sexta-feira, 31 de julho de 2015

FAZ HOJE 85 ANOS




Na margem verde da estrada
Os malmequeres são meus.
Já trago a alma cansada -
Não é disso: é de Deus.

Se Deus me quisesse dá-la
Havia de achar maneira...
A estrada de cá da vala
Tem malmequeres à beira.

Se os quero, colho-os e tenho
Cuidado com os partir
Cada um que vejo e apanho
Dá um estalinho ao sair.

São malmequeres aos molhos
Iguaizinhos para ver
E nem põe neles os olhos
Dá a mão p'ra os receber.

Não é esmola que envergonhe,
Nem coisa dada sem mais.
É p'ra que a menina os ponha
Onde o peito dá sinais.

Tirei-os do campo ao lado
Para a menina os trazer...
E nem me mostra o agrado
De um olhar para me ver...

E assim a minha sina.
Tirei-os de onde iam bem
Só para os dar à menina, -
E agradeceu-me a ninguém.


FERNANDO PESSOA, 31 DE JULHO DE 1930


quinta-feira, 30 de julho de 2015

FAZ HOJE 101 ANOS



Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol),
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupa
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos
E há noite lá fora.

RICARDO REIS, 30 DE JULHO DE 1914


quarta-feira, 29 de julho de 2015

FAZ HOJE 92 ANOS


Tornar-te-ás só quem tu sempre foste.
O que te os deuses dão, dão no começo.
De uma só vez o Fado
Te dá o fado, que é um.

A pouco chega pois o esforço posto
Na medida da tua força nata -
A pouco, se não foste
Para mais concebido.

Contenta-te com seres quem não podes
Deixar de ser. Inda te fica o vasto
Céu pra cobrir-te, e a terra,
Verde ou seca a seu tempo.


RICARDO REIS, 29 DE JULHO DE 1923


terça-feira, 28 de julho de 2015

FAZ HOJE 80 ANOS



Através da radiofonia
A melancólica voz
De não sei que melodia,
Ou de quem a canta a sós
Ante um microfone morto
Como que chega ao porto
Quando chega até nós.

Quantos, como eu,
Sentem agora
A atracção de banalidade e céu
Dessa canção
Que foi marcada nos jornais para esta hora
Mas punge o coração.
Ah, nem há hora, nem há emissora.
Num aparelho surdo a que cantar
Que possa enganar
O que o coração chora,
Que possa evitar
Que se levante o véu
Do que se passa nesta hora
Entre a banalidade e o céu.

Que estúpida canção
É, palavra a palavra,
O que esse francês vem cantar
Da sua lavra.
Enchem-se-nos os olhos de lágrimas.
Por que não?
Mas não, não quero chorar.
Um poeta ter lágrimas
Perante um cantar!

Que vergonha para a poesia!
Mas o coração
Com o que quero nada quer,
E vai na esteira de essa voz e melodia
Sem eu saber.

FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935


segunda-feira, 27 de julho de 2015

FAZ HOJE 85 ANOS





Minha mulher, a solidão,
Consegue que eu não seja triste.
Ah, que bom é ao coração
Ter este lar que não existe!

Recolho a não ouvir ninguém,
Não sofro o insulto de um carinho,
E falo alto sem que haja alguém:
Nascem-me os versos no caminho.

Senhor, se há bem que o céu conceda
Submisso à opressão do Fado,
Dá-me eu ser só, - veste de seda -,
E falar só - leque agitado.


FERNANDO PESSOA, 27 DE JULHO DE 1930