segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ainda os heterónimos - O Mestre

Na carta, já aqui referida, escrita pelo Fernando Pessoa, ao então jovem director da revista “Presença”, Adolfo Casaes Monteiro, – a célebre carta da génese dos heterónimos! -, para além das muitas particularidades com que ornamenta os poetas “que lhe foram surgindo”, referindo-se ao Alberto Caeiro, nascido, “Guardador de Rebanhos”,escreve :”Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.”
Com o detalhe com que me julguei capaz, procurei, mais atrás, fazer uma leitura desta carta, na parte a que se refere à génese do heterónimos, mais compatível com a realidade, procurando compreender o verdadeiro sentido do que o poeta escreveu, tomando esse texto como uma parábola. Sendo, como também o disse, um documento duma enorme importância, ele só se enquadra na realidade da sua obra, tal como ela tem vindo a surgir da famosa arca, - comparando datas, atribuições de autoria hesitante e até, em muitos casos, radicalmente, opostas -, se entendermos o que o Fernando Pessoa pensava, ao encenar um verdadeiro drama-em-gente, criando personagens, atribuindo-lhes idades e características físicas precisas, indicando, por exemplo, a data do falecimento de um desses personagens (precisamente o Alberto Caeiro), e o exílio voluntário de um outro ( o Ricardo Reis).
E passo a citar o que está escrito nessa carta:

“Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro o dia e o mês, mas tenho-os

algures) Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em
1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu
em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora está certo). Este, como sabe
é Engenheiro naval (por Glasgow) , mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso)
não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1m,,75 de altura – mais
2 cm. do que eu) magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada, todos – Caeiro, louro sem cor; Reis, de um vago moreno mate; Campos entre o branco e
moreno, tipo vagamente judeu português, cabelo porém liso e, normalmente apartado ao lado, monóculo.”,

Embora todo o texto pareça um relato minucioso de factos, situações e pessoas de existência real, tudo se passava, de facto, na imaginação do poeta. O que pretenderia, afinal, o Fernando Pessoa que o seu correspondente pensasse? Parece uma pergunta descabida, mas ela tem todo o sentido, se me é permitido afirmá-lo. Possivelmente, e porque se tratava de interlocutores de elevado nível cultural, o que o Poeta pretenderia, era, apenas, que o jovem Casaes Monteiro entendesse desta forma: “ É assim que eu “vejo” toda esta questão”. E era assim que se passava dentro de si próprio, como já tive ocasião de sugerir, numa entrada de 31 de Agosto do ano passado. Julgo que quem deu realidade pessoal aos heterónimos, foram os que fizeram uma leitura por excesso. Ou seja: aceitaram tudo como realidade.

Antes de passar adiante, julgo de muito interesse a transcrição de um texto do Fernando Pessoa, que se encontrou na arca, sem data nem assinatura e que veio a ser editado, pela primeira vez, em 1960, em “ Fernando Pessoa – Obra Poética”, da Editora José Aguilar, de São Paulo, Brasil. Considero que a questão dos heterónimos fica arrumada, com a palavra do próprio poeta. Este texto surge, na citada edição, como “Nota preliminar” a “Ficções de interlúdio”, livro onde o poeta, em muitos dos seus projectos editorais deixados junto dos seus papéis, incluiria, em conjunto, as poesias do Ricardo Reis, do Alberto Caeiro e do Álvaro de Campos, excluindo dessas “ficções” a poesia assinada por si próprio. Numa primeira parte desse texto, explica as diferenças de estilos dos três poetas, abordando ainda a prosa do Livro do Desassossego, e as semelhanças e as diferenças, entre o seu modo de pensar e de escrever e o modo de pensar e de escrever do Bernardo Soares, encerrando essa dissertação com este significativo parágrafo:

“Nos autores da “Ficções de interlúdio não são só as ideias e os sentimentos que se distinguem dos meus: a mesma técnica de composição, o mesmo estilo, é
diferente do meu. Aí cada personagem é criada integralmente diferente, e não apenas diferentemente pensada. Por isso nas “Ficções de Interlúdio” predomina o verso. Em prosa é mais difícil de outrar.”

E mais adiante, depois de analisar as diferenças, dentro da divisão que Aristóteles deu à poesia, – lírica, elegíaca, épica e dramática –, acrescenta:

“Por qualquer motivo temperamental que não me proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens diversas entre si e
de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários, que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria.
Assim têm estes poemas de Caeiro, os do Ricardo Reis e os do Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou
sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se
deve ler.
Um exemplo: escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do “Guardador de Rebanhos”, com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualista absoluto.
Na minha pessoa própria e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso de blasfémia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém,
como eu o concebi, é assim: assim tem pois de escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo
que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, não era mulher nem, que se saiba,
histero-epiléctico, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama,
é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque ela são fictícias e não porque estão num drama
Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande e a bondade humana não
é notável.”

Aliás, é este prodígio que tem espantado o Mundo literário: várias e maravilhosas poesias, de diferente forma e conteúdo, num só poeta, o Fernando Pessoa! Este é um dado, que, neste momento pretendo deixar assim, esperando que outros, mais capazes, desmontem este ponto de vista, que é apenas meu. O que me levou a abordar o tema e a fazer as citações que fiz, tem a ver com uma outra questão, que julgo de interesse aprofundar: Caeiro, o Mestre? Porquê?
Será muito razoável usar, desde já, de uma medida profiláctica, e que é a de ter a noção bem clara de que, se há estudiosos, muito respeitáveis, que conseguem apresentar uma lista com dezenas de heterónimos, encontrados nos papéis que o Pessoa nos deixou, a verdade é que, literariamente, podemos falar de cinco heterónimos, em língua portuguesa: o Alberto Caeiro, o Ricardo Reis, o Álvaro de Campos, o Bernardo Soares e o António Mora. Tudo resto me parecem simples experiências, inconsequentes, sem obra que justifique a sua distinção como autor. O Barão de Teive, pareceu, em dada fase, que iria ser o responsável pelo “Livro do Desassossego”, mas, muito rapidamente, a melodia em que se tornou o Livro, se autonomizou e, sobretudo, se afastou completamente, do modo de pensar do Barão de Teive, aparecendo, então, essa figura, hoje universal, do guarda-livros, Bernardo Soares. E do Barão ficaram os apontamentos para “A Educação de um Estóico”, que começam e acabam no meio, – se me é permitida a expressão.
O António Mora é um caso deveras especial: começou por ser uma figura que entrava numa novela, que o Fernando Pessoa começou a escrever, chamada “ A Casa de Saúde de Cascais”. E o Mora estava lá em tratamento, tendo uma postura muito original, que o leva a discutir, com o autor da novela, numa altura em que ele, – é assim que o Fernando Pessoa o narra –, foi visitar o estabelecimento de saúde de Cascais, que, como está bem de ver, era destinado a loucos mansos…
O Pessoa, parou com a novela, como aliás, fez com muitas outras, e começou a escrever um tipo de prosa, de apologia do “Regresso dos Deuses”, que era o motivo central da conversa do António Mora na Casa de Saúde. Daí, a reparar que o Ricardo Reis também tinha uma costela panteísta, foi um instante. E eis que os põe a discutir o tema, cada um dentro de um estilo muito próprio. O Reis, com o seu brilhante espírito de síntese e o Mora, sempre numa prosa abundante e nem sempre muito objectiva. Mas a verdade é que, em termos meramente quantitativos, o António Mora escreveu incomensuravelmente mais do que os seus colegas pessoanos. O volume da Edição Crítica, da Imprensa Nacional, referente à obra do António Mora, tem 389 páginas de denso texto!
Portanto parece-me perfeitamente legítima a questão: Caeiro, o Mestre? E porquê?