quinta-feira, 31 de outubro de 2013

FAZ HOJE 86 ANOS



Não: não pedi amor nem amizade 
 Às almas nem à vida; 
Pedi-os à ilusão, à saudade, 
 E a uma 'sp'rança perdida. 

O que me deram não compensa o nada 
 Do que a vida me deu; 
Mas, como a um pobre, o que me deu pousada 
 Deu-me um pouco do céu. 

Perdi já tudo: o que negou o que é 
 E o que o sonho me dera... 
Sou hoje o sol que vagueia a pé 
 Entre o que foi e o que era. 

Hoje, descrente até do que não há, 
 Vagueio em mim sem mim, 
E tudo o que sonhei é um deus que 'stá 
 Guardando a treva e o fim. 


FERNANDO PESSOA, 31 DE OUTUBRO DE 1927

quarta-feira, 30 de outubro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS




O sangue que circula em minhas veias
Vem do sol por seu ser.
Os mares que naufragam nas areias
Vêm da lua, porque os faz mover.

Meu sangue é por destino e condição
Superior ao que há
No externo sórdido mundo. O coração 
Praias não usa, onde quebrará. 

Assim, sem lhes tocar, domino as cousas 
E do meu ser solar 
Vejo as marés lunares como rosas 
Que florem onde nada pode estar..


FERNANDO PESSOA, 30 DE OUTUBRO DE 1933

terça-feira, 29 de outubro de 2013

FAZ HOJE 78 ANOS




Teus olhos entristecem. 
Nem ouves o que digo. 
Dormem, sonham, esquecem... 
Não me ouves, e prossigo. 

Digo o que já, de triste, 
Te disse tanta vez... 
Creio que nunca o ouviste 
De tão tua que és. 

Olhas-me de repente 
De um distante impreciso 
Com um olhar ausente. 
Começas um sorriso. 

Continuo a falar. 
Continuas ouvindo 
O que estás a pensar, 
Já quasi não sorrindo, 

Até que, neste ocioso
Sumir da tarde fútil,
Se esfolha silencioso
O teu sorriso inútil.


FERNANDO PESSOA, 29 DE OUTUBRO DE 1935

segunda-feira, 28 de outubro de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS



Dá-me as mãos por brincadeira
Na dança que não dançamos,
Porque isso é uma maneira 
De dizer o que pensamos.

Dá-me as mãos e sorri alto,
A vigiar o que rio,
Bem sabes que assim já falto
A pensar coisas a fio.

Não quero largar as mãos
Assim dadas por brinquedo.
Deixa-as ficar: há irmãos
Que brincam assim a medo.

Não largues, ou faz demora
A arrastar, a demorar, 
As mãos pelas minhas fora,
E já deixando de olhar.

Que segredos num contacto!
Que coisas diz quem não fala!
Que boa vista a do tacto
Quando a vista desiguala!

Deixa os dedos, deixa os dedos,
Deixa-os ainda dizer
Aqueles dos teus segredos
Que não podes prometer!

Deixa-me os dedos e a vida!
Os outros dançam no chão, 
E eu tenho a alma esquecida
Dentro do teu coração.

Todo o teu corpo está dado
Nas tuas mãos que retenho.
Mais vale ter enganado
Do que ter porque não tenho.


FERNANDO PESSOA, 28 DE OUTUBRO DE 1930

domingo, 27 de outubro de 2013

FAZ HOJE 90 ANOS




                                                         De amore suo

                            
Folha após folha nem caem,
        Cloé, as folhas todas.
Nem antes para elas, para nós
        Que sabemos que morrem.
        Assim, Cloé, assim,
Antes que os próprios corpos, que empregamos
        No amor, ele envelhece;
E nós, diversos, somos, inda jovens,
        Uma memória mútua.
Ah, se não hemos que ser mais que este
Saber do que ora fomos,
Ponhamos ao amor haver toda a vida,     
Como se, findo o beijo
Único, sobre nós ruísse a súbita
        Mole do total mundo.

RICARDO REIS, 27 DE OUTUBRO DE 1923

sábado, 26 de outubro de 2013

FAZ HOJE 94 ANOS




Sentados sós, lado a lado, 
Com a névoa dos montes ao fundo 
Do fundo do céu azulado. 

(Na hora das rosas a morte) 

Eu o que dizia era 
Igual ao que eu não dizia, 
Princípio da primavera. 

(Na hora das rosas a morte) 

Os nossos pés, lado a lado, 
Quietos na erva, curvando-a, 
Na erva de qualquer prado. 

(Na hora das rosas a morte)

Sobre nós a sombra dos ramos, 
Nossas costas no tronco largo, 
Lado a lado, (..) 

(Na hora das rosas a morte) 

Braço esquerdo, braço direito 
Tocando de leve um no outro 
Lado a lado, ali, sem defeito. 

(Na hora das rosas a morte) 

Sem olharmos um para onde 
Estava o outro, mas lado a lado 
Ao fundo do fundo o monte. 

(Na hora das rosas a morte) 

O que a alma me respondia 
Do lado de mim, existente; 
Era o mesmo que eu dizia. 

(Na hora das rosas a morte) 

Jardim do princípio da vida? 
Ninguém... Lado a lado olhando 
Nada connosco a descida. 

(Na hora das rosas a morte) 

Depois era a estrada deserta 
E vedando-a de nós o muro 
Lá em baixo, a descida finda 

(Na hora das rosas a morte) 

Depois, para além da estrada 
Subia outra vez... Lado a lado 
Víamos, sem ver nada. 

(Na hora das rosas a morte) 

Depois era o monte pequeno, 
Depois montes e mais montes, 
O último o mais sereno 

(Na hora das rosas a morte) 

No monte do fim se via 
A névoa no alto do monte, 
Um sol frio aquecia. 

(Na hora das rosas a morte) 

E a copa da árvore descida 
Só pouco do céu azul 
Deixava ao olhar e à vida 

(Na hora das rosas a morte) 

Não sei como foi, ou o que era 
Dos montes, da sombra, da erva, 
Princípio da primavera... 

(Na hora das rosas a morte) 


FERNANDO PESSOA, 26 DE OUTUBRO DE 1919

sexta-feira, 25 de outubro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS




Nada. Passaram nuvens e eu fiquei... 
No ar limpo não há rasto.
Surgiu a lua de onde já não sei,
Num claro luar vasto.

Todo o espaço da noite fica cheio
De um peso sossegado...
Onde porei o meu futuro, e o enleio
Que o liga ao meu passado?

E o grande céu é puro
Mas não há onde estou
Mais que a vereda que eu, obscuro,
Arrasto quem não sou. 

FERNANDO PESSOA, 25 DE OUTUBRO DE 1933

quinta-feira, 24 de outubro de 2013

FAZ HOJE 81 ANOS




Do vale à montanha, 
Da montanha ao monte, 
Cavalo de sombra, 
Cavaleiro monge, 
Por casas, por prados, 
Por quinta e por fonte, 
Caminhais aliados.

Do vale à montanha, 
Da montanha ao monte, 
Cavalo de sombra, 
Cavaleiro monge, 
Por penhascos pretos, 
Atrás e defronte, 
Caminhais secretos.

Do vale à montanha, 
Da montanha ao monte, 
Cavalo de sombra, 
Cavaleiro monge,
Por plainos desertos
Sem ter horizonte,
Caminhais libertos.

Do vale à montanha, 
Da montanha ao monte, 
Cavalo de sombra, 
Cavaleiro monge,
Por ínvios caminhos,
Por rios sem ponte
Caminhais sozinhos.

Do vale à montanha, 
Da montanha ao monte, 
Cavalo de sombra, 
Cavaleiro monge, 
Por quanto é sem fim, 
Sem ninguém que o conte, 
Caminhais em mim. 


FERNANDO PESSOA, 24 DE OUTUBRO DE 1932

quarta-feira, 23 de outubro de 2013

FAZ HOJE 86 ANOS




Boca bonita, quantos 
Beijos cabem a quem 
Te fita por seu bem 
E por seu mal te fita? 
Quantos, boca bonita?

Só por fitar-te não 
Mas é por te fitar 
Até com o coração. 

Se isto de assim te ver 
Não merece beijos, esse 
Fitar (…) merece 
Ao menos merecer 

Se não merece beijos 
Este fitar-te assim 
Ao menos (ai de mim!) 
Merece merecer. 
Boca bonita, quer? 

Quem fitou ainda fita
E ainda eu que 'spere,
Quantos, boca bonita?


FERNANDO PESSOA, 23 DE OUTUBRO DE 1927

terça-feira, 22 de outubro de 2013

FAZ HOJE 90 ANOS




De novo traz as aparentes novas
Flores o Verão novo, e novamente
        Verdesce a cor antiga
        Das folhas redivivas.
Não mais, não mais dele o infecundo abismo,
Que mudo sorve o que mal somos, torna
À clara luz superna
O poder de sabê-lo;
E a beleza, incriávcel por meu sestro,
Eu goze externa e dada, repetida
Em meus passivos olhos,
Lagos que a morte seca.

RICARDO REIS, 22 DE OUTUBRO DE 1923

segunda-feira, 21 de outubro de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS




Não fales alto, que isto aqui é vida -
Vida e consciência dela,
Porque a noite avança, estou cansado, não durmo,
E, se chego à janela,
Vejo, de sob as pálpebras da besta, os muitos lugares das estrelas...
Cansei o dia com esperanças de dormir de noite,
É noite quase outro dia. Tenho sono. Não durmo.
Sinto-me toda a humanidade através do cansaço -
Um cansaço que quase me fez carne os ossos...
Somos todos aquilo...
Bamboleamos, moscas, com as asas presas,
No mundo, teia de aranha sobre o abismo.

ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE OUTUBRO DE 1931

domingo, 20 de outubro de 2013

FAZ HOJE 104 ANOS




Ó fado repenicado
Ó fado de Portugal
Tenho o coração cansado
O amor foi sempre o meu mal.

Ó fado onde a alma chora
Ó triste fado fatal
Quem me dera ver agora
As terras de Portugal.

Ó fado repenicado
O ser triste é o meu mal.
Eu nasci e fui criado
Nas terras de Portugal.

O fado da minha terra
Nasceu entre laranjais
Liga a frescura da serre
A tristeza de Cascais.

Quando longe o olhar parado
Fica estrelas a olhar
Se alguém repenica o fado
Começa a gente a chorar.

O fado canta saudades
Ao lembrar por nosso mal
Sinos tocando a trindades
Na terra de Portugal.

Canta (o) coração amado
(E) Quer o cante bem ou mal
Leva o coração chorando
Às terras de Portugal.




FERNANDO PESSOA, 20 DE OUTUBRO DE 1909

sábado, 19 de outubro de 2013

FAZ HOJE 100 ANOS




Sou o fantasma de um rei 
Que sem cessar percorre 
As salas de um palácio abandonado. 
Minha história não sei... 
Longe em mim, fumo de eu pensá-la, morre 
A ideia de que tive algum passado... 

Eu não sei o que sou. 
Não sei se sou o sonho
Que alguém do outro mundo esteja tendo... 
Creio talvez que estou 
Sendo um perfil casual de rei tristonho
Duma história que um deus está relendo... 


FERNANDO PESSOA, 19 DE OUTUBRO DE 1913

sexta-feira, 18 de outubro de 2013

POEMA SEM DATA




Tece, amor, as grinaldas com que queres 
Coroar o amor que nem sabemos ter, 
Com brancas mãos em lento movimento 
De papoulas e pobres malmequeres... 
Tece-as para que ao menos o momento 
Em que as teces nos possa pertencer. 

Se para coroar o amor as teces 

Pensas no amor tecendo-as, e assim amas; 
Se vendo-te, em ti vejo que o conheces 
Amo contigo o amor em que tu pensas. 
E um momento o amor queima as suas chamas 
Na ara das nossas almas já pretensas. 

Mas se a grinalda é feita, o amor cessou. 

Se é preciso entre nós o gesto e o gozo 
Nunca o pensado amor levanta o voo, 
Nunca da nossa noite de sentir 
Raiou o sol do alto, e o olhar cobiçou 
Uma cousa real que vá fruir. 

No sonho do que nunca pode haver 

Entre nós, porque há em nós o pensamento, 
Gastamos o desejo sem o ter. 
A taça cai do gesto mal seguro 
Porque pensamos em beber, e o intento 
Cansa o braço, e é entornado o néctar puro.

Viemos, meu amor, no fim da tarde. 

O que há do sol é o que resta acima 
Dos montes, poesia baça e sonho que arde, 
E só por saudade os céus anima. 
O nosso olhar não ousa olhar o outro

Outros tiveram por seu tempo o dia 

Gozaram outros quando o sol era alto, 
A vergonha que há em nós da sua orgia 
É a vergonha de nós a não ousarmos. 
Nós pensamos no amor em sobressalto 
E para amarmos só nos falta amarmos. 

Os deuses foram-se, e consigo foi 

A clareza da alma para (com) a vida. 
O que ontem era o gozo, é o que hoje dói. 
O que ontem era a cousa procurada 
É hoje só a cousa apetecida, 
Ainda desejada e não ousada. 


FERNANDO PESSOA, sem data

quinta-feira, 17 de outubro de 2013

FAZ HOJE 97 ANOS




Rondam às vezes o meu espírito desprevenido 
Vagas presenças, visíveis algumas, outras que eu ouço, 
Vagos rostos desconhecidos, 
Vozes várias dizendo frases imperfeitas, 
Outras sem relação com a minha relação com a vida. 
Não estão em meus sonhos, 
E não são do mundo... 
São, não sei como, intermédios, 
São mais visíveis que as figuras de sonho 
E menos reais que as figuras do mundo. 
Habitam o entorno 
Do meu espírito localizado no meu corpo, 
E quando os vejo vejo-os como se os visse na vida 
Mas como se fossem sonho. 
E quando os ouço, ouço-lhes as vozes vindas de fora 
Mas dentro de mim. 
Sei que o não sonho 
Porque os não quero, 
Sei que os não encontro no mundo 
Porque são mais segredos para mim 
Que as figuras da vida. 

Flutua, mal demora 
O momento em que os vejo. 
Não acabam a frase 
Que os ouço pronunciar... 
Sua presença passa pelo meu ser 
Numa direcção diversa da da realidade 
Rectangularmente a todas as 3 dimensões do mundo. 

Transparecem, começam 
Onde tudo acaba 
Não na circunferência mas no centro... 
Não sei onde estou 
Quando eles me aparecem... 
Não sei com que olhos vejo, 
Ou com que ouvidos ouço 
Seus rostos e suas vozes 

Que não vejo, mas vejo, 
Que não ouço, mas ouço, 
Que não sonho mas sonho, 
Que não sou eu, nem outro... 

Quando acendo as luzes, 
Eles continuam no mesmo sonho; 
Quando apago as luzes, 
Eles prosseguem na mesma luz; 
Quando me volto vejo-os 
No mesmo lugar onde estavam... 
Quando os não quero ver 
Vejo-os da mesma maneira... 

Tenho a alma neste espaço 
Além de neste espaço 
Do mundo. 
Tenho sentidos feitos 
Com a matéria deste 
Com a noção de ver, 
Com o conceito de ouvir... 
Mas não ver, nem ouvir 
Mas outra cousa a mesma 
Em outros planos. 

O muro à roda de compreender 
Torna-se transparente 
Quando essas sombras vêm, 
Mas não para além do muro, 
Nem aquém dele. 
Interseccionam-se, não com ele, 
Mas com ele existir... 
Corto-o em diagonal 
Sem que ele tenha nada 
De ser cortado em diagonal... 

Sobe pela descida abaixo 
De eu ser contemplado, 
Da minha atenção posta
Em ângulos de mim. 

Tudo é um lago em mim 
De uma terra sem posição 
Mesmo de cercar um lago... 
E todo o mundo não está 
Só como que reflectido 
À superfície das águas 
Do lago calado... 
Só ali... Mais abaixo 
Já outra cousa diferente... 
Acima - não há o nada 
Ou seu reflexo nas águas 

Não cabe noite, nem há dia 
Em tudo isto... 
Não há além do lado de cá 
Nem exterior do lado de lá... 
Fora e dentro é o mesmo 
E absolutamente diferente. 
Tudo é um intermédio 
De cousa nenhuma 
Tudo consiste em não consistir. 
Eu começo onde acabo 
E Deus está de permeio.


FERNANDO PESSOA, 17 DE OUTUBRO DE 1916

terça-feira, 15 de outubro de 2013

FAZ HOJE 94 ANOS




ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu era feliz e ninguém estava morto. 
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos, 
E a alegria de todos, e a minha, estava certa com uma religião qualquer. 

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos, 
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma, 
De ser inteligente para entre a família, 
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim. 
Quando vim a ter esperanças, já não sabia ter esperanças. 
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida. 

Sim, o que fui de suposto a mim-mesmo, 
O que fui de coração e parentesco. 
O que fui de serões de meia-província, 
O que fui de amarem-me e eu ser menino, 
O que fui - ai, meu Deus!, o que só hoje sei que fui... 
A que distância!... 
(Nem o eco... ) 
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos! 

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa, 
Pondo grelado nas paredes... 
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas), 
O que eu sou hoje é terem vendido a casa, 
É terem morrido todos, 
É estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio... 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos ... 
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo! 
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez, 
Por uma viagem metafísica e carnal, 
Com uma dualidade de eu para mim... 
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes! 

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui... 
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos, 
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado, 
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa, 
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos... 

Pára, meu coração! 
Não penses! Deixa o pensar na cabeça! 
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus! 
Hoje já não faço anos. 
Duro. 
Somam-se-me dias. 
Serei velho quando o for. 
Mais nada. 
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira! ... 

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE OUTUBRO DE 1929

domingo, 13 de outubro de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS




Por quem foi que me trocaram
Se estava a olhar pra ti?
Pousa a tua mão na minha
E, sem me olhares, sorri.

Sorri do teu pensamento
Porque eu só quero pensar
Que é de mim que ele está feito
E que o tens para m’o dar.

Depois aperta-me a mão
E vira os olhos a mim...
Por quem foi que me trocaram
Se me estás a olhar assim?

FERNANDO PESSOA, 13 DE OUTUBRO DE 1930

sábado, 12 de outubro de 2013

FAZ HOJE 94 ANOS




VENDAVAL

Ó vento do norte, tão fundo e tão frio, 
Não achas, soprando por tanta solidão,
Deserto, penhasco, coval mais vazio 
Que o meu coração!

Inóspita praia, que a raiva do oceano 
Faz louco lugar, caverna sem fim, 
Não são tão deixados do alegre e do humano 
Como a alma que há em mim!

Mas dura planície, praia atra em fereza, 
Só têm a tristeza que a gente lhes vê;
E nisto que em mim é vácuo e tristeza 
É o visto o que vê.

Ah, mágoa de ter consciência da vida!
Tu, vento do norte, teimoso, iracundo,
Que rasgas os robles — teu pulso divida 
Minh'alma do mundo!

Ah, se, como levas as folhas e a areia, 
A alma que tenho pudesses levar —
Fosse pr'onde fosse, p’ra longe da ideia
De eu ter que pensar!

Abismo da noite, da chuva, do vento,
Mar torvo do caos que parece volver —
Porque é que não entras no meu pensamento
Para ele morrer?

Horror de ser sempre com vida a consciência! 
Horror de sentir a alma sempre a pensar! 
Arranca-me, ó vento; do chão da existência, 
De ser um lugar!

E, pela alta noite que fazes mais ‘scura,
Pelo caos furioso que crias no mundo, 
Dissolve em areia esta minha amargura, 
Meu tédio profundo.

E contra as vidraças dos que há que têm lares, 
Telhados daqueles que têm razão,
Atira, já pária desfeito dos ares,
O meu coração!

Meu coração triste, meu coração ermo, 
Tornado a substância dispersa e negada 
Do vento sem forma, da noite sem termo,
Do abismo e do nada!

FERNANDO PESSOA, 12 DE OUTUBRO DE 1919

sexta-feira, 11 de outubro de 2013

FAZ HOJE 94 ANOS



A CASA BRANCA NAU PRETA

Estou reclinado na poltrona, é tarde, o Verão apagou-se... 
Nem sonho, nem cismo, um torpor alastra em meu cérebro... 
Não existe manhã para o meu torpor nesta hora... 
Ontem foi um mau sonho que alguém teve por mim... 
Há uma interrupção lateral na minha consciência... 
Continuam encostadas as portas da janela desta tarde 
Apesar de as janelas estarem abertas de par em par... 
Sigo sem atenção as minhas sensações sem nexo, 
E a personalidade que tenho está entre o corpo e a alma... 
Quem dera que houvesse 
Um terceiro estado p'ra alma, se ela tiver só dois... 
Um quarto estado p'ra alma, se são três os que ela tem... 
A impossibilidade de tudo quanto eu nem chego a sonhar 
Dói-me por detrás das costas da minha consciência de sentir... 

As naus seguiram, 
Seguiram viagem não sei em que dia escondido, 
E a rota que devem seguir estava escrita nos ritmos, 
Os ritmos perdidos das canções mortas do marinheiro de sonho... 

Árvores paradas da quinta, vistas através da janela, 
Árvores estranhas a mim a um ponto inconcebível à consciência de as estar vendo, 

Árvores iguais todas a não serem mais que eu vê-las, 
Não poder eu fazer qualquer coisa género haver árvores que deixasse de doer, 
Não poder eu coexistir para o lado de lá com estar-vos vendo do lado de cá. 
E poder levantar-me desta poltrona deixando os sonhos no chão... 

Que sonhos?... Eu não sei se sonhei... Que naus partiram, para onde? 
Tive essa impressão sem nexo porque no quadro fronteiro 
Naus partem - naus não, barcos, mas as naus estão em mim, 
E é sempre melhor o impreciso que embala do que o certo que basta, 
Porque o que basta acaba onde basta, e onde acaba não basta, 
E nada que se pareça com isto devia ser o sentido da vida... 

Quem pôs as formas das árvores dentro da existência das árvores? 
Quem deu frondoso a arvoredos, e me deixou por verdecer? 
Onde tenho o meu pensamento que me dói estar sem ele, 
Sentir sem auxílio de poder para quando quiser, e o mar alto 
E a última viagem, sempre para lá, das naus a subir... 
Não há, substância de pensamento na matéria de alma com que penso ... 
Há só janelas abertas de par em par encostadas por causa do calor que já não faz, 
E o quintal cheio de luz sem luz agora ainda-agora, e eu. 

Na vidraça aberta, fronteira ao ângulo com que o meu olhar a colhe 
A casa branca distante onde mora... Fecho o olhar... 
E os meus olhos fitos na casa branca sem a ver 
São outros olhos vendo sem estar fitos nela a nau que se afasta. 
E eu, parado, mole, adormecido, 
Tenho o mar embalando-me e sofro... 

Aos próprios palácios distantes a nau que penso não leva. 
As escadas dando sobre o mar inatingível ela não alberga. 
Aos jardins maravilhosos nas ilhas inexplícitas não deixa. 
Tudo perde o sentido com que o abrigo em meu pórtico 
E o mar entra por meus olhos o pórtico cessando. 

Caia a noite, não caia a noite, que importa a candeia 
Por acender nas casas que não vejo na encosta e eu lá? 

Húmida sombra nos sons do tanque nocturna sem lua, as rãs rangem, 
Coaxar tarde no vale, porque tudo é vale onde o som dói. 

Milagre do aparecimento da Senhora das Angústias aos loucos, 
Maravilha do enegrecimento do punhal tirado para os actos, 
Os olhos fechados, a cabeça pendida contra a coluna certa, 
E o mundo para além dos vitrais paisagem sem ruínas... 

A casa branca nau preta... 
Felicidade na Austrália...



FERNANDO PESSOA, 11 DE OUTUBRO DE 1916

quarta-feira, 9 de outubro de 2013

FAZ HOJE 79 ANOS



Bem sei que todas as mágoas
São como as mágoas que são
Parecidas com as águas
Que continuamente vão...

Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas águas sem fim.

Quero uma tristeza minha
Uma mágoa que me seja
Uma espécie de rainha
Cujo trono se não veja.


FERNANDO PESSOA, 9 DE OUTUBRO DE 1934

FAZ HOJE 79 ANOS




Bem sei que todas as mágoas
São como as mágoas que são
Parecidas com as águas
Que continuamente vão...

Quero, pois, ter guardada
Uma tristeza de mim
Que não possa ser levada
Por essas águas sem fim.

Quero uma tristeza minha
Uma mágoa que me seja
Uma espécie de rainha
Cujo trono se não veja.


FERNANDO PESSOA, 9 DE OUTUBRO DE 1934

terça-feira, 8 de outubro de 2013

FAZ HOJE 94 ANOS



SONITUS 
DESILENTES AQUAE



No ar frio da noite calma 
Boia à vontade a minh'alma, 
Quasi sem querer viver 
Sente os momentos correr, 
Como uma folha no rio,
Sente contra si o frio 
Das horas fluidas levando 
Seu inerte corpo brando. 

Mais do que isto? Para quê? 
Tudo quanto o olhar vê 
A mão toca, o ouvido escuta, 
A consciência perscruta, 
É inútil que se escutasse, 
Que se visse ou se pensasse. 

Entre as margens com arbustos 
Luzes na noite dos sustos, 
Sob o luar repousado, 
Ao correr vago e amparado 
Do rio deixado e livre 
A alma passa, a alma vive. 

Ninguém. Só eu e o segredo 
Do luar e do arvoredo 
Que das margens causou medo. 

Nada. Só a hora inútil 
Só o sacrifício fútil 
De desejar sem querer 
E sem razão esquecer. 

Prolixa memória, toda. 
Rio indo como uma roda, 
Noite como um lago mudo, 
E a incerteza de tudo. 

Recosto-me, e a lua dorme. 
Cerca-me o que a noite enorme 
Atribui à minha mágoa, 
Como um murmúrio de água. 

Ninguém; a noite e o luar. 
Nada; nem saber pensar. 
Raie o dia, ou morra eu, 
Volte no oriente do céu 
O sol ou não volte mais, 
São sempre os tédios iguais 
E os barcos, calmos a medo, 
Com o rio entre o arvoredo, 
De nocturno cemitério, 
Ou fluido, vago mistério. 

O mal é haver consciência.


FERNANDO PESSOA, 8 DE OUTUBRO DE 1919