terça-feira, 31 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 87 ANOS


FÉRIAS DE SETEMBRO

Aqui estou posto, onde algas e cortiça
À praia sem ninguém a maré traz;
Onde não há verdade nem justiça
Mas só o som sem nada que o mar faz.

E aqui, ao pé do antigo promontório,
Alheio em pedra bruta ao nome seu,
Volto, depois de um grande fado inglório,
À confusa substância que sou eu.

Tantas grandezas me pesaram na alma,
Tanta vicissitude me formou,
Que agora, a sós sem mim, não sei da calma
Que deveria ter, nem sei quem sou.

Fui tão estrangeiro no que fui, tão vago
Andei de mim em quanto consegui,
Que me recolho como o fim de um estrago
Do que me resta, e não é nada em si.

Pensei, fugindo às torres e às praças,
Trazer comigo eu mesmo, e aqui me achar,
Liberto de venturas e desgraças,
Tal qual eu sou, sem nada me alterar.

Mas ai!, não é em vão que se caminha
Fora da alma, entregue à vida e à sorte.
A alma que trago já não é a minha.
Sou um sobrevivente à própria morte.

Deixei quem fui nas algas e a cortiça
De um mar pior que este que se ergue aqui.
Aqui não há verdade nem justiça.
Não as achei também onde vivi.

Pesa-me a simples natureza. Anseio
Por me encontrar, e sinto-me sentir
Que só voltando ao exílio de onde veio
Minha alma poderá se conseguir.

Mas nem posso ficar nem regressar.
Vendi a alma aos dias e às noções.
Não tenho pátria em mim a que voltar,
Nem próprios pensamentos ou emoções.

Metade meu, metade alheio, agora.

FERNANDO PESSOA, 31 DE JANEIRO DE 1930


segunda-feira, 30 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 96 ANOS



À LA MANIÈRE DE A. CAEIRO

A mão invisível do vento roça por cima das ervas.
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,
E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.

Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.
Também por mim um desejo inutilmente bafeja
As hastes das intenções, as flores do que imagino,
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.

RICARDO REIS, 30 DE JANEIRO DE 1921


domingo, 29 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 82 ANOS




Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tictaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que se não conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está está aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.

Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu...

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933


sábado, 28 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 95 ANOS



CANÇÃO DE OUTONO

No entardecer da terra
O sopro do longo outono
Amareleceu o chão.
Um vago vento erra,
Como um sonho mau num sono,
Na lívida solidão

Soergue as folhas, e pousa
As folhas, e volve, e revolve,
E esvai-se inda outra vez.
Mas a folha não repousa,
E o vento lívido volve
E expira na lividez.

Eu já não sou quem era;
O que eu sonhei, morri-o;
E até do que hoje sou
Amanhã direi, Quem dera
Volver a sê-lo!... Mais frio
O vento vago voltou.

FERNANDO PESSOA, 28 DE JANEIRO DE 1922


sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 108 ANOS




NOCTURNO


Dorme, criança, dorme
Dorme que eu velarei;
Sozinho na noite enorme
Dum conto me lembrarei
Que depois, - dorme, criança, dorme -
Cantando te contarei.

Era um céu negro e imenso
E em baixo um mar sem fim
Um horror frio e suspenso
E uma voz descia dentro em mim
Sobre o mar, sobre o mar imenso
Chorando dizia assim:

"Cai lentamente o pranto,
Resvala para o chão,
E eu choro, mas fico no entanto
Na mesma solidão
Como o silêncio amargo do pranto -
No fundo do coração.

Sonhei que amaria
Um espírito do luar
Que morrendo eu encontraria
Ao pé de mim a sonhar
E agora choro noite e dia
Sobre as ondas deste mar.

Chamo qual se saudade
Homem do sempre-além
Mas apenas na soledade
Minha voz vai e vem.
E a minha alma sente funda saudade
De quando o sonho era um bem.

Andei, passei chorando
Chorando há muito vou
Cesse o ardor vago e brando
De quem muito sonhou
Mas só a si triste e chorando
A minha alma se encontrou.

Me sinto em mim um soluço
Pesadelo d'amargor
O abismo eterno em que me debruço
É a eternidade sem amor..."
E assim, com um soluço
Esvai-se a voz da dor.

Quando fores grande - dorme! -
Este conto contarei...
Por ora na noite enorme
Enquanto te embalarei
Ignora tudo, criança, dorme,
Dorme que eu velarei...

FERNANDO PESSOA, 27 DE JANEIRO DE 1909


quinta-feira, 26 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 100 ANOS



Já sinto em sonhos sobre eu 'star morto
A erva crescer,
E como a noiva que vê do porto
A nau crescer

Que traz seu noivo e chora por tê-lo,
Porque, chegado,
Morre a feliz 'sperança de vê-lo
E a 'sperança é bela.

Assim... não sei... sobre eu estar morto
A erva...

Mas que tem isso com eu 'star morto.
Sinto-o e não sei...

Morre a feliz 'sperança de vê-lo,
E tê-lo é perder querê-lo ter ao lado.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JANEIRO DE 1917


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 105 ANOS





ISOLA D'ORO

Muito longe, muito longe...
Nem tu sabes, filha
Como era longe, tão longe
Aquela (...) ilha

Onde eu vivi, tão sonhando
Uma vida que não tive
E onde Essa cujo olhar brando
Foi sonho meu, inda vive...

Nem tu sabes como é longe
Num Oriente de outra terra
Essa ilha onde eu fui monge!
Ao longe havia uma serra

Aquém erra o olhar sombrio
De arvoredos de outro ser
Corria por ele um rio
Com outro modo de correr

Foi aí que eu aprendi,
Foi aí que eu fui buscar
O sonho que busco em ti
E que em ti não posso achar...

É por ter ali vivido
Que não posso ter amor
A quanto há entre o ruído
Deste mundo em meu redor.

Por isso quando te olho
Não penso em ti, mas evoco
Outro amor que em mim desfolho...
Por isso nunca te toco,

Por isso vivo sozinho
Alheadamente tristonho...
Não sei construir um ninho
Senão com penas de sonho

Das que há naquela ilha
Que amei antes de viver...
Não me olhes... Eu sonho, filha...

II

Mas tu tens às vezes gestos
Modos rápidos de olhar,
Leves (...) lestos
Que não tens consciência

Que lembram gestos de Aquela
Que viveu comigo além
Naquela ilha que é bela
Pelo Mundo que não tem

E eu pergunto de repente
Se tu serás ela, e como
Eu próprio sejas doente
De universo... E um vago assomo

De querer-te no ignorar-te
De te amar até esquecer-te
Torna-se toda a minha arte...
Ah, o tédio que este céu verte!

FERNANDO PESSOA, 25 DE JANEIRO DE 1912


terça-feira, 24 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 100 ANOS



O TRAIDOR

Puseram-no contra a parede
Com os olhos vendados.
Parou um silêncio... Uma sede
Tomou-o... Houve passos afastados...

A casa branca sorria
No seu passado de infância...
No ar sem aroma havia
A sua alegre fragrância...

A mãe a beijá-lo... O arco
A meio do quintal...
Uma voz... A luz no charco
Viu tudo que fez mal...

Depois a cabeça loura,
Os olhos azuis, a voz
Primeiro... à porta....a hora
(...)

O seu sorrir, o olhar
Que lhe deu tudo, o instante
Em que se viu debruçar
Fogo... disse o comandante.

FERNANDO PESSOA, 24 DE JANEIRO DE 1917


segunda-feira, 23 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 92 ANOS





A luz do sol afaga o imenso dia.
Um sopro brando, quase não de inverno,
Sobriamente os campos inebria.
Ah, mas o que há de eterno?
Em que é que a alma sem sonhar se fia?

Meu coração nada recebe da hora
Salvo o vácuo de nada receber.
Como criança abandonada, chora,
Que não sabe o que quer,
Nem por onde ir, nem porque se demora.

E alheio a isto, que sou eu, que brando
O sol de inverno lembra a primavera!
Que afago busca o que em mim 'stá sonhando,
Que 'spera quem nada 'spera?
Que fica a quem sabe que está passando?

FERNANDO PESSOA, 23 DE JANEIRO DE 1925


domingo, 22 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 94 ANOS




As rosas amo dos jardins de Adónis,
Essas vólucres, amo, Lídia, rosas,
Que em o dia em que nascem,
Em esse dia morrem.
A luz para elas é eterna, porque
Nascem nascido já o sol, e acabam
Antes que Apolo deixe
O seu curso visível.
Assim façamos nossa vida um dia,
Inscientes, Lídia, voluntariamente,
Que há noite antes e após
O pouco que duramos.

RICARDO REIS, 22 DE JANEIRO DE 1923


sábado, 21 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 102 ANOS



Frei, João, teus poemas
Ascéticos, não mostram
Mais do que o teu desejo
De não sentir nada...

FERNANDO PESSOA, 21 DE JANEIRO DE 1915


sexta-feira, 20 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 84 ANOS





Cabeça augusta, que uma luz contorna,
Que há entre mim e o mundo que me faz
(Porque em espinhos a auréola se torna?)
Ansiar a minha morte e a tua paz?

A tua história - Pilatos ou Caifás
Que tem? São sonhos que o narrar transtorna,
Não é esse o Calvário a que te traz
Tua sina onde todo o fel se entorna.

Não. É em mim que se o Calvário ergueu.
É em meu coração abandonado
Que Ele, cabeça augusta, alto sofreu.

Quem na Cruz onde está ermo e pregado
O pregou? Foi Romano ou foi Judeu?
Bate-me o coração. Meu Deus, fui eu!

FERNANDO PESSOA, 20 DE JANEIRO DE 1933


quinta-feira, 19 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 86 ANOS





Na orla do vento movem
Seus corpos mortos as folhas.
E ora das árvores chovem,
Ora onde inertes não movem
A chuva de outono molha-as.

Não há no meu pensamento
Vontade com que o pensar,
Não tenho neste momento
Nada no meu pensamento:
Sou como as folhas ao ar.

Mas elas certo não sentem
Esta mágoa inteira e funda
Que meus sentidos consentem.
Nada são e nada sentem
Da minha mágoa profunda.

FERNANDO PESSOA, 19 DE JANEIRO DE 1931


quarta-feira, 18 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 82 ANOS




Mas tu mulher, tu homem, tu criança,
Tu, menino da incógnita clareza,
Em que sonhos de sombra e de beleza,
Banhaste de ouro e alarme a tua 'sp'rança?

Príncipe falso de domínios idos,
Vivendo louco entre o que vive a estar,
Não tinhas aqui casa nem lugar,
Senhor pardo dos sonhos esquecidos...

Teu coração batia de outro modo
Que o ritmo que faz coisas das estrelas.
Para ti as manhãs seriam belas
Se ali coubesse o universo todo.

E assim, tomando a vida por brinquedo,
A escangalhaste, ainda se fora a tua.
Amuaste porque te não deu a lua
Quem dá a dor, as fórmulas e o medo.

E assim partiste, como um cavaleiro
Da Idade Média que só há em nós
À procura de anónimos avós
Que fossem donos do universo inteiro.

FERNANDO PESSOA, 18 DE JANEIRO DE 1935


terça-feira, 17 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 86 ANOS



ABERTURA DO ITINERÁRIO

Estes livros de versos juntos são
Uns Grandes Armazéns da Sensação
Onde o leitor casual encontrará
O que convenha a qualquer impressão,
Ou, talvez, o que nunca convirá.

E, assim, terá, com muito de profundo,
E alguma coisa de incompreensível,
Um razoável espectáculo do mundo,
Em várias formas de ilusão e nível,
E sentirá, se não for insensível.

Mas, verdadeiramente, quem lê versos
Lê só a própria alma, e eu não tenho
A certeza de que entre os meus diversos
Modos, consiga não ser estranho
Ao casual leitor que perco ou ganho.

Ninguém vê senão a alma em que ermo habita
Ninguém conhece senão quem nasceu.
Nos Armazéns que ofereço requisita
Quem quiser o que quer, e não medita
Que, apesar de ser tudo, eu sou só eu.

Sim, isolados, e não só no espaço,
Entre alma e alma não há nenhum laço,
E o que dizemos nunca é compreendido.
Reste ao menos em mim um som de passo
De viandante nem visto nem ouvido.

FERNANDO PESSOA, 17 DE JANEIRO DE 1931


segunda-feira, 16 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 86 ANOS





Sim, a música, e já a mulher,
Não gosto tanto do marido.
Que sonhos vêem pertencer
A um passado nunca havido?

Sim, a música... Era melhor
Que a vida fosse sem trabalhos...

Tudo o que temos é engano.
A música! Que Diabo! Faz
Surgir um coração humano
Do corpo aonde a alma jaz.

Como se há-de ir fazer chá eterno
E ter dever ao pé de si,
Quanto este encanto vem do Inferno?
Serpente, ainda estás aqui!

FERNANDO PESSOA, 16 DE JANEIRO DE 1931

domingo, 15 de janeiro de 2017

FAZ HOJE 89 ANOS





TABACARIA

Não sou nada.
Nunca serei nada.
Não posso querer ser nada.
À parte isso, tenho em mim todos os sonhos do mundo.

Janela do meu quarto,
Do meu quarto de um dos milhões do mundo que ninguém sabe quem é
(E se soubesse quem é, o que saberiam?)
Dais para o mistério de uma rua cruzada constantemente por gente,
Para uma rua inacessível a todos os pensamentos,
Real, impossivelmente real, certa, desconhecidamente certa,
Como o mistério das coisas por baixo das pedras e dos seres,
Com a morte a pôr humidade nas paredes e cabelos brancos nos homens,
Com o destino a conduzir a carroça de tudo pela estrada de nada.

Estou hoje vencido, como se soubesse a verdade.
Estou hoje lúcido, como se estivesse para morrer,
E não tivesse mais irmandade com as coisas
Senão uma despedida, tornando-se esta casa e este lado da rua
A fileira das carruagens de um combóio, e uma partida apitada
De dentro da minha cabeça,
E uma sacudidela dos meus nervos e um ranger de ossos na ida.

Estou hoje perplexo, como quem pensou, achou e esqueceu.
Estou hoje dividido entre a lealdade que devo
À Tabacaria do outro lado da rua, como coisa real por fóra,
E à sensação de que tudo é sonho, como coisa real por dentro.

Falhei em tudo.
Como não fiz propósito nenhum, talvez tudo fosse nada.
A aprendizagem que me deram
Desci dela pela janela das traseiras da casa.
Fui até ao campo com grandes propósitos
Mas lá encontrei só ervas e árvores,
E quando havia gente era igual à outra.
Saio da janela, sento-me numa cadeira. Em que hei-de pensar?

Que sei eu do que serei, eu que não sei o que sou?
Ser o que penso? Mas penso ser tanta coisa!
E há tantos que pensam ser a mesma coisa que não pode haver tantos!
Génio? Neste momento
Cem mil cérebros se concebem em sonho génios como eu,
E a história não marcará, quem sabe?, nem um,
Nem haverá senão estrume de tantas conquistas futuras.
Não, não creio em mim.
Em todos os manicómios há doidos malucos com tantas certezas!
Eu que não tenho nenhuma certeza, sou mais certo ou menos certo?
Não, nem em mim...
Em quantas mansardas e não-mansardas do mundo
Não estão nesta hora génios-para-si-mesmos sonhando?
Quantas aspirações altas e nobres e lúcidas -
Sim, verdadeiramente altas e nobres e lúcidas -
E quem sabe se realizáveis,
Nunca verão a luz do sol real nem acharão ouvidos de gente?
O mundo é para quem nasce para o conquistar
E não para quem sonha que pode conquistá-lo, ainda que tenha razão.
Tenho sonhado mais que o que Napoleão fez.
Tenho apertado ao peito hipotético mais humanidades do que Cristo.
Tenho feito filosofias em segredo que nenhum Kant escreveu.
Mas sou, e talvez serei sempre, o da mansarda,
Ainda que não more nela;
Serei sempre o que não nasceu para isso;
Serei sempre o que só tinha qualidades;
Serei sempre o que esperou que lhe abrissem a porta ao pé de uma parede sem porta,
E cantou a cantiga do infinito numa capoeira,
E ouviu a voz de Deus num poço tapado.
Crer em mim? Não, nem em nada.
Derrame-me a Natureza sobre a cabeça ardente
O seu sol, a sua chuva, o vento que me acha o cabelo,
E o resto que venha se vier, ou tiver que vir, ou não venha.
Escravos cardíacos da estrêlas,
Conquistámos todo o mundo antes de nos levantar da cama;
Mas acordámos e ele é opaco,
Levantámo-nos e ele é alheio,
Saímos de casa e ele é a terra inteira,
Mais o sistema solar, a Via Láctea e o Indefinido.

(Come chocolates, pequena;
Come chocolates!
Olha que não há mais metafísica no mundo senão chocolates.
Olha que as religiões todas não ensinam mais que a confeitaria.
Come, pequena suja, come!
Pudesse eu comer chocolates com a mesma verdade com que comes!
Mas eu penso e, ao tirar o papel de prata, que é de folha de estanho,
Deito tudo para o chão, como tenho deitado a vida.)

Mas ao menos fica da amargura do que nunca serei
A caligrafia rápida destes versos,
Pórtico partido para o Impossível.
Mas ao menos consagro a mim mesmo um desprezo sem lágrimas,
Nobre ao menos no gesto largo com que atiro
A roupa suja que sou, sem rol, p'ro decurso das coisas,
E fico em casa sem camisa.

(Tu, que consolas, que não existes e por isso consolas,
Ou deusa grega, concebida como estátua que fosse viva,
Ou patrícia romana, impossivelmente nobre e nefasta,
Ou princesa de trovadores, gentilíssima e colorida,
Ou marquesa do século dezoito, decotada e longínqua,
Ou cocotte célebre do tempo dos nossos pais,
Ou não sei o quê moderno - não concebo bem o quê -
Tudo isso, seja o que for, que sejas, se pode inspirar que inspire!
Meu coração é um balde despejado.
Como os que invocam espíritos invocam espíritos invoco
A mim mesmo e não encontro nada.
Chego à janela e vejo a rua com uma nitidez absoluta.
Vejo as lojas, vejo os passeios, vejo os carros que passam,
Vejo os entes vestidos que se cruzam,
Vejo os cães que também existem,
E tudo isso me pesa como uma condenação ao degredo.
E tudo isso é estrangeiro, como tudo.)

Vivi, estudei, amei e até cri,
E hoje não há mendigo que eu não inveje só por não ser eu.
Olho a cada um os andrajos, e as chagas e a mentira,
E penso: talvez nunca vivesses nem estudasses nem amasses nem cresses
(Porque é possível fazer a realidade de tudo isso sem fazer nada disso);
Talvez tenhas existido apenas, como um lagarto a quem cortam o rabo
E que é rabo para aquém do lagarto remexidamente.

Fiz de mim o que não soube,
E o que podia fazer de mim não o fiz.
O dominó que vesti era errado.
Conheceram-me logo por quem era e não desmenti, e perdi-me.
Quando quis tirar a máscara,
Estava pegada à cara.
Quando a tirei e me vi ao espelho,
Já tinha envelhecido.
Estava bêbado, já não sabia vestir o dominó que não tinha tirado.
Deitei fora a máscara e dormi no vestiário
Como um cão tolerado pela gerência
Por ser inofensivo
E vou escrever esta história para provar que sou sublime.

Essência musical dos meus versos inúteis,
Quem me dera encontrar-te como coisa que eu fizesse,
E não ficasse sempre defronte da Tabacaria de defronte,
Calcando aos pés a consciência de estar existindo,
Como um tapete em que um bêbado tropeça
Ou um capacho que os ciganos roubaram e que não valia nada.

Mas o Dono da Tabacaria chegou à porta e ficou à porta.
Olho-o com o desconforto da cabeça mal voltada
E com o desconforto da alma mal-entendendo.
Ele morrerá e eu morrerei.
Ele deixará a tabuleta, eu os versos.
A certa altura morrerá a tabuleta também e os versos também.
Depois de certa altura morrerá a rua onde esteve tabuleta,
E a língua em que foram escritos os versos.
Morrerá depois o planeta girante em que tudo isto se deu.
Em outros satélites de outros sistemas qualquer coisa como gente
Continuará fazendo coisas como versos e vivendo por baixo de coisas como tabuletas.
Sempre uma coisa defronte da outra,
Sempre uma coisa tão inútil como a outra,
Sempre o impossível tão estúpido como o real,
Sempre o mistério do fundo tão certo como o sono do mistério da superfície,
Sempre isso, ou sempre outra coisa ou nem uma coisa nem outra.

Mas um homem entrou na Tabacaria (para comprar tabaco?),
E a realidade plausível cai de repente em cima de mim.
Semiergo-me, convencido, humano
E vou tencionar escrever estes versos em que digo o contrário.

Acendo um cigarro ao pensar em escreve-los
E saboreio no cigarro o prazer da libertação de todo os pensamentos.
Sigo o fumo como a uma rota própria,
E gozo, num momento sensitivo e competente,
A libertação de todas as especulações
E a consciência de que a metafísica é uma consequência de estar mal disposto.

Depois deito-me para trás na cadeira
E continuo fumando.
Enquanto o Destino mo conceder continuarei fumando.

(Se eu casasse com a filha da minha lavadeira
Talvez fosse feliz.)
Visto isto, levanto-me da cadeira. Vou à janela.

O homem sai da Tabacaria (metendo o troco na algibeira das calças?).
Ah, conheço-o: é o Esteves sem metafísica.
(O Dono da Tabacaria chegou à porta)
Como por um instinto divino o Esteves voltou-se e viu-me.
Acenou-me adeus e gritei-lhe Adeus ó Esteves! e, o universo
Reconstrui-se-me sem ideal nem esperança, e o Dono da Tabacaria sorriu.

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE JANEIRO DE 1928

(Nota: Em 11 de Maio de 1985, o crítico francês Jean-Pierre Thibaudat, escreveu, no jornal “Liberetion”, o seguinte: “Tomem-no como quiserem, pensem os que lhes apetecer, à hora em que escrevo estas linhas, Tabacaria é o mais belo texto do mundo”)