terça-feira, 31 de maio de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS

Os sons da filarmónica vindos de longe
O que é que são,
Além de sons da filarmónica vindos de longe,
Ao coração?


São saudades, não só minhas, porque eu
Sou toda a gente - 
Saudades de todos, de toda a sua gente que morreu
E está ausente...


Nesta hora escuto-os, são convivas do som
Que vem sem razão...
Trazem a tristeza de um passado já bom
Ao coração...


Gente, quartos, jardins, janelas, tudo...
Tudo isso vem
Em saudade estupidamente musical do fundo
Da alma e Belém. 


FERNANDO PESSOA, 31 DE MAIO DE 1931

segunda-feira, 30 de maio de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS

Deus te livre de estares onde estás,
de ser o que és e de ter o
que terás.


Deus te livre de tudo menos
De não deveres, e dos teus venenos.


Deus te livre de que te tomem
Por mulher, e também por homem.


FERNANDO PESSOA, 30 DE MAIO DE 1931



domingo, 29 de maio de 2011

FAZ HOJE 101 ANOS

A luz da tarde está calma,
Sobre o silêncio do lago.
Paira-me à tona d'alma
Um sentimento vago -
Nem alegria nem dor -
Como fanada flor...


Uma esperança caída
Do caule do passado
Uma lembrança esquecida
No olhar resignado
Quasi submersa jaz
Na água onde a luz é paz.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MAIO DE 1910

FAZ HOJE 77 ANOS

O céu, azul de luz quieta...
As ondas brandas a quebrar
Na praia lúcida e completa -
Pontas de dedos a brincar...


No piano anónimo da praia
Tocam nenhuma melodia,
De cujo ritmo por fim raia
Todo o sentido deste dia.


Que bom se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MAIO DE 1934

sábado, 28 de maio de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS

Em tempos quis o mundo inteiro.
Era criança e havia amar.
Hoje sou lúcido e estrangeiro.
(Acabarei por não pensar.)


A quem o mundo não bastava
(Porque depois não bastaria),
E a alma era um céu, e havia lava
Dos vulcões do que eu não sabia.


Basta hoje o dia não ser feio,
Haver brisa que em sombras flui,
Nem se perder de todo o enleio
De ter sido quem nunca fui.


FERNANDO PESSOA, 28 DE MAIO DE 1930

FAZ HOJE 87 ANOS



Eu olho com saudade esse futuro
Em que serei mais novo que depois,
E essa saudade, com que me sinto dois,
Cerca-me como um mar ou como um muro.




Não descreio, nem creio, mas ignoro.
'Stou posto onde se cruzam as estradas,
Multiplicando definidos nadas,
E no meio do jogo, amuo e choro.




O presságio roeu os meus pensamentos.
Velei a esfinge com serapilheiras.
E os jardins dispostos em quincúncios




Dão sobre esteiras de mar morto e vago,
E um vapor de cordas, sem bandeiras,
Pára no tanque, que nos finge de lago.


FERNANDO PESSOA, 28 DE MAIO DE 1924

sexta-feira, 27 de maio de 2011

FAZ HOJE 102 ANOS

É Maio, flores de Abril
Já sois o passado...


É Maio, flores de Junho
Dure em voz o pensamento
Sois apenas um momento
Esperando ter terminado.


FERNANDO PESSOA, 27 DE MAIO, 1909

FAZ HOJE 85 ANOS

Não é ainda a noite
Mas é já frio o céu.
Do vento o ocioso açoite
Envolve o tédio meu.


Que vitórias perdidas
Por não as ter querido!
Quantas perdidas vidas!
E o sonho sem ter sido...


Ergue-te, ó vento, do ermo
Da noite que aparece!
Há um silêncio sem termo
Por trás do que estremece...


Pranto de sonhos fúteis,
Que a memória acordou,
Inúteis, tão inúteis -
Quem me dirá quem sou?


FERNANDO PESSOA, 27 DE MAIO DE 1926



quinta-feira, 26 de maio de 2011

FAZ HOJE 94 ANOS

Sofro, Lídia, do medo do destino.
A leve pedra que um momento ergue
As lisas rodas do meu carro, aterra
Meu coração.
Tudo quanto me ameace de mudar-me
Para melhor que seja, odeio e fujo.
Deixem-me os deuses  minha vida sempre
Sem renovar
Meus dias, mas que um passe e outro passe
Ficando eu sempre quase o mesmo, indo
Para a velhice como um dia entra
No anoitecer.


RICARDO REIS, 26 DE MAIO DE 1917

quarta-feira, 25 de maio de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS

O a quem tudo é negado
Tem o mundo por fado,
O a quem ninguém ama
Tem  vida por chama
Esse a quem tudo falta,
Por baixo, a alma é alta.


São muitos os caminhos 
E alheios os vizinhos!
São largas as estradas
E as distâncias erradas,
Mas sempre sobra à alma
A fé que a faça calma.


Assim, sem espada ou lança,
Vou, como uma criança!
Pela estrada cantando
Porque vou confiando.
Vou sem medo e sem frio
Não sei em que confio.


FERNANDO PESSOA, 25  DE MAIO DE 1934

terça-feira, 24 de maio de 2011

FAZ HOJE 96 ANOS

Ando com a minha alma ao colo,
Como se fosse uma criança,
Uma tristeza, um desconsolo,
Um amor ao que não se alcança...


Em que longínqua ilha deserta
Poderei ser o rei que fui?
Ao pé de que rio que flui
Ao pé duma janela aberta?


Essas horas ao pé da água
Seriam tão consoladoras
Das tristes, lentas, tardas horas
Que florescem na minha mágoa...


Vozes de crianças nos parques...
Arcos velozes nos jardins...
Não que, ó alma, que tu arques
Com  a dor nítida dos Fins...


Quero antes que, pendente duma
Janela ao pé do rio lento,
Deixes cair teu pensamento
No rio lento sem espuma...


E assim o percas, assim vá
Por esse rio, além da vista,
À deslizada e a alvar conquista
Das margens que aqui não há.


Teus brincos velhos, tua avó
Usava-os e era tão feliz...
Como o meu coração está só...
Não o acompanha o que tua voz diz.


Meus olhos vão na água vista
Sob essa janela sonhada...
Meus olhos, esse ver que dista
De mim como eu daquela estrada


Perdida que podia, ó alma,
Conduzir-me ao teu gesto lento,
E casar-me em teu pensamento
Com a longínqua e e última calma.


Mares distantes, ilhas pondo
Flores e florestas no mar...
Ó grande solidão lunar
Entre as cousas que vou supondo!...


Maturadas as confidências
Que fiz um dia ao teu requinte,
Guardo minha alma por acinte
E a espada sangra entre as consciências...


FERNANDO PESSOA 24 DE MAIO DE 1915

segunda-feira, 23 de maio de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS



INICIAÇÃO


Não dormes sob os ciprestes,
Pois não há sono no mundo.
................................................


O corpo é a sombra das vestes
Que encobrem teu ser profundo.


Vem a noite, que é a morte,
E a sombra acabou sem ser.
Vais na noite só recorte,
Igual a ti sem querer.


Mas na Estalagem do Assombro
Tiram-te os Anjos a capa.
Segues sem capa no ombro
Com o pouco que te tapa.


Então Arcanjos da Estrada
Despem-te e deixam-te nu.
Não tens vestes, não tens nada:
Tens só o corpo, que és tu.


Por fim, no fundo da caverna,
Os Deuses despem-te mais.
Teu corpo cessa, alma externa,
Mas vês se são teus iguais.


..................................................


A sombra das tuas vestes
Ficou entre nós na Sorte.
Não 'stás morto entre ciprestes.


....................................................


Neófito, não há morte.




FERNANDO PESSOA, 23 DE MAIO DE 19232









domingo, 22 de maio de 2011

FAZ HOJE 98 ANOS

Morde-me com o querer-me que tens nos olhos
Despe-te em sonho ante o sonhares-me vendo-te,
Dá-te vária,dá sonhos de ti-própria aos molhos
Ao teu pensar-me querendo-te...


Desfolha sonhos teus de dando-te váriamente,
Ó perversa, sobre o êxtase da atenção
Que tu em sonhos dás-me... E o teu sonho de mim é quente
No teu olhar absorto ou em abstracção...


Possui-me-te, seja eu em ti meu espasmo e um rocio
De voluptuosos eus na tua coroa de rainha...
Meu amor será o sair de mim do teu ócio
E nunca serei teu,ó apenas-minha?


FERNANDO PESSOA, 22 DE MAIO DE 1913

FAZ HOJE 84 ANOS



DEPOIS DA FEIRA


Vão vagos pela estrada,
Cantando sem razão
A última esp'rança dada
À última ilusão.
Não significam nada,
Mimos e bobos são.


Vão juntos e diversos
Sob um luar de ver,
Em que sonhos imersos
Nem saberão dizer,
E cantam aqueles versos
Que lembram sem querer.


Pajens de um morto mito,
Tão líricos!,tão sós!,
Não têm na voz um grito,
Mal têm a própria voz;
E ignora-os o infinito
Que nos ignora a nós.


FERNANDO PESSOA, 22 DE MAIO DE 1927

sábado, 21 de maio de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS

Sim. sim, eu conheci-o.
Realmente era negro, luzidio,
Madrugador, jovial.
Sim, e de manhã cedo
Deveras se encontrava entre o arvoredo
Mas sem risadas (de ave fazem medo),
Nem ( que quer isso dizer?) de cristal.
Nesta altura, acabado o romantismo,
Um melro só a um melro é igual.


Quanto à história, nem cismo,
Acabou mal. 
Com Natureza contra Bíblia, como,
Em épocas de um outro assomo,


Seria Bíblia contra a Natureza.
Com igual misticismo.
Veio o Junqueiro, filho da Certeza
E o melro morreu realmente
(Mas morreu de o fazerem gente)
Caindo do ar e insciente
Num gesto de asa que despreza.


E o gesto de asa diz, - pois tudo fala
No romantismo, ainda quando cala:


"Sou um melro e não um sócio vil
Da Associação do Registo Civil.
Sou um melro totalmente, e existo
Alheio a Cristo ou a não-Cristo,
Sem dar lição alguma sobre nada.
Mera alimária alada,
Inconsciente, como o céu de estar
Onde está, de mover-me e de cantar.
E se morro, arre!, morri.
Com isso provo que vivi.
Morri: pois deixem-me morrer
Sem me quererem compreender.


"E quanto aos versos subversivos
De Igreja e Escrituras,
Deixem-se disso: são motivos
De audácia que já nem são bravuras.
Vejam claro,
Escrevam raro,
Tenham verdade ao menos no sentir,
E então por certo me ouvirão a rir,
Madrugador, jovial,
Logo de manhã cedo
Cantando entre a verdade do arvoredo
E não entre a mentira universal.


FERNANDO PESSOA, 21 DE MAIO DE 1929

FAZ HOJE 94 ANOS

A manhã raia. Não: a manhã não raia.
A manhã é uma cousa abstracta, está. não é uma cousa.
Começamos a ver o sol, a esta hora, aqui.
Se o sol matutino  dando nas árvores é belo,
É tão belo se chamarmos à manhã "começamos a ver o sol"
Como o é se lhe chamarmos manhã;
Por isso não há vantagem em pôr nomes errados às cousas.
Nem mesmo em lhe pòr nomes alguns.


ALBERTO CAEIRO, 21 DE MAIO DE 1917 

sexta-feira, 20 de maio de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS

Chuva? Gotas como bagos,
Dispersas, dando no chão,
Sem aqueles bons afagos
Que a chuva faz sem estragos,
Lágrimas sem coração...


Chuva? Não. Tormenta falha.
Trovoada que o não foi.
É como quando a alma ralha
Com a sorte que lhe calha,
E nem a sorte lhe dói.


Chuva? O meu desassossego...
A intranquilidade inerte
Que me torna quem me nego...
Chuva? Entorpeço e renego.
Que mágoa em mim me converte?


FERNANDO PESSOA, 20 DE MAIO DE 1932

quinta-feira, 19 de maio de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS

Passa no sopro da aragem
Que um momento a levantou,
Um vago anseio de viagem,
Que o coração me toldou.


Será que em seu movimento
A brisa lembra a partida,
Ou que a largueza do vento
Lembra o ar livre da ida ?


Não sei, mas subitamente
Sinto a tristeza de estar
O saber que há rente
Entre sonhar e sonhar.


FERNANDO PESSOA, 19 DE MAIO DE 1932

quarta-feira, 18 de maio de 2011

FAZ HOJE 88 ANOS

Ah, como o sono é a verdade, e a única
Hora suave é a de adormecer!
Amor ideal, tens chagas sob a túnica.
'Sperança, és a ilusão a apodrecer.


Os deuses vão-se como forasteiros,
Como uma feira acaba a tradição.
Somos todos palhaços estrangeiros.
A nossa vida é palco de confusão.


Ah, dormir tudo! Pôr um sono à roda
Do esforço inútil e da sorte incerta!
Que a morte virtual da vida toda
Seja, sons, a janela que, entreaberta,


Só um crepúsculo do mundo deixe
Chegar à sonolência que se sente;
E a alma se desfaça como um feixe
Atado pelos dedos de um demente.


FERNANDO PESSOA, 18 DE MAIO DE 1923



terça-feira, 17 de maio de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS

Foi entre as ruínas encontrada
Uma boneca despedaçada.
Uma boneca de criança.
Tinha o cabelo crespo, sem trança,
Do saque, ou do bombardeamento,
Ficou. brinquedo do momento.


Que é da criança de quem era?
Morta, expulsa, quem o soubera
De que servira que o soubesse?
Foi esse o fado? O fado foi esse.
Sem querer penso que amou
Esta boneca quem a usou.


Hoje, se é viva, terá pena
Desta boneca pequena.
Para que serve haver império
(...)


FERNANDO PESSOA, 17 DE MAIO DE 1932

segunda-feira, 16 de maio de 2011

FAZ HOJE 97 ANOS

BRISA


Que rios perdidos
Em outros países
Reflectem a sombra
De casas felizes


A cujas janela
Assoma a ondear
O som de uma voz
Alegre a cantar...


Não é aqui perto:
É longe daqui...
Não  há p'ra lá barcos
E a vida é assim.




FERNANDO PESSOA, 16 DE MAIO DE 1914

domingo, 15 de maio de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS

QUASE


Arrumar a vida, pôr prateleiras na vontade e na acção...
Quero fazer isso agora, como sempre quis, com o mesmo resultado;
Mas que bom ter o propósito claro, firme só na clareza, de  fazer qualquer coisa!

Vou fazer as malas para o Definitivo,
Organizar Álvaro de Campos,
E amanhã ficar na mesma coisa que antes de ontem - um antes de ontem que é sempre...
Sorrio do conhecimento antecipado da coisa-nenhuma que serei...
Sorrio ao menos; sempre é alguma coisa sorrir.

Produtos românticos, nós todos...
E se não fôssemos produtos românticos, se calhar não seríamos.
 nada.

Assim se faz literatura...
Coitadinhos Deuses, assim até se faz a vida!

Os outros também são românticos,
Os outros também não realizam nada, e são ricos e pobres.
Os outros também levam a vida a olhar para as malas a arrumar,
Os outros também dormem ao lado dos papéis meio compostos.
Os outros também sou eu.

Vendedeira da rua cantando o teu pregão como um hino inconsciente,
Rodinha dentada na relojoaria da economia política,
Mãe, presente ou futura, de mortos no descascar dos Impérios,
A tua voz chega-me como uma chamada a parte nenhuma, como o silêncio da vida...

 Olho dos papéis que estou pensando em afinal  não arrumar
Para a janela por onde não vi a vendedeira que ouvi por ela,
E o meu sorriso, que ainda não acabara, acaba no meu cérebro em metafísica.

Descri de todos os deuses diante de uma secretária por arrumar,
Fitei de frente todos os destinos pela distracção de ouvir apregoando-se,
E o meu cansaço é um barco velho que apodrece na praia deserta,
E com esta imagem de qualquer outro poeta fecho a secretária e o poema.

Como um deus, não arrumei nem a secretária nem a vida.

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE MAIO DE 1929

FAZ HOJE 88 ANOS

Aqui, neste sossego e apartamento,
Nesta quieta solidão sem fim,
Sem cuidado ou tormento
Que ocupe este momento,
Da vida e mundo volto-me para mim.


Tão breve sombra do que pude ser
Me encontro, tão perdida semelhança
Com minha vida por acontecer,
Tão nocturna lembrança
Do dia e do viver,


Que se perturba a solidão, e eu moro
Entre homens novamente
E novamente choro
O que fui de outros, e que rememoro,
E, memorando-o, é mais insubsistente.


Ténue, vazio, imperfeito.


FERNANDO PESSOA, 15 DE MAIO DE 1923

sábado, 14 de maio de 2011

FAZ HOJE 93 ANOS

Só tu és paz, ó mundo cheio
E inconsciente de mim.
Ó morte, o teu (...) o teu enleio.
E o tu seres Fim!


Passem rodas e passos sobre o meu sono
Será tudo em vão.
Jaz no íntimo (...) do abandono
O meu coração.


FERNANDO PESSOA, 14 DE MAIO DE 1918



sexta-feira, 13 de maio de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS

Não quero nada, nem palavras, nem verdade,
Umas e outras o que são?
Pedaços cortados da realidade,
Momentos de diástole do coração.


 Não quero nada. Pensei até não pensar.
Imaginei até me agarrar de medo
Ao mais pequeno bocado de céu ou de mar,
Só por ser e por isso me não  meter medo.


Nexo inútil entre o que sou e quem sou,
Metafísica falsa da sensações mortas...
Não quero nada. Sou um mendigo cego que vou
Batendo, numa vila deserta, a todas as portas...


FERNANDO PESSOA, 13 DE MAIO DE 1932

FAZ HOJE 83 ANOS

N U V E N S


No dia triste o meu coração, mais triste que o dia...
Obrigações morais e civis?
Complexidade de deveres, de consequências?
Não, nada...
O dia triste, a pouca vontade para tudo...
Nada...


Outros viajam (também viajei), outros estão ao sol
(Também estive ao sol, ou supus que estive),
Todos têm razão, ou a vida, ou a ignorância simétrica,
Vaidade, alegria e sociabilidade,
E emigram para voltar, ou para não voltar,
Em navios que os transportam simplesmente.
Não sentem o que há de morte em toda a partida,
De mistério em toda a chegada,
De horrível em tudo novo...
Não sentem: por isso são deputados e financeiros,
Dançam e são empregados no comércio,
Vão a todos os teatros e conhecem gente...
Não sentem: para que haveriam de sentir?


Gado vestido dos currais dos Deuses,
Deixá-lo passar engrinaldado para o sacrifício
Sob o sol, álacre, vivo, contente de sentir-se...
Deixai-o passar, mas ai, vou com ele sem grinalda
Para o mesmo destino!
Vou com ele sem o sol que sinto, sem a vida que tenho,
Vou com ele sem desconhecer...


No dia triste o meu coração mais triste que o dia...
No dia triste todos os dias...
No dia tão triste...


ÁLVARO DE CAMPOS, 13 DE MAIO DE 1928

quinta-feira, 12 de maio de 2011

FAZ HOJE 90 ANOS

Não quero a fama, que comigo a têm
Heróstato e o pretor,
Ser olhado de todos - que seu fosse
Só belo, me olhariam.
O fausto repúdio, porque o compram.
O amor, porque acontece.
Comigo fico, talvez não contente,
Porém certo e sem erro.


RICARDO REIS, 12 DE MAIO DE 1921



FAZ HOJE 101 ANOS

TÉDIO

Não vivo, mal vegeto, duro apenas,
Vazio dos sentidos porque existo;
Não tenho infelizmente sequer penas,
E o meu mal é ser (alheio a Cristo)
Nestas horas doridas e serenas
Completamente consciente disto.

FERNANDO PESSOA, 12 DE MAIO DE 1910

quarta-feira, 11 de maio de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS

Ao volante do Chevrolet pela estrada de Sintra
Ao luar e ao sonho, na estrada deserta,
Sozinho guio, guio quase devagar, e um pouco
Me parece, ou me forço um pouco para que me pareça,
Que sigo por outra estrada, por outro sonho, por outro mundo,
Que sigo sem haver Lisboa deixada ou Sintra a que ir ter,
Que sigo, e que mais haverá em seguir senão não parar mas seguir?


Vou passar a noite a Sintra por não poder passa-la em Lisboa,
Mas, quando chegar a Sintra, terei pena de não ter ficado em Lisboa.
Sempre esta inquietação sem propósito,sem nexo, sem consequência,
Sempre, sempre, sempre,
Esta angústia excessiva do espírito por coisa nenhuma,
Na estrada de Sintra, ou na estrada do sonho, ou na estrada da vida...




Maleável aos meus movimentos subconscientes no volante,
Galga sob mim comigo o automóvel que me emprestaram.
Sorrio do símbolo, ao pensar nele, e ao virar à direita.
Em quantos coisas que me emprestaram eu sigo no mundo!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quantas coisas que me emprestaram guio como minhas!
Quanto que me emprestaram, ai de mim!, eu próprio sou!


À esquerda o casebre - sim, o casebre - à beira da estrada.
À direita o campo aberto, com a lua ao longe.
O automóvel, que parecia há pouco dar-me liberdade,
É agora uma coisa onde estou fechado,
Que só posso conduzir se nele estiver fechado,
Que só domino se me incluir nele, se ele me incluir a mim.


À esquerda lá para trás o casebre modesto, mais que modesto.
A vida ali deve ser feliz, só porque não é a minha.
Se alguém me viu da janela do casebre, sonhará: Aquele é que é feliz.
Talvez à criança espreitando pelos vidros da janela do andar que está em cima
Fiquei (com o automóvel emprestado) como um sonho, uma fada real.
Talvez à rapariga que olhou, ouvindo o motor, pela janela da cozinha
No pavimento térreo,
Sou qualquer coisa do príncipe de todo o coração de rapariga,
E ela me olhará de esguelha, pelos vidro, até à curva em que me perdi.
Deixarei sonhos atrás de mim, ou é o automóvel que os deixa?
Eu, guiador de automóvel emprestado, ou o automóvel emprestado que eu guio?


Na estrada de Sintra ao luar, na tristeza ante os campos e a noite ,
Guiando o Chevrolet emprestado desconsoladamente,
Perco-me na estrada futura, sumo-me na distância que alcanço,
E, num desejo terrível, súbito, violento, inconcebível,
Acelero...
Mas o meu coração ficou no monte de pedras, de que me desviei ao vê-lo sem vê-lo,
À porta do casebre,
O meu coração vazio,
O meu coração insatisfeito,
O meu coração mais humano do que eu, mais exacto do que a vida.


Na estrada de Sintra, perto da meia noite, ao luar, ao volante,
Na estrada de Sintra, que cansaço da própria imaginação,
Na estrada de Sintra, cada vez mais perto de Sintra, 
Na estrada se Sintra, cada vez menos perto de mim...


ÁLVARO DE CAMPOS, 11 DE MAIO DE 1928