quinta-feira, 31 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 83 ANOS



FÉRIAS DE SETEMBRO


Aqui estou posto, onde algas e cortiça
À praia sem ninguém a maré traz;
Onde não há verdade nem justiça
Mas só o som sem nada que o mar faz.

E aqui, ao pé do antigo promontório,
Alheio em pedra bruta ao nome seu,
Volto, depois de um grande fado inglório,
À confusa substância que sou eu.

Tantas grandezas me pesaram na alma,
Tanta vicissitude me formou,
Que agora, a sós sem mim, não sei da calma
Que deveria ter, nem sei quem sou.

Fui tão estrangeiro no que fui, tão vago
Andei de mim em quanto consegui,
Que me recolho como o fim de um estrago
Do que me resta, e não é nada em si.

Pensei, fugindo às torres e às praças,
Trazer comigo eu mesmo, e aqui me achar,
Liberto de venturas e desgraças,
Tal qual eu sou, sem nada me alterar.

Mas ai!, não é em vão que se caminha
Fora da alma, entregue à vida e à sorte.
A alma que trago já não é a minha.
Sou um sobrevivente à própria morte.

Deixei quem fui nas algas e a cortiça
De um mar pior que este que se ergue aqui.
Aqui não há verdade nem justiça.
Não as achei também onde vivi.

Pesa-me a simples natureza. Anseio
Por me encontrar, e sinto-me sentir
Que só voltando ao exílio de onde veio
Minha alma poderá se conseguir.

Mas nem posso ficar nem regressar.
Vendi a alma aos dias e às noções.
Não tenho pátria em mim a que voltar,
Nem próprios pensamentos ou emoções.

Metade meu, metade alheio, agora.


FERNANDO PESSOA, 31 DE JANEIRO DE 1930

quarta-feira, 30 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS






Algures no tempo ido,
Num 'spaço já esquecido,
Tive, guardada, não sei
Onde, nem se inda a terei,
Uma pequena porção
De ser feliz sem razão.

É uma espécie de fermento
Que se usa no pensamento
Para fazer bolo doce.
Com uma pequena dose
Consegue-se o que se quer.
O pior de tudo é viver.

Uma mão-cheia é bastante
Para aproveitar o instante
E dourá-lo de elegia.
Usa-se com água fria.
Outras é com água quente
(Lágrimas). É indiferente.


FERNANDO PESSOA, 30 DE JANEIRO DE 1931

terça-feira, 29 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS



Em segredo, não vá
Qualquer cousa erguer
O vulto de onde está
A esquecer...

Em segredo, não seja
Verdade o mundo, e vão
Tudo quanto deseja
O coração...

Em segredo, em segredo
Que o mais que há seja a alada
Cousa que entre o arvoredo
Não era nada.


FERNANDO PESSOA, 29 DE JANEIRO DE 1931

segunda-feira, 28 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 91 ANOS




CANÇÃO DE OUTONO

No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO, DE 1922

domingo, 27 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 85 ANOS




Quando, cheio do próprio dó,
No meio do ermo e horrível universo,
 Cada um conhece que 'stá só
E que quanto mais saúda os céus e o pó
Mais somente em si mesmo está imerso;

Quando, na fria e alheia solidão
Que é tudo, quando o sente o coração,
Quando são mortos os que nos amaram
E só os que nos estremam nos finaram,
Para fazer mais fria e mais sozinha
A casa sem raiz que nos deixaram
E a abandonada vinha...

Então, quando uma nova consciência,
Um pavor louco da infinita treva,
Nos enche a inexistência
E uma névoa do além se eleva...

Então, Senhor, erguendo o olhar sem rumo,
Surge da inerte noite, como um dia

Teu vulto misericordioso,
Teu gesto paternal e cuidadoso,
Tua tristeza e alegria...


FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1928

sábado, 26 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 96 ANOS


Já sinto em sonhos sobre eu ‘star morto
A erva crescer,
E como a noiva que vê do porto
A nau crescer

Que traz seu noivo e chora por tê-lo,
Porque, chegado,
Morre a feliz ‘sperança de vê-lo
E a ‘sperança é bela.

Assim… não sei… sobre eu estar morto
A erva…

Mas que tem isso com eu ‘star morto
Sinto-o e não sei…

Morre a feliz ‘sperança de vê-lo,
E tê-lo é perder querê-lo ter ao lado.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JANEIRO DE 1917

sexta-feira, 25 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 85 ANOS


O rastro breve que das ervas moles
Ergue o pé findo, o eco que oco coa,
A sombra que se adumbra,
O branco que a nau larga –
Nem maior nem melhor deixa a alma às almas,
O ido aos idos. A lembrança esquece.
Mortos, inda morremos.
Lídia, somos só nossos.

RICARDO REIS, 25 DE JANEIRO DE 1928

quinta-feira, 24 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS



É um campo verde e vasto,
Sozinho sem saber,
De vagos gados pasto
Sem águas a correr.

Só campos, só sossego,
Só solidão calada.
Olho-o e nada nego
E não afirmo nada.

Aqui em mim me exalço
No meu fiel torpor.
O bem é frouxo e falso,
O mal é erro e dor.


Agir é não ter casa,
Pensar é nada ter.
Aqui nem brisa ou asa
Nem razão para a haver.

E um vago sono desce
Só por não ter razão,
E o mundo alheio esquece
À vista e ao coração.

Torpor que alastra e excede
O campo e o gado e os ver.
E a alma nada pede
E o corpo nada quer.

Feliz sabor de nada,
Insciência do mundo,
Aqui sem ponte ou estrada,
Nem horizonte ao fundo.




FERNANDO PESSOA, 24 DE JANEIRO DE 1933

quarta-feira, 23 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 92 ANOS



Não sei que dor quebranta
O meu coração doente,
Que um pouco dói, e encanta
Um pouco, e mal se sente.

Não sei se é como a leve
Dor de mortal ferida,
Que subtil gume obteve
Em rápida investida;

Ou se é apenas tanto
Quanto o pouco que dói,
Se por conter encanto
É que menos dor foi...

Não sei, nem me conheço.
Sentindo-a, esqueço a vida,
E porque a vida esqueço
Menos a alma é dorida.

Não sei... Frémito , leve
De asa da maldição
Que ou pára, ou pousa breve
Sobre o meu coração.


FERNANDO PESSOA, 23 DE JANEIRO DE 1921

terça-feira, 22 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 84 ANOS



Qual a tarde por achar
Em que teremos todos razão
E respiraremos o bom ar
Da alameda (sendo verão),

Ou, sendo inverno, baste 'star
Ao pé do sossego ou do fogão?
Qual é a tarde por voltar?
Essa tarde houve, e agora não.

Qual é a mão cariciosa
Que há-de ser enfermeira minha -
Sem doenças minha vida ociosa -
Oh, essa mão é morta e osso...
Só a lembrança me acarinha
O coração com que não posso.


FERNANDO PESSOA, 22 DE JANEIRO DE 1929

segunda-feira, 21 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 98 ANOS



Frei, João, teus poemas
Ascéticos, não mostram
Mais do que o teu desejo
De não sentir nada...


FERNANDO PESSOA, 21 DE JANEIRO DE 1915

domingo, 20 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 80 ANOS



Olhando o mar, sonho sem ter de quê.
Nada no mar, salvo o ser mar, se vê.
Mas de se nada ver quanto a alma sonha!
De que me servem a verdade e a fé?

Ver claro! Quantos, que fatais erramos,
Em ruas ou em estradas ou sob ramos,
Temos esta certeza e sempre e em tudo
Sonhamos e sonhamos e sonhamos.

As árvores longínquas da floresta
Parecem, por longínquas, estar em festa.
Quanto acontece porque se não vê!
Mas do que há ou não há o mesmo resta.

Se tive amores? Já não sei se os tive.
Quem ontem fui já hoje em mim não vive.
Bebe, que tudo é líquido e embriaga,
E a vida morre enquanto o ser revive.

Colhes rosas? Que colhes, se hão-de ser
Motivos coloridos de morrer?
Mas colhe rosas. Porque não colhê-las
Se te agrada e tudo é deixar de o haver?

FERNANDO PESSOA, 20 DE JANEIRO DE 1933

sábado, 19 de janeiro de 2013

FAZ HOJE 82 ANOS



Na orla do vento movem
Seus corpos mortos as folhas.
E ora das árvores chovem,
Ora onde inertes não movem
A chuva de outono molha-as.

Não há no meu pensamento
Vontade com que o pensar,
Não tenho neste momento
Nada no meu pensamento:
Sou como as folhas ao ar.

Mas elas certo não sentem
Esta mágoa inteira e funda
Que meus sentidos consentem.
Nada são e nada sentem
Da minha mágoa profunda.


FERNANDO PESSOA, 19 DE JANEIRO DE 1931