sábado, 31 de agosto de 2019

FAZ HOJE 89 ANOS





Gradual, desde que o calor
Teve medo,
A brisa ganhou alma, à flor
Do arvoredo.

Primeiro, os ramos ajeitaram
As folhas que há,
Depois, cinzentas, oscilaram,
E depois já

Toda a árvore era um movimento
E o fresco viera.
Medita sem ter pensamento!
Ignora e espera!

FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1930


sexta-feira, 30 de agosto de 2019

FAZ HOJE 86 ANOS





Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É o que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Álea longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua.
Sente-se o frio de haver luar.
Nessa terra, também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933


quinta-feira, 29 de agosto de 2019


FAZ HOJE 104 ANOS



Bocas roxas de vinho

Testas brancas sob rosas,

Nus, brancos antebraços

Deixados sobre a mesa:



Tal seja, Lídia, o quadro

Em que fiquemos, mudos,

Eternamente inscritos

Na consciência dos deuses.



Antes isto que a vida

Como os homens a vivem,

Cheia da negra poeira

Que erguem das estradas.



Só os deuses socorrem

Com seu exemplo aqueles

Que nada mais pretendem

Que ir no rio das coisas.



RICARDO REIS, 29 DE AGOSTO DE 1915


quarta-feira, 28 de agosto de 2019

FAZ HOJE 92 ANOS

Não venhas sentar-te à minha frente, nem ao meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro,
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes ao meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e as ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.

FERNANDO PESSOA, 28 DE AGOSTO DE 1927

terça-feira, 27 de agosto de 2019

FAZ HOJE 86 ANOS




Dá-me a verdade: dou-te a vida.
A vida esquece como a água passa,
E é coisa morta a coisa que é esquecida.
Dá-me a verdade!
Como o que nunca foi, a vida esvoaça.

Ter o que é certo nas incertas mãos!
Saber bem o que nunca pode ser!
Tudo isto nos faz ermos e irmãos
No nada que nós somos.
Dá-me poder sentir, saber querer!

Instante inútil entre ser e estar,
Momento vácuo entre sonhar ou não,
Tudo isto pode ser e não ficar.
Dá-me a verdade!
Mas deixa-me a mentira no coração!

FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO DE 1933


segunda-feira, 26 de agosto de 2019

FAZ HOJE 89 ANOS





O rio que passa dura
Nas ondas que há em passar,
E cada onda figura
O instante de um lugar.

Pode ser que o rio siga,
Mas a onda que passou
É outra quando prossiga.
Não continua: durou.

Qual é o ser que subsiste
Sob estas formas de estar,
A onda que não existe,
O rio que é só passar?

Não sei, e o meu pensamento
Também não sabe se é,
Como a onda o seu momento
Como o rio.

FERNANDO PESSOA, 26 DE AGOSTO DE 1930