão;

Hoje que, ruído o trono e a glória
Só o Traidor,
O louro e o ouro da vitória
Goza, vil como um vil actor;

Hoje uma voz que se levante
E diga, embora
Chore de ver, chorando cante,
Que vem nascendo além a Aurora,

Diga em palavras já tocadas
De outra Visão,
O Rei, e a vinda das espadas,
E o fim da Horda e da Traição.



FERNANDO PESSOA, 28 DE DEZEMBRO DE 1919