sábado, 30 de abril de 2011

FAZ HOJE 85 ANOS





O florir do encontro casual
Dos que hão-de sempre ficar estranhos...


O único olhar sem interesse recebido ao acaso
Da estrangeira rápida...


O olhar de interesse da criança trazida pela mão
Da mãe distraída...


As palavras de episódio trocadas 
Com o viajante episódico
Na episódica viagem...


Grandes mágoas de todas coisas serem bocados...
Caminho sem fim...




ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE ABRIL DE 1926

FAZ HOJE 98 ANOS





MISSA NEGRA




O rasto do sol perdido morreu
No céu 'scuro como uma capa...
Minha alma é um cardeal ateu
Que em breve vai ser feito Papa...


Como um crente estranho, na alma luz-me só isto,
(E um fogo de horror a alma lhe esfria)
Cuspir na face de Cristo
E violar a Virgem Maria...


E apraz-lhe e apavora o crente ateu
Isto com um fogo e horror carnal  -
Fazê-lo e depois ver que é real o Céu
E que o Inferno é verdadeiro e real!




FERNANDO PESSOA, 30 DE ABRIL DE 1913

sexta-feira, 29 de abril de 2011

FAZ HOJE 87 ANOS

Como alguém que conserva na memória
Absurda uma paisagem sem razão,
A que o não liga sentimento ou 'stória,
Mas que persiste sobre o coração,
Que ele não ama ou busca mas que inglória
Lhe aflige o pensamento,
Assim me querem sem um sentido;
Assim eu vivo em ti, casual e vão.

Mas vivo em ti. Às horas em que sonhas,
Nem sabes o que sonhas sem sonhar,
Entre recordações quase risonhas
A que só falta o ser e o despertar,
Meu ar que te não vale, em que o suponhas,
Bóia em teu sonho, vago,
Como sombras no fundo do ermo lago
No silêncio longínquo do luar.

Nunca me amaste; apenas teu abstracto
Ser meu abstracto ser adivinhou,
Se me viste, esqueceste, mas o retrato
Do fantasma de mim que alheado sou,

Conheces, sem que o saibas, o destino
Que me fadou, adivinhaste o Rei.
Meu passado de incerto peregrino,
Meu ar alheio a condição ou Lei,
Qualquer cousa de ti pôs em atino
Do estrangeiro presente
É a abstracta humanidade em ti que sente
É a abstracta humanidade que serei.

E a ti mesmo o teu ser perguntaria
Se tivesse sentir-se p'ra o fazer,
Que memória ou (...) encontraria
Neste humano e (...) parecer,
Depois tornaste a olhar ao (...)  e ao dia
E nunca mais pensaste
Em mim, o humano absurdo que estranhaste,
A quem falaste sem o conhecer.

Os deuses com o seu selo de mistério
À invisível presença (...) dão,
Não é o aspecto (...)ou  funéreo
Nem a dor pressentida, ou a
É um hálito de fado (...) e etéreo
Que põe aura e estranheza.
É uma sombra de quem sente a natureza
Um (...)

Guarda, calmo e insciente, esse teu fado
Com que me esqueces, outro e natural;
Não me recordes mais, e que o passado
Seja a substância de um ser real
Para ti; nunca mais no teu sonhado
Existir, surja um gesto
Que lembre que me viste ou o contexto.

Olho, e sinto com íntima estranheza
Que mal sentes, passando sobre mim
Teus olhos, que interrogam sem clareza.
Muitas vezes sem qu'rer, me olhas assim.
Que pensas?
Não sei; nem o tu, que és presa
De uma impressão furtiva
Que te interroga a meu respeito, e é viva
Sem que nada que sentes, seja afim.

FERNANDO PESSOA, 29 DE ABRIL DE 1924

FAZ HOJE 83 ANOS

Às vezes medito,
Às vezes medito e medito mais fundo,e ainda mais fundo
E todo o mistério das coisas aparece-me como um óleo à superfície,
E todo o universo é um mar de caras de olhos abertos para mim.
Cada coisa, - o candeeiro da esquina, uma pedra, uma árvore -
É um olhar que me fita de um abismo incompreensível,
E desfilam no meu coração os deuses todos, e as ideias dos deuses.
Ah, haver coisas!
Ah, haver seres!
Ah, haver maneira de haver seres
De haver haver
De haver como haver haver,
De haver...
Ah, existir o fenómeno abstracto de existir,
Haver consciência e realidade,
O que quer que isto seja...
Como posso eu exprimir o horror que isto me causa?
Como posso eu dizer como é isto para se sentir?
Qual é alma de haver ser?
Ah, o pavoroso mistério de existir a mais pequena coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver qualquer coisa
Porque é o pavoroso mistério de haver...




ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE ABRIL DE 1928

quinta-feira, 28 de abril de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS

A rabanada de vento
Deitou ao chão o andaime
Do meu desalento
E eu grito: salvai-me!


Mas se a rabanada de vento
Deitar ao chão
O andaime do meu desalento,
Não há salvação.


FERNANDO PESSOA, 28 DE ABRIL DE 1928

FAZ HOJE 90 ANOS



Com a brisa da tarde
Desce um vasto sossego
Sob a triste cidade
Fito a cidade e sou cego
Para mais que um todo em luz.
Sinto como uma cruz
Que a minha alma trouxesse.
Um vasto sossego desce.


FERNANDO PESSOA, 28 DE ABRIL DE 1921

FAZ HOJE 92 ANOS

Inútil desassossego
Que me pesa na alma,
Porque é o dia cego
Para mim, e amanhã em meu ser calma?


Imparável 'star
Ali no universo.




FERNANDO PESSOA, 28 DE ABRIL DE 1919

quarta-feira, 27 de abril de 2011

FAZ HOJE 95 ANOS

Movem nossos braços outros braços que os nossos,
Falam na nossa boca lábios que não nos pertencem.
Não somos agentes; somos acções - os destroços
De gestos apenas metade neste mundo em que a vida
Passa como um cortejo em que os olhos de Deus pensem
E entre ele e o cortejo pensado há quem age esta lida.


Somos cartas mandadas de espírito para espírito na treva,
Quebrada a ponte, nós somos a ponte, e isso é falso...
Farrapos das intenções dos anjos que a treva leva
E ao alto de cada alma nossa ergue-se um cadafalso...


Tudo isto se passa entre Deus e o ser que não temos
E no intervalo chora o som da ida e nos remos.




FERNANDO PESSOA, 27 DE ABRIL, DE 1916

terça-feira, 26 de abril de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS



O anel dado ao mendigo é injúria, e a sorte
Dada a quem pensa é infâmia, que quem pensa
Quer verdade, e não sorte.
Como um mendigo a quem é dado o nome
De rei, não come dele, mas do prato
Do rei, minha 'sperança
Da razão que há em tê-la se alimenta
E não do que deseja.




RICARDO REIS, 26 DE ABRIL DE 1928

FAZ HOJE 83 ANOS

Nas altos ramos de árvores frondosas
O vento faz um rumor frio e  alto.
Nesta floresta, em este som me perco
E sozinho medito.
Assim no mundo, acima do que sinto,
Um vento faz a vida, e a deixa, e a toma,
 E nada tem sentido - nem a alma
Com que penso sozinho.




RICARDO REIS, 26 DE ABRIL DE 1928

FAZ HOJE 83 ANOS

Inglória é a vida, e inglório o conhecê-la.
Quantos, se pensam,não se reconhecem
Os que se conheceram!
A cada hora se muda não só a hora
Mas o que se vê nela, e a vida passa
Entre viver e ser.




RICARDO REIS, 26 DE ABRIL DE 1928

FAZ HOJE 85 ANOS




Se te queres matar,por que  não te queres matar?

Ah, aproveita! que eu, que tanto amo a morte e a vida,
Se ousasse matar-me, também me mataria...
Ah, se ousares,ousa!
De que te serve o quadro sucessivo das imagens externas
A que chamamos mundo?
A cinematografia das horas representadas
Por actores de convenções e poses determinadas,
O circo polícromo do nosso dinamismo, sem fim?
De que te serve o teu mundo interior que desconheces?
Talvez, matando-te, o conheças finalmente...
Talvez, acabando, comeces...
E, de qualquer forma, se te cansa seres,
Ah, cansa-te nobremente,
E não cantes, como eu, a vida por bebedeira,
Não saúdes, como eu, a morte em literatura!

Fazes falta? Ó sombra fútil chamada gente!
Ninguém faz falta; não fazes falta a ninguém...
Sem ti correrá tudo sem ti.
Talvez seja pior para outros existires que matares-te...
Talvez peses mais durando, que deixando de durar...

A mágoa dos outros?... Tens remorso adiantado
De que te chorem?
Descansa: pouco te chorarão...
O impulso vital apaga as lágrimas pouco a pouco,
Quando não são de coisas nossas,
Quando são do que acontece aos outro, sobretudo a morte.
Porque é a coisa depois da qual nada acontece aos outros...

Primeiro é a angústia, a surpresa da vinda
Do mistério e da falta da tua vida falada...
Depois o horror do caixão visível e material,
E os homens de preto que exercem a profissão de estar ali.
Depois a família a velar, inconsolável e contando anedotas,
Lamentando entre as últimas notícias dos  jornais da noite,
Interseccionando a pena de teres morrido com o último crime...
E tu mera causa ocasional daquela carpidação,
Tu verdadeiramente morto, muito mais morto que calculas...
Muito mais morto aqui que calculas,
Mesmo que estejas muito mais vivo além...

Depois a retirada preta para o jazigo ou a cova,
E depois o princípio da morte da tua memória.
Há primeiro um alívio em todos
Da tragédia um pouco maçadora de teres morrido...
Depois a conversa aligeira-se quotidianamente,
E a vida de todos os dias retoma o seu dia...

Depois, lentamente esqueceste.
Só és lembrado em duas datas aniversáriamente:
Quando faz anos que nasceste, quando faz anos que morreste.
Mais nada, mais nada. Absolutamente mais nada.
Duas vezes no ano pensam em ti,
Duas vezes no ano suspiram ti os que te amaram,
E uma ou outra vez suspiram se por acaso se fala em ti.

Encara-te a frio, e encara a frio o que somos...
Se queres matar-te, mata-te...
Não tenhas escrúpulos morais, receios de inteligência!...
Que escrúpulos ou receios tem a mecânica da vida?
Que escrúpulos químicos tem o impulso que gera
As seivas, e a circulação do sangue, e o amor?
Que memória dos outros tem o ritmo alegre da vida?

Ah, pobre vaidade de carne e osso chamada homem,
Não vês que não tens importância absolutamente nenhuma?
És importante para ti, porque é a ti que te sentes.
És tudo para ti, porque para ti és o universo,
E o próprio universo e os outros
Satélites da tua subjectividade objectiva.
És importante para ti, porque só tu és importante para ti.
Se és assim, ó mito, não serão os outros  assim?

Tens, como Hamlet, o pavor do desconhecido?
Mas o que é conhecido? o que é que tu conheces,
Para que chames desconhecido a qualquer coisa em especial?

Tens, como Falstaff, o amor gorduroso da vida?
Se a amas materialmente, ama-a ainda mais materialmente:
Torna-te parte carnal da terra e das coisas!
Dispersa-te, sistema físico-químico
De células nocturnamente conscientes
Pela nocturna consciências da inconsciência dos corpos,
Pelo grande cobertor não-cobrindo-nada das aparências,
Pela relva e a erva da proliferação dos seres,
Pela névoa atómica das cousas,
Pelas paredes turbilhonantes
Do vácuo dinâmico do mundo...


ÁLVARO DE CAMPOS, 26 DE ABRIL DE 1926




FAZ HOJE 85 ANOS





Nada me prende a nada
Quero cinquenta cousas ao mesmo tempo.
Anseio com uma angústia de fome de carne
O que não sei que seja -
Definidamente pelo indefinido...
Durmo irrequieto, e vivo num sonho irrequieto
De quem dorme irrequieto, metade a sonhar.


Fecharam-me todas as portas abstractas e adequadas.
Correram cortinas por dentro de todas as hipóteses que eu poderia  ver na rua.
Não há na travessa achada o número de porta que me deram.


Acordei para a mesma vida para que tinha adormecido.
Até os meus exércitos sonhados sofreram derrota.
Até os meus sonhos se sentiram falsos ao serem sonhados.
Até a vida só desejada me farta - até essa vida...


Compreendo a intervalos desconexos;
Escrevo por lapsos de cansaço;
E um tédio que é até do tédio arroja-me à praia.


Não sei que destino ou futuro compete à minha angústia sem leme;
Não sei que ilhas do Sul impossível aguardam-me náufrago;
Ou que palmares de literatura me darão ao menos um verso.
Não, não sei isto, nem outra coisa, nem coisa nenhuma...
E, no fundo do meu espírito, onde sonho o que sonhei,
Nos campos últimos da alma, onde memoro sem causa
(O passado é uma névoa natural de lágrimas falsas), 
Nas estradas e atalhos das florestas longínquas
Onde supus o meu ser,
Fogem desmantelados, últimos restos
Da ilusão final, 
Os meus exércitos sonhados derrotados sem ter sido,
As minhas coortes por existir, esfaceladas em Deus.


Outra vez te revejo,
Cidade da minha infância pavorosamente perdida...
Cidade triste e alegre, outra vez sonho aqui...
Eu? Mas sou eu o mesmo que aqui vivi, e aqui voltei
E aqui tornei a voltar, e a voltar
E aqui de novo tornei a voltar?
Ou somos, todos os Eu que estive aqui ou estiveram
Uma série de contas-entes ligadas por um fio-memória,
Uma série de sonhos de mim de alguém de fora de mim?


Outra vez te revejo,
Com o coração mais longínquo e a alma menos minha?


Outra vez te revejo - Lisboa e Tejo e tudo -,
Transeunte inútil de ti e de mim,
Estrangeiro aqui como em toda a parte,
Casual na vida como na alma,
Fantasma a errar em salas de recordações,
Ao ruído dos ratos e das tábuas que rangem
No castelo maldito de ter de viver...


Oura vez te revejo,
Sombra que passa através de sombras, e brilha
Um momento a uma luz fúnebre desconhecida,
E entra na noite como um rastro de barco se perde
Na água que deixa de se ouvir...


Outra vez te revejo,
Mas, ai, a mim não me revejo!
Partiu-se o espelho mágico em que me revia idêntico,
E em cada fragmento fatídico vejo só um bocados de mim -
Um bocado de ti e de mim!...




ÁLVARO DE CAMPOS, 26 DE ABRIL DE 1926

FAZ HOJE 85 ANOS



Em torno a mim, em maré cheia,
Soam como ondas a brilhar,
O dia, o tempo, a obra alheia,
O mundo natural a estar.

Mas eu, fechado no meu sonho,
Parado emigro, e, sem querer,
Inutilmente recomponho
Visões do que não há-de ser.

Cadáver da vontade feita,
Mito real, sonho a sentir,
Sequência interrompida, eleita
Para os destinos de partir,

Mas presa à inércia angustiada
De não saber a direcção,
E ficar morta na erma estrada
Que vai da mente ao coração.

Hora própria, nunca venhas,
Que ontem talvez foi pior…
E tu, sol claro que me banhas,
Ah, banha sempre o meu torpor!


FERNANDO PESSOA, 26 DE ABRIL DE 1926

FAZ HOJE 85 ANOS





O CARRO DE PAU


O carro de pau
Que bebé deixou…
Bebé já morreu,
O carro ficou…

O carro de pau
Tombado de lado…
Depois do enterro
Foi assim achado…

Guardaram o carro,
Guardaram o bebé…
A vida e os brinquedos –
Cada um é o que é…

Está o carro guardado…
Bebé vai esquecendo…
A vida é p’ra quem
Continua vivendo…

E o carro de pau
É um carro que está
Guardado num sótão
Onde nada há…

A vida é a mesma
Esquecida, curiosa…
Quem sabe se o carro
Sente alguma cousa?...


FERNANDO PESSOA, 26 DE ABRIL DE 1926

segunda-feira, 25 de abril de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS





O Inverno passa, tardando
Em passar.
O ar, asperamente brando,
Faz 'sperar.


Se tudo quanto eu desejo
Fosse meu,
Nunca teria um ensejo
De ser eu.


O Inverno passa, mas dura.




FERNANDO PESSOA, 25 DE ABRIL DE 1931

domingo, 24 de abril de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS





O sonho que se opôs a que eu vivesse
A 'sperança que não quis que eu acordasse,
O amor fictício que nunca era esse,
A glória eterna que velava a face...


Por onde eu, louco sem loucura, passe
Esse conjunto absurdo a teia tece...
E, por mais que o Destino me ajudasse,
Quero crer que o Deus dele me esquecesse.


Por isso sou o deportado, e a ilha
Com que, de natural e vegetável
A imaginação se maravilha...


Nem frutos tem nem água que é potável...
Do barco naufragado vê-se a quilha...
(...)




FERNANDO PESSOA, 24 DE ABRIL DE 1928

sábado, 23 de abril de 2011

FAZ ESTE MÊS 77 ANOS





Onde, em jardins exaustos
Nada já tenha fim,
Forma teus fúteis faustos
De tédio e de cetim.
Meus sonhos são exaustos,
Dorme comigo e em mim.




FERNANDO PESSOA, ABRIL DE 1934

sexta-feira, 22 de abril de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Toda beleza é um sonho, inda que exista.
Porque beleza é sempre mais do que é.
Tua beleza vista
Não está de mim ao pé.


Disto de de mim o que em ti vejo, mora
Onde sonho. Se existes, não o sei
Senão porque é agora
Aquilo que sonhei.


A beleza é uma música que, ouvida
Em sonhos, para a vida transbordou.
Mas não é bem a vida:
É a vida que sonhou.




FERNANDO PESSOA, 22 DE ABRIL DE 1934

FAZ HOJE 77 ANOS

Tudo que sou não é mais do que abismo
Em que uma vaga luz
Com que sei que sou eu e incerto cismo
Obscura me conduz,

Um intervalo entre não ser e ser
Feito de eu ter lugar,
Como o pó, que se vê o vento erguer,
Vive de ele o mostrar.


FERNANDO PESSOA, 22 DE ABRIL DE 1934

FAZ HOJE 83 ANOS





Hoje 'stou triste, 'stou triste.
'starei alegre amanhã...
O que se sente consiste
Sempre em qualquer coisa vã


Ou chuva, ou sol, ou preguiça...
Tudo influi, tudo transforma...
A alma não tem justiça,
A sensação não tem forma.


Uma verdade por dia...
Um mundo por sensação...
'Stou triste. A tarde está fria.
Amanhã sol e razão.




FERNANDO PESSOA, 22 DE ABRIL DE 1928

FAZ HOJE 98 ANOS,



O OUTRO AMOR




Com que fúria ergo a ideia dos meus braços
Para a ideia de ti! Com que ânsia bebo,
Os olhos pondo em teus sonhados traços,
Todo o fêmea em teu corpo de mancebo!


Teu hálito sonhado até cansaços
Como em meu vivido hálito recebo!
Ó carne que sonho és tantos laços
Para mim! Deus-deus, Vénus-Efebo!


Ó dolorosamente só sonhado!
Soubesse eu o feitio exterior e o jeito
Em gestos e palavras e perfeito


As palavras a dar a este pecado
De só pensar em ti, de ter o peito
Opresso em pensar-te entrelaçado!




FERNANDO PESSOA, 22 DE ABRIL DE 1913



quinta-feira, 21 de abril de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS







Chega através do dia de névoa alguma coisa do esquecimento.
Vem brandamente com a tarde a oportunidade da perda.
Adormeço sem dormir, ao relento da vida.

É inútil dizer-me que as acções têm consequências.
É inútil eu saber que as acções usam consequências.
É inútil tudo, é inútil tudo, é inútil tudo.

Antes do dia de névoa não chega coisa nenhuma.

Tinha agora vontade
De ir esperar ao comboio da Europa o viajante anunciado,
De ir ao cais ver entrar o navio e ter pena de tudo.

Nem vem com a tarde oportunidade nenhuma.


ÁLVARO DE CAMPOS, 21 DE ABRIL DE 1930

quarta-feira, 20 de abril de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS

Se eu me sentir sono 
E quiser dormir,
Naquele abandono
Que é o não sentir,


Quero que aconteça
Quando eu estiver
Pousando a cabeça
Num chão qualquer,


Mas onde sob ramos
Uma árvore faz
A sombra em que achamos
A sombra da paz.




FERNANDO PESSOA 20 DE ABRIL DE 1934

FAZ HOJE 77 ANOS

A Igreja Católica cobriu como uma redoma
Meus dias serenos.
Chamo-lhe agora, e com razões, a Igreja de Roma.
Sei mais ou sou menos?


Kabbalahs, gnose, mistérios, maçonarias
Tudo tive na mão
Na busca ansiosa que enche minhas noites e dias,
Mas nunca o meu coração.


De que é que me deserdou a verdade?
A maçã diabólica
Comi-a, e sou outro, mas quanto?! Oh, a saudade
Da Igreja Católica!


Qualquer coisa de mim quebrou-se, como uma mó
Que caísse mal.
Em pequeno eu seguia, magnanimamente só
Sem nada fatal.




FERNANDO PESSOA, 20 DE ABRIL DE 1934