terça-feira, 31 de dezembro de 2019

FAZ HOJE 87 ANOS





Por mais que tente, não me desembrulho.
Há qualquer coisa de confuso em mim.
Lá pela a confusão não dar barulho,
Não quer dizer que lhe não seja afim.

Na noite informe ao luar brilha o jardim.
O mar ao longe dorme o seu marulho.
Que quieto é tudo! Como até o orgulho
De poder ser alguém aqui tem fim!

Como nesta nocturna quietação
Tudo se acalma e até se desconhece
No fundo ignoto do ermo coração.

Ah, com que quantidade tudo esquece!
Como tudo é silêncio e confusão
Onde só o som das árvores estremece!

FERNANDO PESSOA, 31 DE DEZEMBRO DE 1932


segunda-feira, 30 de dezembro de 2019

FAZ HOJE 85 ANOS




Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE DEZEMBRO DE 1934


domingo, 29 de dezembro de 2019

FAZ HOJE 108 ANOS





O BIBLIÓFILO

Ó ambições!... Como eu quisera ser
Um pobre bibliófilo parado
Sobre o eterno fólio desdobrado
E sem mais na consciência de viver.

Podia a primavera enverdecer
E eu sempre sobre o livro recurvado
Sorriria a um arcaico passado
De uma medieval moça e qualquer.

A vida não perdia nem ganhava
Nada por mim, nenhum gesto meu dava
Com gesto mais ao seu Amor profundo.

E eu lia, a testa contra a luz acesa,
Sem nada querer ser como a beleza
E sem nada ter sido como o mundo.

FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1911


sábado, 28 de dezembro de 2019

FAZ HOJE 100 ANOS





Clarim! Os mortos!

Contra Miguel de Vasconcellos
Republicano!

Eis outra vez o estrangeiro
Em Portugal!
Grita, clarim! Ao Conde Andeiro!
Mas quando a hora do Limoeiro
E do punhal?

Clarim, contra quem deu à França
A pátria e a grei,
Grita com fogo de esperança,
Vozes que chamem
O Rei!

E ao abismo do futuro clama
Por quem enfim
Vier, régia lusitana chama!
Pelo Rei que a Esperança chama,
Grita, clarim!

O Rei, a Lei, dias melhores ...
Não sejam mais, nem já mais vezes
Os marinheiros portugueses
Guarda Vermelha dos Traidores!

Hoje em que nada é português
Salvo a desgraça,
E em que um sopro maligno e soez
Por sobre as nossas almas passa;

Hoje em que manda quem serviu
Por condição,
E o próprio amor à Pátria é frio
Por Pátria ser um nome vão;

Hoje que, ruído o trono e a glória,
Só o Traidor
O louro e o ouro da vitória
Goza, vil como um vil actor;

Hoje uma voz que se levante
E diga, embora
Chore de ver, chorando cante,
Que vem nascendo além a Aurora,

Diga em palavras já tocadas
De outra Visão,
O Rei, e a Vinda das Espadas,
E o fim da Horda e da Traição.

FERNANDO PESSOA, 28 DE DEZEMBRO DE 1919