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Não: não pedi amor nem amizade
Às almas nem à vida;
Pedi-os à ilusão, à saudade,
E a uma 'sp'rança perdida.
O que me deram não compensa o nada
Do que a vida me deu;
Mas, como a um pobre, o que me deu pousada
Deu-me um pouco do céu.
Perdi já tudo: o que negou o que é
E o que o sonho me dera...
Sou hoje o sol que vagueia a pé
Entre o que foi e o que era.
Hoje, descrente até do que não há,
Vagueio em mim sem mim,
E tudo o que sonhei é um deus que 'stá
Guardando a treva e o fim.
FERNANDO PESSOA, 31 DE OUTUBRO DE 1927
O sangue que circula em minhas veias
Vem do sol por seu ser.
Os mares que naufragam nas areias
Vêm da lua, porque os faz mover.
Meu sangue é por destino e condição
Superior ao que há
No externo sórdido mundo. O coração
Praias não usa, onde quebrará.
Assim, sem lhes tocar, domino as cousas
E do meu ser solar
Vejo as marés lunares como rosas
Que florem onde nada pode estar...
FERNANDO PESSOA, 30 DE OUTUBRO DE 1933
Teus olhos entristecem.
Nem ouves o que digo.
Dormem, sonham, esquecem...
Não me ouves, e prossigo.
Digo o que já, de triste,
Te disse tanta vez...
Creio que nunca o ouviste
De tão tua que és.
Olhas-me de repente
De um distante impreciso
Com um olhar ausente.
Começas um sorriso.
Continuo a falar.
Continuas ouvindo
O que estás a pensar,
Já quasi não sorrindo,
Até que, neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.
FERNANDO PESSOA, 29 DE OUTUBRO DE 1935
Dá-me as mãos por brincadeira
Na dança que não dançamos,
Porque isso é uma maneira
De dizer o que pensamos.
Dá-me as mãos e sorri alto,
A vigiar o que rio,
Bem sabes que assim já falto
A pensar coisas a fio.
Não quero largar as mãos
Assim dadas por brinquedo.
Deixa-as ficar: há irmãos
Que brincam assim a medo.
Não largues, ou faz demora
A arrastar, a demorar,
As mãos pelas minhas fora,
E já deixando de olhar.
Que segredos num contacto!
Que coisas diz quem não fala!
Que boa vista a do tacto
Quando a vista desiguala!
Deixa os dedos, deixa os dedos,
Deixa-os ainda dizer
Aqueles dos teus segredos
Que não podes prometer!
Deixa-me os dedos e a vida!
Os outros dançam no chão,
E eu tenho a alma esquecida
Dentro do teu coração.
Todo o teu corpo está dado
Nas tuas mãos que retenho.
Mais vale ter enganado
Do que ter porque não tenho.
FERNANDO PESSOA, 28 DE OUTUBRO DE 1930
De amore suo
Folha após folha nem caem,
Cloé, as folhas todas.
Nem antes para elas, para nós
Que sabemos que morrem.
Assim, Cloé, assim,
Antes que os próprios corpos, que empregamos
No amor, ele envelhece;
E nós, diversos, somos, inda jovens,
Uma memória mútua.
Ah, se não hemos que ser mais que este
Saber do que ora fomos,
Ponhamos ao amor haver toda a vida,
Como se, findo o beijo
Único, sobre nós ruísse a súbita
Mole do total mundo.
RICARDO REIS, 27 DE OUTUBRO DE 1923
Sentados sós, lado a lado,
Com a névoa dos montes ao fundo
Do fundo do céu azulado.
(Na hora das rosas a morte)
Eu o que dizia era
Igual ao que eu não dizia,
Princípio da primavera.
(Na hora das rosas a morte)
Os nossos pés, lado a lado,
Quietos na erva, curvando-a,
Na erva de qualquer prado.
(Na hora das rosas a morte)
Sobre nós a sombra dos ramos,
Nossas costas no tronco largo,
Lado a lado, (..)
(Na hora das rosas a morte)
Braço esquerdo, braço direito
Tocando de leve um no outro
Lado a lado, ali, sem defeito.
(Na hora das rosas a morte)
Sem olharmos um para onde
Estava o outro, mas lado a lado
Ao fundo do fundo o monte.
(Na hora das rosas a morte)
O que a alma me respondia
Do lado de mim, existente;
Era o mesmo que eu dizia.
(Na hora das rosas a morte)
Jardim do princípio da vida?
Ninguém... Lado a lado olhando
Nada connosco a descida.
(Na hora das rosas a morte)
Depois era a estrada deserta
E vedando-a de nós o muro
Lá em baixo, a descida finda
(Na hora das rosas a morte)
Depois, para além da estrada
Subia outra vez... Lado a lado
Víamos, sem ver nada.
(Na hora das rosas a morte)
Depois era o monte pequeno,
Depois montes e mais montes,
O último o mais sereno
(Na hora das rosas a morte)
No monte do fim se via
A névoa no alto do monte,
Um sol frio aquecia.
(Na hora das rosas a morte)
E a copa da árvore descida
Só pouco do céu azul
Deixava ao olhar e à vida
(Na hora das rosas a morte)
Não sei como foi, ou o que era
Dos montes, da sombra, da erva,
Princípio da primavera...
(Na hora das rosas a morte)
FERNANDO PESSOA, 26 DE OUTUBRO DE 1919
Nada. Passaram nuvens e eu fiquei...
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.
Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei o meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?
E o grande céu é puro
Mas não há onde estou
Mais que a vereda que eu, obscuro,
Arrasto quem não sou.
FERNANDO PESSOA, 25 DE OUTUBRO DE 1933
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por casas, por prados,
Por quinta e por fonte,
Caminhais aliados.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por penhascos pretos,
Atrás e defronte,
Caminhais secretos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizonte,
Caminhais libertos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte
Caminhais sozinhos.
Do vale à montanha,
Da montanha ao monte,
Cavalo de sombra,
Cavaleiro monge,
Por quanto é sem fim,
Sem ninguém que o conte,
Caminhais em mim.
FERNANDO PESSOA, 24 DE OUTUBRO DE 1932
Boca bonita, quantos
Beijos cabem a quem
Te fita por seu bem
E por seu mal te fita?
Quantos, boca bonita?
Só por fitar-te não
Mas é por te fitar
Até com o coração.
Se isto de assim te ver
Não merece beijos, esse
Fitar (…) merece
Ao menos merecer
Se não merece beijos
Este fitar-te assim
Ao menos (ai de mim!)
Merece merecer.
Boca bonita, quer?
Quem fitou ainda fita
E ainda eu que 'spere,
Quantos, boca bonita?
FERNANDO PESSOA, 23 DE OUTUBRO DE 1927
De novo traz as aparentes novas
Flores o Verão novo, e novamente
Verdesce a cor antiga
Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
O poder de sabê-lo;
E a beleza, incriávcel por meu sestro,
Eu goze externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte seca.
RICARDO REIS, 22 DE OUTUBRO DE 1923
Não fales alto, que isto aqui é vida -
Vida e consciência dela,
Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,
E, se chego à janela,
Vejo, de sob as pálpebras da besta, os muitos lugares das estrelas...
Cansei o dia com esperanças de dormir de noite,
É noite quase outro dia. Tenho sono. Não durmo.
Sinto-me toda a humanidade através do cansaço -
Um cansaço que quase me fez carne os ossos...
Somos todos aquilo...
Bamboleamos, moscas, com as asas presas,
No mundo, teia de aranha sobre o abismo.
ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE OUTUBRO DE 1931
Ó fado repenicado
Ó fado de Portugal
Tenho o coração cansado
O amor foi sempre o meu mal.
Ó fado onde a alma chora
Ó triste fado fatal
Quem me dera ver agora
As terras de Portugal.
Ó fado repenicado
O ser triste é o meu mal.
Eu nasci e fui criado
Nas terras de Portugal.
O fado da minha terra
Nasceu entre laranjais
Liga a frescura da serre
A tristeza de Cascais.
Quando longe o olhar parado
Fica estrelas a olhar
Se alguém repenica o fado
Começa a gente a chorar.
O fado canta saudades
Ao lembrar por nosso mal
Sinos tocando a trindades
Na terra de Portugal.
Canta (o) coração amado
(E) Quer o cante bem ou mal
Leva o coração chorando
Às terras de Portugal.
FERNANDO PESSOA, 20 DE OUTUBRO DE 1909
Sou o fantasma de um rei
Que sem cessar percorre
As salas de um palácio abandonado.
Minha história não sei...
Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre
A ideia de que tive algum passado...
Eu não sei o que sou.
Não sei se sou o sonho
Que alguém do outro mundo esteja tendo...
Creio talvez que estou
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Duma história que um deus está relendo...
FERNANDO PESSOA, 19 DE OUTUBRO DE 1913
Tece, amor, as grinaldas com que queres
Coroar o amor que nem sabemos ter,
Com brancas mãos em lento movimento
De papoulas e pobres malmequeres...
Tece-as para que ao menos o momento
Em que as teces nos possa pertencer.
Se para coroar o amor as teces
Pensas no amor tecendo-as, e assim amas;
Se vendo-te, em ti vejo que o conheces
Amo contigo o amor em que tu pensas.
E um momento o amor queima as suas chamas
Na ara das nossas almas já pretensas.
Mas se a grinalda é feita, o amor cessou.
Se é preciso entre nós o gesto e o gozo
Nunca o pensado amor levanta o voo,
Nunca da nossa noite de sentir
Raiou o sol do alto, e o olhar cobiçou
Uma cousa real que vá fruir.
No sonho do que nunca pode haver
Entre nós, porque há em nós o pensamento,
Gastamos o desejo sem o ter.
A taça cai do gesto mal seguro
Porque pensamos em beber, e o intento
Cansa o braço, e é entornado o néctar puro.
Viemos, meu amor, no fim da tarde.
O que há do sol é o que resta acima
Dos montes, poesia baça e sonho que arde,
E só por saudade os céus anima.
O nosso olhar não ousa olhar o outro
Outros tiveram por seu tempo o dia
Gozaram outros quando o sol era alto,
A vergonha que há em nós da sua orgia
É a vergonha de nós a não ousarmos.
Nós pensamos no amor em sobressalto
E para amarmos só nos falta amarmos.
Os deuses foram-se, e consigo foi
A clareza da alma para (com) a vida.
O que ontem era o gozo, é o que hoje dói.
O que ontem era a cousa procurada
É hoje só a cousa apetecida,
Ainda desejada e não ousada.
FERNANDO PESSOA, sem data
Rondam às vezes o meu espírito desprevenido
Vagas presenças, visíveis algumas, outras que eu ouço,
Vagos rostos desconhecidos,
Vozes várias dizendo frases imperfeitas,
Outras sem relação com a minha relação com a vida.
Não estão em meus sonhos,
E não são do mundo...
São, não sei como, intermédios,
São mais visíveis que as figuras de sonho
E menos reais que as figuras do mundo.
Habitam o entorno
Do meu espírito localizado no meu corpo,
E quando os vejo vejo-os como se os visse na vida
Mas como se fossem sonho.
E quando os ouço, ouço-lhes as vozes vindas de fora
Mas dentro de mim.
Sei que o não sonho
Porque os não quero,
Sei que os não encontro no mundo
Porque são mais segredos para mim
Que as figuras da vida.
Flutua, mal demora
O momento em que os vejo.
Não acabam a frase
Que os ouço pronunciar...
Sua presença passa pelo meu ser
Numa direcção diversa da da realidade
Rectangularmente a todas as 3 dimensões do mundo.
Transparecem, começam
Onde tudo acaba
Não na circunferência mas no centro...
Não sei onde estou
Quando eles me aparecem...
Não sei com que olhos vejo,
Ou com que ouvidos ouço
Seus rostos e suas vozes
Que não vejo, mas vejo,
Que não ouço, mas ouço,
Que não sonho mas sonho,
Que não sou eu, nem outro...
Quando acendo as luzes,
Eles continuam no mesmo sonho;
Quando apago as luzes,
Eles prosseguem na mesma luz;
Quando me volto vejo-os
No mesmo lugar onde estavam...
Quando os não quero ver
Vejo-os da mesma maneira...
Tenho a alma neste espaço
Além de neste espaço
Do mundo.
Tenho sentidos feitos
Com a matéria deste
Com a noção de ver,
Com o conceito de ouvir...
Mas não ver, nem ouvir
Mas outra cousa a mesma
Em outros planos.
O muro à roda de compreender
Torna-se transparente
Quando essas sombras vêm,
Mas não para além do muro,
Nem aquém dele.
Interseccionam-se, não com ele,
Mas com ele existir...
Corto-o em diagonal
Sem que ele tenha nada
De ser cortado em diagonal...
Sobe pela descida abaixo
De eu ser contemplado,
Da minha atenção posta
Em ângulos de mim.
Tudo é um lago em mim
De uma terra sem posição
Mesmo de cercar um lago...
E todo o mundo não está
Só como que reflectido
À superfície das águas
Do lago calado...
Só ali... Mais abaixo
Já outra cousa diferente...
Acima - não há o nada
Ou seu reflexo nas águas
Não cabe noite, nem há dia
Em tudo isto...
Não há além do lado de cá
Nem exterior do lado de lá...
Fora e dentro é o mesmo
E absolutamente diferente.
Tudo é um intermédio
De cousa nenhuma
Tudo consiste em não consistir.
Eu começo onde acabo
E Deus está de permeio.
FERNANDO PESSOA, 17 DE OUTUBRO DE 1916
ANIVERSÁRIO
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre a família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.
Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo,
O que fui de coração e parentesco.
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o eco... )
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!
O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!
Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando o for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ...
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...
ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE OUTUBRO DE 1929
Por quem foi que me trocaram
Se estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.
Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
E que o tens para m’o dar.
Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Se me estás a olhar assim?
FERNANDO PESSOA, 13 DE OUTUBRO DE 1930
VENDAVAL
Ó vento do norte, tão fundo e tão frio,
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio
Que o meu coração!
Inóspita praia, que a raiva do oceano
Faz louco lugar, caverna sem fim,
Não são tão deixados do alegre e do humano
Como a alma que há em mim!
Mas dura planície, praia atra em fereza,
Só têm a tristeza que a gente lhes vê;
E nisto que em mim é vácuo e tristeza
É o visto o que vê.
Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles — teu pulso divida
Minh'alma do mundo!
Ah, se, como levas as folhas e a areia,
A alma que tenho pudesses levar —
Fosse pr'onde fosse, p’ra longe da ideia
De eu ter que pensar!
Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver —
Porque é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?
Horror de ser sempre com vida a consciência!
Horror de sentir a alma sempre a pensar!
Arranca-me, ó vento; do chão da existência,
De ser um lugar!
E, pela alta noite que fazes mais ‘scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo,
Dissolve em areia esta minha amargura,
Meu tédio profundo.
E contra as vidraças dos que há que têm lares,
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!
Meu coração triste, meu coração ermo,
Tornado a substância dispersa e negada
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!
FERNANDO PESSOA, 12 DE OUTUBRO DE 1919
A CASA BRANCA NAU PRETA
Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se...
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro...
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora...
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim...
Há uma interrupção lateral na minha consciência...
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par...
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo,
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma...
Quem dera que houvesse
Um terceiro estado p'ra alma, se ela tiver só dois...
Um quarto estado p'ra alma, se são três os que ela tem...
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir...
As naus seguiram,
Seguiram viagem não sei em que dia escondido,
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos,
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho...
Árvores paradas da quinta, vistas através da janela,
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo,
Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las,
Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer,
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá.
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão...
Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde?
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro
Naus partem - naus não, barcos, mas as naus estão em mim,
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta,
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta,
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida...
Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores?
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer?
Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele,
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir...
Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ...
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz,
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu.
Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe
A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar...
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta.
E eu, parado, mole, adormecido,
Tenho o mar embalando-me e sofro...
Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva.
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga.
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa.
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico
E o mar entra por meus olhos o pórtico cessando.
Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá?
Húmida sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem,
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói.
Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos,
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos,
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa,
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas...
A casa branca nau preta...
Felicidade na Austrália...
FERNANDO PESSOA, 11 DE OUTUBRO DE 1916
Bem sei que todas as mágoas
São como as mágoas que são
Parecidas com as águas
Que continuamente vão...
Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas águas sem fim.
Quero uma tristeza minha
Uma mágoa que me seja
Uma espécie de rainha
Cujo trono se não veja.
FERNANDO PESSOA, 9 DE OUTUBRO DE 1934
Bem sei que todas as mágoas
São como as mágoas que são
Parecidas com as águas
Que continuamente vão...
Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas águas sem fim.
Quero uma tristeza minha
Uma mágoa que me seja
Uma espécie de rainha
Cujo trono se não veja.
FERNANDO PESSOA, 9 DE OUTUBRO DE 1934
SONITUS
DESILENTES AQUAE
No ar frio da noite calma
Boia à vontade a minh'alma,
Quasi sem querer viver
Sente os momentos correr,
Como uma folha no rio,
Sente contra si o frio
Das horas fluidas levando
Seu inerte corpo brando.
Mais do que isto? Para quê?
Tudo quanto o olhar vê
A mão toca, o ouvido escuta,
A consciência perscruta,
É inútil que se escutasse,
Que se visse ou se pensasse.
Entre as margens com arbustos
Luzes na noite dos sustos,
Sob o luar repousado,
Ao correr vago e amparado
Do rio deixado e livre
A alma passa, a alma vive.
Ninguém. Só eu e o segredo
Do luar e do arvoredo
Que das margens causou medo.
Nada. Só a hora inútil
Só o sacrifício fútil
De desejar sem querer
E sem razão esquecer.
Prolixa memória, toda.
Rio indo como uma roda,
Noite como um lago mudo,
E a incerteza de tudo.
Recosto-me, e a lua dorme.
Cerca-me o que a noite enorme
Atribui à minha mágoa,
Como um murmúrio de água.
Ninguém; a noite e o luar.
Nada; nem saber pensar.
Raie o dia, ou morra eu,
Volte no oriente do céu
O sol ou não volte mais,
São sempre os tédios iguais
E os barcos, calmos a medo,
Com o rio entre o arvoredo,
De nocturno cemitério,
Ou fluido, vago mistério.
O mal é haver consciência.
FERNANDO PESSOA, 8 DE OUTUBRO DE 1919