quarta-feira, 30 de novembro de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Tantos poemas contemporâneos!
Tantos poetas absolutamente de hoje -
Interessante tudo, interessante todos...
Ah, mas é quase tudo...
É tudo vestíbulo
É tudo só para escrever...
Nem arte,
Nem ciência
Nem verdadeira nostalgia...
Este olhou bem o relevo desse cipreste...
Esse viu bem o poente por trás do cipreste...
Este reparou bem na emoção que tudo isso daria...
Mas depois?...
Ah, meus poetas, meus poemas - e depois?
O pior é sempre o depois...
É que para dizer é preciso pensar -
Pensar com o segundo pensamento -
E vocês, meus velhos, poetas e poemas,
Pensam só com a rapidez primária da asneira - é [---] e dá pena -

Mais vale o clássico seguro,
Mais vale o romântico cantante,
Mais vale qualquer coisa, ainda que má,
Que os arredores inconstruídos duma qualquer coisa boa ...
'Tenho a minha alma!'
Não, não tens: tens a sensação dela.
Cuidado com a sensação!
Muitas vezes é dos outros,
E muitas vezes é nossa
Só pelo acidente estonteado de a sentirmos...





ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE NOVEMBRO DE 1934


terça-feira, 29 de novembro de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Sonhei - quem não sonhara? - porque a tarde
Baixava o azul do céu e já se via
Uma estrela pequena, sem alarde,
Ainda em dia a desmentir o dia.

Tudo quanto mal fiz ou não queria
Numa fogueira que não vejo arde,
Meu coração, que espera e não confia,
É como um poço ao qual a água tarde.

Sonhei. Pois não havia de sonhar
Vendo ante mim este céu brando e o mar,
Ao longe um lago, parecer parado...

Sonho... Não sei de quê, mas foi de um bem
Que não sei se era algum ou se era alguém
E que só conheci como ignorado.


FERNANDO PESSOA, 29 DE NOVEMBRO DE 1934


segunda-feira, 28 de novembro de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS




Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.

Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.

Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.

Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.

Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há 'sperança de um mar,
Mas nem' desejo de o ter.


FERNANDO PESSOA, 28 DE NOVEMBRO DE 1933


domingo, 27 de novembro de 2016

FAZ HOJE 84 ANOS




Sorriso audível das folhas,
Não és mais que a brisa ali.
Se eu te olho e tu me olhas,
Quem primeiro é que sorri?
O primeiro a sorrir ri.

Ri, e olha de repente,
Para fins de não olhar,
Para onde nas folhas sente
O som do vento passar.
Tudo é vento e disfarçar.

Mas o olhar, de estar olhando
Onde não olha, voltou;
E estamos os dois falando
O que se não conversou.
Isto acaba ou começou?

FERNANDO PESSOA, 27 DE NOVEMBRO DE 1932


sábado, 26 de novembro de 2016

FAZ HOJE 103 ANOS



JANELA SOBRE O CAIS

O cais, navios, o azul dos céus -
Que será tudo isto como o vê Deus?

Que forma real tem isto tudo
Do lado de onde não é absurdo?

Olho e de tudo me perco e o estranho.
É como se tudo fosse castanho -

O cais - que irreal de pesado e quedo
Os mastros dos barcos estagnam medo

O céu azul é sem razão céu..
Mostrou-se tudo seu próprio véu

E agora erguendo-se na hora incerta
O mundo fica uma porta aberta

Por onde se vê, simples e mais nada,
Uma outra porta sempre fechada.

Entre a vida e o sonho, entre o sol e Deus
Há enormes abismos pálidos e ateus...



FERNANDO PESSOA, 26 DE NOVEMBRO DE 1913

sexta-feira, 25 de novembro de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS




Acordo de noite, muito de noite, no silêncio todo.
São - tictac visível - quatro horas de tardar o dia.
Abro a janela directamente, no desespero da insónia.
E, de repente, humano,
O quadrado com cruz de uma janela iluminada!
Fraternidade na noite!

Fraternidade involuntária, incógnita, na noite!
Estamos ambos despertos e a humanidade é alheia.
Dorme. Nós temos luz.

Quem será? Doente, moedeiro falso, insone simples como eu?
Não importa. A noite eterna, informe, infinita,
Só tem, neste lugar, a humanidade das nossas duas janelas,
O coração latente das nossas duas luzes,
Neste momento e lugar, ignorando-nos, somos toda a vida.

Sobre o parapeito da janela traseira da casa,
Sentindo húmida da noite a madeira a que agarro,
Debruço-me para o infinito, e, um pouco, para mim.

Nem galos gritando ainda no silêncio definitivo!
Que fazes, camarada, da janela com luz?
Sonho, falta de sono, vida?
Tom amarelo cheio da tua janela incógnita...
Tem graça; não tens luz eléctrica.
Ó candeeiro de petróleo da minha infância perdida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 25 DE NOVEMBRO DE 1931


quinta-feira, 24 de novembro de 2016

FAZ HOJE 91 ANOS




No ciclo eterno das mudáveis cousas
Novo inverno após novo outono volve
À diferente terra
Com a mesma maneira.
Porém a mim nem me acha diferente
Nem diferente deixa-me, fechado
Na clausura maligna
Da índole indecisa.
Presa da pálida fatalidade
De não mudar-me, me infiel renovo
Aos propósitos mudos
Morituros e infindos.

RICARDO REIS, 24 DE NOVEMBRO DE 1925


quarta-feira, 23 de novembro de 2016

FAZ HOJE 98 ANOS




Uma após uma as ondas apressadas
Enrolam seu verde movimento
E chiam a alva 'spuma
No moreno das praias.
Uma após uma as nuvens vagarosas
Rasgam o seu redondo movimento
E o sol aquece o 'spaço
Entre as nuvens 'scassas.
Indiferente a mim e eu a ela,
A natureza deste dia calmo
Furta pouco ao meu senso
De se esvair o tempo.
Só uma vaga pena inconsequente
Pára um momento à porta da minha alma
E após fitar-me um pouco
Passa, a sorrir de nada.

RICARDO REIS, 23 DE NOVEMBRO DE 1918


terça-feira, 22 de novembro de 2016

FAZ HOJE 85 ANOS






É inútil prolongar a conversa de todo este silêncio.
Jazes sentado, fumando, no canto do sofá grande -
Jazo sentado, fumando, no sofá de cadeira funda.
Entre nós não houve, vai para uma hora,
Senão olhares de uma só vontade de dizer.
Renovámos, apenas, os cigarros - o novo no ocaso do velho
E continuávamos a conversa silenciosa,
Interrompida apenas pelo desejo olhado de falar...

Sim, é inútil.
Mas tudo, até a vida ao ar livre é igualmente é inútil
Há coisas que são difíceis de dizer...
Este problema, por exemplo.
De qual de nós é que ela gosta? Como é que podemos chegar a discutir isso?
Nem falar nela, não é verdade?
E sobretudo não ser o primeiro a pensar em falar nela!
A falar nela ao outro impassível e amigo...
Caiu cinza do teu cigarro no teu casaco preto -
Ia advertir-te, mas para isso era preciso falar...

Entreolhámo-nos de novo, como transeuntes cruzados.
E o pecado mútuo que não cometemos
Assomou ao mesmo tempo ao fundo dos dois olhares.
De repente espreguiças-te, semiergues-te. Escusas de falar...
"Vou-me deitar!" dizes , só porque o vais dizer.
E tudo isto, tão psicológico, tão involuntário,
Por causa de uma empregada de escritório agradável e solene.
Ah, vamo-nos deitar!
Se fizer versos a respeito disto, já sabes, é desprezo!

ÁLVARO DE CAMPOS, 22 DE NOVEMBRO DE 1931


segunda-feira, 21 de novembro de 2016

FAZ HOJE 107 ANOS


Às vezes, em sonho triste,
Aos meus desejos existe
Longinquamente um pais
Em que ser feliz consiste
Apenas em ser feliz.

Vive-se como se nasce
Sem o querer nem saber
Nessa ilusão de viver
O tempo morre e renasce
Sem que o sintamos correr.

O sentir e o desejar
São banidos dessa terra
O amor não é amor
Nesse pais por onde erra
Meu longínquo divagar.

Nem se sonha nem se vive
É uma infância sem fim.
Parece que se revive
Tão suave é viver assim
Nesse impossível jardim.

FERNANDO PESSOA, 21 DE NOVEMBRO DE 1909


domingo, 20 de novembro de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS



Chove muito, chove excessivamente...
Chove e de vez em quando faz um vento frio...
Estou triste, muito triste, corno se o dia fosse eu.

Num dia no meu futuro em que chova assim também
E eu, à janela de repente me lembre do dia de hoje,
Pensarei eu 'ah nesse tempo eu era mais feliz'
Ou pensarei 'ah, que tempo triste foi aquele'!
Ah, meu Deus, eu que pensarei deste dia nesse dia
E o que serei, de que forma; o que me será o passado que é hoje só presente?...
O ar está mais desagasalhado, mais frio, mais triste
E há uma grande dúvida de chumbo no meu coração...

ÁLVARO DE CAMPOS, 20 DE NOVEMBRO DE 1914


sábado, 19 de novembro de 2016

FAZ HOJE 108 ANOS





LINDA MARIA

I

Maria, linda Maria,
Contigo me deitarei
Minha eterna moradia
Dos teus braços eu farei.

Canta alto, sino da torre!
Com risos te pagarei.
Os seus lábios me sorriram
Os seus lábios beijarei.

Sua voz é melodia
Com ela me enganarei
Numa noite d'alegria
Seus seios conhecerei.

Canta-me, sino da torre
Cantos que recordarei.
Quando ela for a deitar-se
À sua janela irei.

Dir-lhe-ei: linda Maria
Nos teus braços passarei
Noite e dia, noite e dia;
Nos teus braços morrerei.'

Sino da torre, o que dizes
De noite lhe contarei
Seu cabelo sobre mim
Ao luar desprenderei.

Quando a vi, ela sorria
Qual dizer não saberei...
E por ela o que faria?
E por ela o que farei?

Sino da torre não pares
Com ela não bailarei
Sua cintura, escondidos,
Ao luar lhe enlaçarei.

'Maria, linda Maria!'
(Assim mesmo lhe direi)
Se de alegria chorares
O teu pranto beberei.

Sino da torre, canta alto
Que eu nunca assim te ouvirei
De noite à sua janela
Sua sombra espreitarei.

‘A minha mão está fria
Do muito que te amarei,
Maria, linda Maria,
No teu seio a aquecerei.'

Canta alto, sino da torre
Nos seus braços dormirei
E desta noite em diante
Consigo me esquecerei.

[II]

Morta

Como és bela morta e fria
Meus olhos te chorarão
Com tristeza, noite e dia
Em sangue se tornarão.

Dobra o sino na alta torre
Os seus sons te embalarão
E a tua morte com dobres
(...) lamentarão.

Meus lábios (quem n'o diria?)
Nunca mais te beijarão,
Nem na tarde lenta e fria
Teu cabelo afagarão.

Dobra o sino sem piedade
Seus dobres me gelarão.
Hoje à tarde - e o sol é calmo!
- Na cova te deitarão.

O que esse olhar me dizia
Como é que t'o tirarão?
Esse amor que em ti havia
Onde é que o enterrarão?

E dobra o sino da torre -
Seus prantos confrangerão,
Quem ouvir o dó do sino
E os que o ouvem não amarão!

Decomposta, dia a dia,
Os vermes te comerão
A boca que me sorria
Os vermes deformarão.

Dobra o sino sobre a vila
Os corações se erguerão
Numa ânsia, e os que sobem
Tua infância lembrarão.

Meus ouvidos voz que ouviram
Em sonho' te ouvirão
Meus lábios: 'linda Maria'
Inda em sonho chamarão.

Dobre do sino d'alta torre
Muitos dos que te ouvirão
Ao teu lado hirto e calado
Em breve me levarão.

Funda cova negra e fria
Ai, ali te enterrarão.
Quão brando o sol alumias
E a ti te esquecerão.

Dobra sino da alta torre
Contigo me enterrarão
E só então os meus olhos
De chorar-te deixarão.




FERNANDO PESSOA, 19 DE NOVEMBRO DE 1908


sexta-feira, 18 de novembro de 2016

FAZ HOJE 87 ANOS



PASTOR AMOROSO


Talvez quem vê bem não sirva para sentir
E não agrade por estar muito antes das maneiras.
É preciso ter modos para todas a cousas,
E cada cousa tem o seu modo, e o amor também.
Quem tem o modo de ver os campos pelas ervas
Não deve ter a cegueira que faz fazer sentir.
Amei e não fui amado, o que só vi no fim,
Porque não se é amado como se nasce mas como acontece.
Ela continua tão bonita de cabelo e boca como dantes,
E eu continuo como era dantes, sozinho no campo.
Como se estivesse estado de cabeça baixa,
Penso isto e fico de cabeça alta
E o dourado sol seca a vontade de lágrimas que não posso deixar de ter.
Como o campo é grande e o amor é pequeno!
Olho, e esqueço, a forma como a gente enterra e as árvores se desfolham.

Eu não sei falar porque estou a sentir.
Estou a escutar a minha voz como se fosse de outra pessoa,
E a minha voz fala dela como se ela é que falasse.
Tem o cabelo de um louro amarelo de trigo
ao sol claro,
E a boca quando fala diz cousas que não há nas palavras.
Sorri, e os dentes são limpos como as pedras do rio.

ALBERTO CAEIRO, 18 DE NOVEMBRO DE 1929


quinta-feira, 17 de novembro de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS




Lenta e quieta a sombra vasta
Cobre o que vejo menos já.
Pouco somos, pouco nos basta.
O mundo tira o que nos dá.
Que nos contente o pouco que há.

A noite, vindo como nada,
Lembra-me quem deixei de ser.
A curva anónima da estrada
Faz-me lembrar, faz-me esquecer,
Faz-me ter pena e ter de a ter.

Ó largos campos já cinzentos
Na noite, para além de mim,
Vou à manhã meus pensamentos
Enterrar onde estais assim.
Ou ter aí sossego e fim.

Poesia? Nada! A hora desce
Sem qualidade ou emoção.
Meu coração o que é que esquece?
Se é o que sinto que foi vão,
Por que me dói o coração?


FERNANDO PESSOA, 17 DE NOVEMBRO DE 1930