sexta-feira, 31 de agosto de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS


GLÁDIO

A sombra de todos os luares
Nossa tristeza escureceu...
Ergue-te, gládio
E acontece-te no céu!

Com tua vinda venha Deus.
A Pátria em dor chora por ti.
Enche a manhã dos vagos céus
Do teu advento que sorri.

No teu cavalo branco vindo
Tua divina lenda traz
Realizada no advindo
Silêncio que nos quebra e traz

Tristes, doloridos, sobre a Hora
Que se ergue como um cadafalso
E ao pé dela a nossa dor chora
Em choro lento e cego e falso

FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1915




quinta-feira, 30 de agosto de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS



Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É o que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Álea longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua.
Sente-se o frio de haver luar.
Nessa terra, também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933

quarta-feira, 29 de agosto de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS




DILUENTE

A vizinha do número catorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
 A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo
 da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mãe esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião de cair.
Posso morrer como o orvalho seca
Por uma arte natural da natureza solar.
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche de lágrimas...
Glória? Amor?O anseio de uma alma humana?
Apoteose às avessas...
Dêem-me Água de Vidago que eu quero esquecer a vida!

ÁLVARO DE CAMPO, 29 DE AGOSTO DE 1929

terça-feira, 28 de agosto de 2012

FAZ HOJE 85 ANOS



Não venhas sentar-te à minha frente, nem ao meu lado;
Não venhas falar, nem sorrir.
Estou cansado de tudo, estou cansado,
Quero só dormir.

Dormir até acordado, sonhando
Ou até sem sonhar,
Mas envolto num vago abandono brando
A não ter que pensar

Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro,
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes ao meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e as ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar. 

FERNANDO PESSOA, 28 DE AGOSTO, DE 1927

segunda-feira, 27 de agosto de 2012

FAZ HOJE 102 ANOS

A ALGUÉM
QUE JÁ NAMORA

Eu sei de uns olhos castanhos,
(Por sinal que nunca choram),
E esses olhos lindos, tenho-os
Por olhos que já namoram...

Já! já! já! Que atrevimento!
Ainda não são de mulher,
E já mostram sentimento
Já são p'ra mais do que ver...

Já mostram um coração
Nos seus brilhos mal escondidos;
E nem nos pedem perdão
De serem tão atrevidos...

Os bebés, por este andar,
Dentro em pouco quando for
Altura de já falar,
Principiarão por gritar,
Não Mamã, mas sim Amor.

FERNANDO PESSOA, 27 DE AGOSTO, DE 1910

domingo, 26 de agosto de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



Tenho pena e não respondo.
Mas não tenho culpa enfim
De que em mim não correspondo
Ao outro que amaste em mim.

Cada qual é muita gente.
Por mim sou quem me penso,
Para outros - cada um sente
O que julga, e é um erro imenso.

Ah, deixem-me sossegar.
Nem me sonhem nem me outrem.
Se eu não me quero encontrar,
Quererei que os outros me encontrem?

FERNANDO PESSOA, 26 DE AGOSTO DE 1930

sábado, 25 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Estamos sempre na encruzilhada.
Cada dia é vários caminhos
Possíveis. Cada hora é mais que uma estrada.
Nós, os sozinhos
De nada,

Nem escolhemos, nem queremos:
Vamos...
E, seja a via pelo areal que vemos
Ou a floresta pela qual andamos,
Vamos para onde não sabemos,
E não sabemos onde estamos.

E a cada hora, a cada hora,
Há que virar para a direita ou esquerda
Segundo uma lei que se ignora
Ou um impulso cujo instinto se não herda.

Sempre tantos caminhos!
E nós, sem tempo para os escolher,
Apressados, ignaros e sozinhos,
Tomamos o que tem de ser.

Se é bom, se é mau o por onde ir,
Ninguém o sabe ou saberá...
Tudo é não saber e seguir:
O resto Deus dará, ou não dará.

FERNANDO PESSOA, 25 DE AGOSTO DE 1934

sexta-feira, 24 de agosto de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



Vem do fundo do campo, da hora,
E do modo triste como ouço,
Uma voz que canta, e se demora.
Escuto alto, mas não posso

Distinguir o que diz; é música só.
Feita de coração, sem dizer:
Murmúrio de quem embala, com um vago dó
De o menino ter de crescer.

Melodia triste sem pranto,
Grácil, antiga, feliz
Manhã de sentir a alma como um canto
De D. Diniz.

FERNANDO PESSOA, 24 DE AGOSTO DE 1930

quinta-feira, 23 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Não digas nada!
Não, nem a verdade!
Há tanta suavidade
Em nada se dizer
Em tudo se entender -
Tudo metade
De sentir e de ser...
Não digas nada!
Deixa esquecer.

Talvez que amanhã
Em outra paisagem
Digas que foi vã
Toda esta viagem
Até onde quis
Ver quem me agrada...
Mas ali fui feliz...
Não digas nada.

FERNANDO PESSOA, 23 DE AGOSTO DE 1934

quarta-feira, 22 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Deixem-me o sono! Sei que já é manhã.
Mas se tão tarde o sono veio,
Quero, desperto, inda sentir a vã
Sensação do seu vago enleio.

Quero, desperto, não me recusar
A estar dormindo ainda,
E, entre a noção irreal de aqui estar,
Ver essa noção finda.

Quero que me não neguem quem não sou
Nem que, debruçado eu
Da varanda por sobre onde não estou
Nem sequer veja o céu.

FERNANDO PESSOA, 22 DE AGOSTO DE 1934 

terça-feira, 21 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Cansaço... Sim, cansaço do que fui
E do universo inteiro; sim, cansaço,
Não um cansaço morto. pois que flui...
Não qualquer coisa que haja em tempo e em espaço...

Não: um cansaço intérmino de tudo
Que, como um rio, vai por margens mudas
Num grande, antigo movimento mudo
Sob estrelas silenciosas e agudas.

Um cansaço de quanto possa haver,
De quanto, até, se possa desejar,
Lentamente indo, sem se ver correr,
Para a esperança de não haver mar.

FERNANDO PESSOA, 21 DE AGOSTO DE 1934

segunda-feira, 20 de agosto de 2012

FAZ HOJE 87 ANOS

AMIEL

Não, nem no sonho a perfeição sonhada
Existe, pois que é sonho. Ó Natureza,
Tão monotonamente renovada,
Que cura dás a esta tristeza?
O esquecimento temporário, a estrada
Por engano tomada,
O meditar na ponte e na incerteza...

Inúteis dias que consumo lentos
No esforço de pensar na acção,
Sozinho com meus frios pensamentos
Nem com uma esperança mão em mão.
É talvez nobre ao coração
Este vazio ser que anseia o mundo,
Este prolixo ser que anseia em vão,
Exânime e profundo.

Tanta grandeza que em si mesma é morta!
Tanta nobreza inútil de ânsia e de dor!
Nem se ergue a mão para a fechada porta,
Nem o submisso olhar para o amor!

FERNANDO PESSOA, 20 DE AGOSTO DE 1925

domingo, 19 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Como a noite chegasse e ninguém vinha,
Tranquei a porta contra o mundo;
E a minha casa plácida e mesquinha
Ficou comigo num silêncio fundo...

Ébrio de só, falando a sós comigo,
Despreocupadamente passeando,
Fui verdadeiramente aquele amigo
Que em cada amigo já me vai faltando.

Mas bateram à porta de repente
E todo um poema se apagou num salto...
Era o vizinho, que o almoço assente
Para amanhã me lembrou. Não, não falto.

E, de novo, trancados porta e ser,
Tentei restituir ao coração
O passeio, o entusiasmo,e o desejo
Com que era ébrio do que os outros são.

Mas nada... Os móveis naturais da casa,
As paredes certeiras a me olhar,
Como alguém que deixou de olhar a brasa
E não viu brasa já ao ir olhar.

FERNANDO PESSOA, 19 DE AGOSTO DE 1934

sábado, 18 de agosto de 2012

FAZ HOJE 77 ANOS



Sei bem que não consigo
O que não quero ter,
Que nem até prossigo
Na estrada até querer.

Sei que não sei da imagem
Que era o saber que foi
Aquela personagem
Do drama que me dói.

Sei tudo. Era presente
Quando abdiquei de mim...
E o que a minha alma sente
Ficou nesse jardim...

FERNANDO PESSOA, 18 DE AGOSTO DE 1935

sexta-feira, 17 de agosto de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



A liberdade, sim a liberdade!
A verdadeira liberdade!
Pensar sem desejos nem convicções.
Ser dono de si mesmo sem influência de romances!
Existir sem Freud nem aeroplanos,
Sem cabarets, nem na alma, nem velocidades, nem no cansaço!
A liberdade do vagar, do pensamento são, do amor às coisas naturais
A liberdade de amar a moral que é preciso dar à vida!
Como o luar quando as nuvens abrem
A grande liberdade cristã da minha infância que rezava
Estende de repente sobre a terra inteira o teu manto de prata para mim...
A liberdade, a lucidez, o raciocínio coerente,
A noção jurídica da alma  dos outros como humana,
A alegria de ter estas coisas, e poder outra vez
Gozar os campos sem referência a coisa nenhuma
E beber água como se fosse todos os vinhos do mundo!

Passos todos passinhos de criança...
Sorriso de velha bondosa...
Apertar da mão do amigo sério...
Que vida que tem sido a minha!
Quanto tempo de espera no apeadeiro!
Quanto viver pintado em impresso da vida!

Ah, tenho uma sede sã. Dêem-me a liberdade,
Dêem-ma no púcaro velho de ao pé do pote
Da casa do campo da minha infância...
Eu bebia e ele chiava,
Eu era fresco e ele era fresco,
E como não tinha nada que me ralasse, era livre.
Que é do púcaro e da inocência?
Que é de quem eu deveria ter sido?
Salvo este desejo de liberdade e de bem e de ar, que é de mim?

ÁLVARO DE CAMPOS, 17 DE AGOSTO DE 1930


quinta-feira, 16 de agosto de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS




THE TIMES

Sentou-se bêbado à mesa escreveu um fundo
Do Timesclaro, inclassificável, lido...
Supondo (coitado!) que ia ter influência no mundo...
.......................................................................
Santo Deus!... E talvez tenha tido!

ÁLVARO DE CAMPOS, 16 DE AGOSTO DE 1928

quarta-feira, 15 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



A pompa inútil dos teus gestos quedos,
Como que à espera do ritual a dar,
Não traz ainda os segredos
Que ninguém tem para entregar.
Mas é como um prelúdio entre rochedos
Ao que é o som do mar.

Deram-me rosas para que eu viesse.
Deram-me lírios para que sonhasse.
A rosa murcha e esquece,
E o lírio cai antes que amarelasse.
Mas isso tudo é a teia que nos tece
Uma aranha que nos amasse.

Ah, em vez de rosas, lírios, ou que seja
Que me dêem o céu e o mar sem fim
E o que da aragem vaga seja
Tudo o que faz dormir assim.
E o que de tudo eu sonhe ou até veja
Que seja sempre só em mim.

FERNANDO PESSOA, 15 DE AGOSTO DE 1934

terça-feira, 14 de agosto de 2012

FAZ HOJE 87 ANOS


         
GLOSAS

Toda a obra é vã e vã a obra toda.
O vento vão, que as folhas vãs enroda,
Figura o nosso esforço e o nosso estado.
O dado e o feito, ambos os dá o Fado.

Sereno, acima de ti mesmo fita
A possibilidade erma e infinita,
De onde o real emerge inutilmente,
E cada, e só para pensares sente.

***

Nem o bem nem o mal define o mundo.
Alheio ao bem e ao mal, do céu profundo
Suposto, o Fado que chamamos Deus
Rege nem bem nem mal a terra e os céus.

Rimos, choramos através da vida.
Uma coisa é uma cara contraída
E outra uma água com um leve sal.
E o Fado fada alheio ao bem e ao mal.


*** 


Doze signos do céu o sol percorre,
E, renovando o curso, nasce e morre
Nos horizontes do que contemplamos.
Tudo em nós é o ponto de onde estamos.

Ficções da nossa mesma consciência
Jazemos o instinto e a ciência.
E o sol parado nunca percorreu
Os doze signos que não há no céu.

FERNANDO PESSOA, 14 DE AGOSTO DE 1925

segunda-feira, 13 de agosto de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS-



PENUGEM

Uma leve (veludo me envolve), vaga,
Vazia brisa
Como uma impressão imprecisa se propaga
Pela minha alma imprecisa.

Pendem, oscilando, do caule da Hora - a rosa
Rara raiou -
As flores que outrora perfumaram a luminosa
Vida que já passou.

E tudo porque uma brisa, como quem brinca, brinda
Ao meu hesitar
O insulto inútil da sua veludínea e linda
Voz de variar.

Porque sob o azul do sul um bafo, ou um afago
Que sugere, ou contém,
A ideia de vida feliz ou de morte tranquila, vago
Afago vem.

E eu dispo de mim as intenções e as memórias
Na abstracta fragância,
E a Hora é apenas terem-me contado 'stórias
Na minha infância.

FERNANDO PESSOA, 13 DE AGOSTO, DE 1917
("Num carro subindo Almirante Reis")

domingo, 12 de agosto de 2012

FAZ HOJE 93 ANOS



Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!

No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem,
A ver até esquecer
Que tu és tu também...

Só tua alma, nunca tu
Só o teu pensamento
E eu nada, alma sem eu.Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento acabou.

FERNANDO PESSOA, 12 DE DEZEMBRO DE 1919

sábado, 11 de agosto de 2012

FAZ HOJE 82 ANOS



Não! Só quero a liberdade!
Amor, glória, dinheiro são prisões.
Bonitas salas? Bons estofos? Tapetes moles?
Ah, mas deixem-me sair para ir ter comigo.
Quero respirar o ar sozinho,
Não tenho pulsações em conjunto,
Não sinto em sociedade por quotas,
Não sou senão eu, não nasci senão quem sou, estou cheio de mim.
Onde quero dormir? No quintal...
Nada de paredes - só o grande entendimento -
Eu e o universo,
E que sossego, que paz não ver antes de dormir o espectro do guarda-fato
Mas o grande esplendor, negro e fresco de todos os astros juntos,
O grande abismo infinito para cima
A pôr brisas e bondades do alto na caveira tapada de carne que é a minha cara,
Onde só os olhos - outro céu - revelam o grande ser subjectivo.

Não quero! Dêem-me e liberdade!
Quero ser igual a mim mesmo.
Não me capem com ideais!
Não me vistam as camisas-de-forças das maneiras!
Não me façam elogiável ou inteligível!
Não me matem em vida!

Quero saber atirar com essa bola alta à lua
E ouvi-la cair no quintal do lado!
Quero ir deitar-me na relva, pensando "amanhã vou buscá-la..."
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal ao lado...
Amanhã vou buscá-la ao quintal
Buscá-la ao quintal
Ao quintal
Ao lado...

ÁLVARO DE CAMPOS, 11 DE AGOSTO DE 1930
,

sexta-feira, 10 de agosto de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS


Ninguém a outro ama, senão que ama
O que de si há nele, ou é suposto.
Nada te pese que não te amem. Sentem-te
Quem és, e és estrangeiro.
Cura de ser quem és, amem-te ou nunca.
Firme contigo, sofrerás avaro
De penas.

RICARDO REIS, 10 DE AGOSTO DE 1932 

quinta-feira, 9 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Domingo irei para as hortas na pessoa dos outros,
Contente da minha anonimidade.
Domingo serei feliz - eles, eles...
Domingo...
Hoje é quinta feira da semana que não tem domingo...
Nenhum domingo...
Nunca domingo...
Mas sempre haverá alguém nas hortas no domingo que vem.
Assim passa a vida,
Sobretudo para quem sente,
Mais ou menos para quem pensa:
Haverá sempre alguém nas hortas ao domingo...
Não no nosso domingo, 
Não no meu domingo,
Não no domingo...
Mas sempre haverá outrem nas hortas e ao domingo... 

ÁLVARO DE CAMPOS, 9 DE AGOSTO DE 1934



quarta-feira, 8 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS


Passa um silêncio sobre a erva alta.
Cessam os topos de cabecear...
O vento esconde-se, a sua falta
Dá uma tristeza ao ar.

Assim quando cessou o sentimento
Que fez mover os cimos do meu ser
Não se me melhorou o pensamento
E fiquei sem querer.

Vento que dormes, levam-te e caminha!
Emoção tarda,sente-te e revive!
E a erva volta à comoção que tinha
E eu ao amor que tive...

 FERNANDO PESSOA, 8 DE AGOSTO DE1934

terça-feira, 7 de agosto de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS



Como criança, ou como condenado,
Livre de culpa ou cheio de pecado,
Dorme teu sono cansado.

Quem dorme, porque é nada e é ninguém,
E sua essência de dormente tem
Direito a qualquer bem.

Ao menos à renúncia e ao perdão
Que, ambos, vestígios ignorados são
De uma maior visão.

Quem dorme é inocente e volta a ser
O que em criança foi sem perceber -
O que sonha sem ter...

Dorme. Inda que te odiasse, nesta hora
Nada em mim odiaria, a pastora
As idas rezes chora...

Sim: há um monte para além de aqui
Onde um rebanho pasce, e ali, ali,
Esta vida sorri.

FERNANDO PESSOA, 7 DE AGOSTO DE 1934



segunda-feira, 6 de agosto de 2012

FAZ HOJE 81 ANOS




Sim, sou eu, eu mesmo,tal qual resultei de tudo,
Espécie de acessório ou sobresselente próprio,
Arredores irregulares da minha emoção sincera,
Sou eu aqui em mim, sou eu.


Quanto fui, quanto não fui, tudo isso sou.
Quanto quis, quanto não quis, tudo isso me forma.
Quanto amei ou deixei de amar é a mesma saudade em mim.


E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco inconsequente,
Como de um sonho formado sobre realidades mistas,
De me ter deixado a mim num, banco de carro  eléctrico,
Para ser encontrado pelo acaso de quem se lhe ia sentar em cima.


E, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco longínqua,
Como de um sonho que se quer lembrar na penumbra a que se acorda,
De haver melhor em mim do que eu.


Sim, ao mesmo tempo, a impressão, um pouco dolorosa,
Como de um acordar sem sonhos para um dia de muitos credores,
De haver falhado tudo como tropeçar no capacho,
De haver embrulhado tudo como a mala sem as escovas.
De haver substituído  qualquer coisa a mim algures na vida.


Baste! É a impressão um tanto ou quanto metafísica,
Como o sol pela última vez por sobre a janela da casa a abandonar,
De que mais vale ser criança que querer compreender o mundo -
A impressão de pão com manteiga e brinquedos
De um grande sossego sem Jardins de Prosérpina,
De uma boa vontade para com a vida encostada de testa à janela,
Num ver chover com som lá fora
E não as lágrimas adultas de custar a engolir.


Baste, sim baste! Sou eu mesmo, o trocado,
O emissário sem carta nem credenciais,
O palhaço sem riso, o bobo  com o grande fato de outro,
A quem tinem as campainhas na cabeça 
Como chocalhos pequenos de uma servidão em cima.


Sou eu mesmo, a charada sincopada
Que ninguém da roda decifra nos serões de província.


Sou eu mesmo, que remédio!...


ÁLVARO DE CAMPOS, 6 DE AGOSTO DE 1931