quinta-feira, 31 de março de 2011

FAZEM ESTE MÊS 98 ANOS



ALÉM-DEUS

I

ABISMO

Olho o Tejo, e de tal arte
Que me esquece olhar olhando,
E súbito isto me bate
De encontro ao devaneando -
O que é ser rio, e correr?
O que é está-lo eu a ver?

Sinto de repente pouco,
Vácuo, o momento, o lugar.
Tudo de repente é oco -
Mesmo o meu estar a pensar.
Tudo - eu e o mundo em redor -
Fica mais que exterior.

Perde tudo o ser, ficar,
E do pensar se me some.
Fico sem poder ligar
Ser, ideia, alma de nome
A mim, à terra e aos céus...

E súbito encontro Deus.


II

PASSOU

Passou, fora de Quando,
De Porquê, e de Passando...,

Turbilhão de Ignorado,
Sem ter turbilhonado....

Vasto por fora do Vasto
Sem ser que a si se assombra...

O universo é o seu rasto...
Deus é a sua sombra...

III

A VOZ DE DEUS

Brilha uma voz na noute...
De dentro de Fora ouvi-a....
Ó Universo, eu sou-te...
Oh, o horror da alegria
Deste pavor, do archote
Se apagar, que me guia!

Cinzas de ideia e de nome
Em mim, é a voz:Ó mundo
Sermente em ti eu sou-me...
Mero eco de mim, me inundo
De ondas de negro lume
Em que p´ra Deus me afundo.

IV

A QUEDA

Da minha ideia do mundo
Caí...
Vácuo além de profundo,
Sem ter Eu nem Ali...

Vácuo sem si próprio, caos
De ser pensado como ser...
Escada absoluta sem degraus...
Visão que se não pode ver...

Além.Deus! Além-Deus! Negra calma...
Clarão de Desconhecido...
Tudo tem outro sentido, ó alma,
Mesmo o ter-um-sentido...


V

BRAÇO SEM CORPO
BRANDINDO UM GLÁDIO

Entre a árvore e o vê-la
Onde está o sonho?
Que arco da ponte mais vela
Deus?... E eu fico tristonho
Por não saber se a curva do ponte
É a curva do horizonte...

Entre o que vive e a vida
P'ra que lado corre o rio?
Árvore de folhas vestida -
Entre isso e Árvore há fio?
Pombas voando - o pombal
Está-lhes sempre à direita, ou é real?

Deus é um grande Intervalo,
Mas entre quê e quê?...
Entre o que digo e o que calo
Existo? Quem é que me vê?
Erro-me... E o pombal elevado
Está em torno da pomba, ou de lado?


FERNANDO PESSOA, JANEIRO-MARÇO DE 1913







UMA NOTA INTERCALAR

Embora a maioria dos poemas do Fernando Pessoa estejam datados, ou não estando, as datas presumíveis sejam seguramente fiáveis, alguns, há, que ou são totalmente omissos, ou apenas indicam o mês e o ano em que foram escritos, - ou datados, quando considerados fechados.
Datado como "De Janeiro a Março de 1913", deixou-nos um importante conjunto de cinco poemas, sob o título de "ALÉM-DEUS" o qual, pela sua importância no contexto da Obra do Poeta, me pareceu de incluir no conjunto de poemas aniversariantes, que tenho vindo a colocar neste blogue. A sua colocação no último dia de Março, justifica-se pela informação que o Fernando Pessoa nos deixou.

Fernando Ranito

FAZ HOJE 77 ANOS

Sim, por fim uma certa calma...
Certa ciência antiga, sentida
Na substância da vida,
De que não há acabar da alma,
Qualquer que seja a estrada que é seguida...

Fácil visão?
Crença de muitos? Não.
Que o que sinto tem diferença.
É uma vida, não uma crença...
Não é meu: é do coração.

Sol que atingiste o ocidente,
Sei que outro te tornarei a ver -
Um outro e o mesmo no oriente:
Tudo é ilusão, mas nada mente,
O Nada que é tudo é o Ser.


FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1934

FAZ HOJE 77 ANOS

Cismo, remoto da calma
Em que de sentir-me vou,
Não sei quem é a minha alma
Nem ela sabe quem sou.

Entendê-lo? Tardaria.
Explicá-lo? Não.

E neste mal entendido
Entre quem sou e o que é eu
Vai todo um outro sentido
Que está entre a terra e o céu.

No intervalo nasce o mundo
Com sóis e estrelas sem fim.
Tem um sentido profundo.
Conheço-o. É fora de mim.


FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1934

FAZ HOJE 79 ANOS

Azuis os montes que estão longe param.
De eles a mim o vário campo ao vento, à brisa,
Ou verde ou amarelo ou variegado,
Ondula incertamente.
Débil como uma haste de papoila
Me suporta o momento. Não quero.
Que pesa o escrúpulo do pensamento
Na balança da vida?
Como os campos, e vários,e como eles,
Exterior a mim me entrego, filho
Ignorado do Caos e da Noite
Às féria em que existo.


RICARDO REIS, 21 DE ABRIL DE 1932

quarta-feira, 30 de março de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS

Em plena vida e violência
De desígnio e ambição,
De repente uma sonolência
Cai sobre a minha consciência
Desce ao meu próprio coração.

Será que a mente, já, desperta
Da noção feliz de viver,
Vê que, pela janela aberta,
Há uma paisagem toda incerta
E um sonho todo a aparecer.


FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1931

FAZ HOJE 78 ANOS

Assim, sem nada feito e o por fazer
Mal pensado, ou sonhado sem pensar,
Vejo meus dias nulos decorrer,
E o cansaço de nada me aumentar.

Perdura, sim, como uma mocidade
Que a si mesma sobrevive, a esperança,
Mas à mesma esperança o tédio invade,
E a mesma falsa mocidade cansa.

Ténue passar das horas sem proveito,
Leve correr dos dias sem acção,
Como a quem com saúde jaz no leito
Ou quem sempre se atrasa sem razão.

Vadio sem andar, meu ser inerte
Contempla-me, que esqueço de querer,
E a tarde exterior seu tédio verte
Sobre quem nada fez e nada quer.

Inútil vida, posta a um canto e ida
Sem que alguém nela fosse, nau sem mar,
Obra solenemente por ser lida,
Ah, deixem-me sonhar sem esperar!


FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1933

terça-feira, 29 de março de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS


Vaga, no azul amplo solta,
Vai uma nuvem errando.
O meu passado não volta.
Não é o que estou chorando.

O que choro é diferente.
Entra mais na alma da alma.
Mas como, no céu sem gente,
A nuvem flutua calma.

E isso lembra uma tristeza
E a lembrança é que entristece,
Dou à saudade a riqueza
De emoção que a hora tece.

Mas, em verdade, o que chora
Na minha amarga ansiedade
Mais alto que a nuvem mora,
Está para além da saudade.

Não sei o que é nem consinto
À alma que o saiba bem.
Visto da dor com que minto
Dor que a minha alma tem.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1931

FAZ HOJE 82 ANOS

Aqui está-se sossegado.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-na ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido.

Agora não esqueço o sonho.
Fecho olhos, ouço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que vejo azul a esverdear.
Agora não esqueço o sonho.


Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho -
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois -
Nada explica nem consola.


FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1929

FAZ HOJE 98 ANOS



PAUIS

Pauis a roçarem ânsias pela minh'alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh'alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!...Baloiçar de cimos de palma...
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra cousa que o que chora!
Estendo as mão para além, mas ao estende-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de Imperfeição...Ó tão antiguidade
A Hora expulsa de si-Tempo!...Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluído de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...
O Mistério sabe-me a eu ser outro... Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta - a lança que finca no chão
É mais alta do que ela... P'ra que é isto tudo?... Dia chão...
Trepadeira de despropósito lambendo de Hora os Aléns...
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro...
Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...
Portões vistos longe... através das árvores....tão de ferro!...


FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1913



segunda-feira, 28 de março de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS

Vão lentos passando
Os dias que tenho.
Depois de passarem
Já não os apanho.

De aqui a tão pouco
A vida acabou.
Vou ser um cadáver
Por quem se rezou.

E entre hoje e esse dia
Farei o que fiz:
Ser eu qual não sei ser
Feliz ou infeliz.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1931

FAZ HOJE 81 ANOS



AMUN-RA


Meu ser vive na noite e no outramente,
Vestígio e esteira de onde o barco foi...

Nada é, tudo se outra. A consciência
É o vácuo entre o que somos e Ele é.
E a Natureza é a sombra que se vê
Encher de luz o vácuo e a luz é ciência.
Enche o vácuo de temor
Enche de movimento a inexistência.

Mas onde a luz que é Ele e a intermitência?
Onde está o o universo onde se lê
Com a voz da Razão verbo de fé...
Onde é que o Nada encontra a consistência?

Paro em mim mesmo, exausto de pensar-me,
No que sou, Tu, Ser que o ser enche e cobre,
E o silêncio é ouvir-te e renovar-me
Oiço e um horror me os olhos da alma vasa.
E a Sua agonia é um manto sobre
O não haver senão a Sua asa.
Dentro d'Ele seu ser de si extravasa.

Foi antes do Não-ser de onde Deus veio,
Na antiga Noite, antes de a noite ser,
Que no abismo de Ele teve ver
O Espírito que olha e está mo meio.

E à roda, fluido de anterior anseio,
Começo abstracto de poder haver
Em círculos concêntricos de ter
Concebeu-se o universo, a si alheio.

Mas o Fantasma guarda a porta ausente,
E inda haveria mais que eternos céus
Que passar, antes que ter de ser fosse ente.
Então abriu a porta e Ele era os seus.
Amanheceu-se em flor no inexistente.
Sem ser morte. A sua morte é Deus.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930

FAZ HOJE 77 ANOS


O SILVA


Morreu o filho do barbeiro,
Uma criança de cinco anos.
Conheço o pai - há um ano inteiro
Que me barbeia e nos falamos.

Quando mo disse, o que em mim há
De coração sofreu assombro
E eu abracei-o, incerto já,
E ele chorou sobre o meu ombro.

Nunca acho uma atitude plana
Na vida estúpida e tranquila;
Mas, meu Deus, sinto a dor humana!
Nunca me tires o senti-la!

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1934

FAZ HOJE 79 ANOS

Ah, que extraordinário,
Nos grandes momentos da tristeza,
Como quando alguém morre, e estamos em casa dele e todos estão quietos,
O rodar de um carro na rua, ou o cantar de um galo nos quintais.
Que longe da vida!
É outro mundo.
Viramo-nos para a janela, e o sol brilha lá fora -
Vasto sossego plácido da natureza sem interrupções!

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE MARÇO DE 1932

domingo, 27 de março de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS

Com que revolta me reconheço
Sempre esquecido do que eu amei!
O sol luz claro, o céu azul
Dá aos sentidos a lucidez
O vento é brando, neste amplo sul,
E os mortos morrem segunda vez.


FERNANDO PESSOA, 27 DE MARÇO DE 1934

FAZ HOJE 77 ANOS

O som da chuva lá fora. -
Pingos, vento, triste som, -
Junta qualquer coisa à hora
Que faz dormi-la ser bom.

Dá um sentimento vago
De que não ser é um bem,
Como se à margem de um lago
Nunca estivesse ninguém.

Um som de chuva na noite
Com tudo fechado e quedo.
Que o coração não se afoite
Porque existir é segredo.

Um som de chuva lá fora
Sem que se veja chover...
Dormir... Nunca ter agora...
Noite sem dia... Esquecer...


FERNANDO PESSOA, 27 DE MARÇO DE 1934

FAZ HOJE 80 ANOS

O mau aroma álacre
Da maresia
Sobe no esplendor acre
Do dia.

Falsa, a ribeira é lodo
Ainda a aguar.
Olho, e o que sou está todo
A não olhar.

E um mal de mim deixa.
Tenho lodo em mim...
Ribeira que se queixa
De o rio ser assim.


FERNANDO PESSOA, 27 DE MARÇO DE 1931

FAZ HOJE 97 ANOS

Ritos que as Horas Calmas
Ao entardecer
Fazem com as almas
Sem se conhecer...
E que em voos de ânsias
Põem espirituais distâncias
Entre olhar e ver.

Turíbulos que a Tarde
Oscila no ar
Donde a névoa arde
Cor desde cansar...
Arco dos balanceados
Turíbulos os raios do sol fechados
Na destreza do ar.

Fim de missas no Poente
Bênçãos ainda são
Luz branca e cinzas entre
Terra e coração
Saem os fiéis p'la aberta
Porta da paisagem que deserta...
... Sinos sem perdão...

FERNANDO PESSOA, 27 DE MARÇO DE 1914

FAZ HOJE 82 ANOS

ACASO


No acaso da rua o acaso da rapariga loura.
Mas não, não é aquela.

A outra era noutra rua, noutra cidade e eu era outro.

Perco-me subitamente da visão imediata.
Estou outra vez na outra cidade, na outra rua,
E a outra rapariga passa.

Que grande vantagem o recordar intransigentemente!
Agora tenho pena de nunca mais ter visto a outra rapariga,
E tenho pena de afinal nem ter olhado para esta.

Que grande vantagem trazer a alma virada do avesso!
Ao menos escrevem-se versos.
Escrevem-se versos, passa-se por doido, e depois por génio,
se calhar,
Sr calhar, ou até sem calhar,
Maravilha das celebridades!

Ia eu dizendo que ao menos escrevem-se versos...
Mas isto era a respeito de uma rapariga,
De uma rapariga loura,
Mas qual delas?
Havia uma que vi há muito tempo,numa outra cidade
Numa outra espécie de rua;
Porque todas as recordações são a mesma recordação,
Tudo que foi é a mesma morte,
Ontem, hoje, quem sabe se até amanhã?

Um transeunte olha para mim com uma estranheza ocasional.
Estaria eu a fazer versos com gestos e caretas?
Pode ser... A rapariga loura?
É a mesma afinal...
Tudo é o mesmo afinal...

Só eu, de qualquer modo, não sou o mesmo e isso é o mesmo também.


ÁLVARO DE CAMPOS, 27 DE MARÇO DE 1929

sábado, 26 de março de 2011

FAZ ESTE MES 97 ANOS

OPIÁRIO
Ao Senhor Mário de Sá Carneiro


É antes do ópio que a minh'alma é doente.
Sentir a vida convalesce e estiola
E eu vou buscar ao ópio que consola
Um Oriente ao oriente do Oriente.

Esta vida de bordo há-de matar-me.
São dias só de febre na cabeça
E, por mais que procure e até que adoeça,
Já não encontro a mola p'ra adaptar-me.

Em paradoxo e incompetência astral
Eu vivo a vincos d'ouro a minha vida,
Onda onde o pundonor é uma descida
E os próprios gozos gânglios do meu mal.

É por um mecanismo de desastres,
Uma engrenagem com volantes falsos,
Que passo entre visões e cadafalsos
Num jardim onde há flores no ar, sem hastes.

Vou cambaleando através do lavor
Duma vida-inteira de renda e laca.
Tenho a impressão de ter em casa a faca
Com que foi degolado o Percursor.

Ando expiando um crime numa mala,
Que um avô meu cometeu por requinte.
Tenho os nervos na forca, vinte a vinte,
E caí no ópio como numa vala.

Ao toque adormecido da morfina
Perco-me em transparências latejantes
E numa noite cheia de brilhantes
Ergue-se a lua como a minha Sina.

Eu, que fui sempre um mau estudante, agora
Não faço mais que ver o navio ir
Pelo canal de Suez a conduzir
A minha vida, cânfora na aurora.

Perdi os dias que já aproveitara.
Trabalhei para ter só cansaço
Que é hoje em mim uma espécie de braço
Que ao meu pescoço me sufoca e ampara.

Fui criança como toda a gente.
Nasci numa província portuguesa
E tenho conhecido gente inglesa
Que diz que eu sei inglês perfeitamente.

Gostava de ter poemas e novelas
Publicados por Plon e no Mercure
Mas é impossível que esta vida dure.
Se nesta viagem nem houve procelas!

A vida a bordo é uma coisa triste
Embora a gente se divirta às vezes.
Falo com alemães, suecos e ingleses
E a minha mágoa de viver persiste.

Eu acho que não vale pena ter
Ido ao Oriente e ter visto a Índia e a China.
A terra é semelhante e pequenina
E há só uma maneira de viver.

Por isso eu tomo ópio. É um remédio.
Sou um convalescente do Momento.
Moro no rés-do-chão do pensamento
E ver passar a Vida faz-me tédio.


Fumo. Canso. Ah, uma terra aonde, enfim,
Muito a leste não fosse o oeste já!
P'ra que fui visitar a Índia que há
Se não há Índia senão a alma em mim?

Sou desgraçado por meu morgadio
Os ciganos roubaram minha Sorte.
Talvez nem mesmo encontre ao pé da morte
Um lugar que me abrigue do meu frio.

Eu fingi que estudei engenharia.
Vivi da Escócia. Visitei a Irlanda.
Meu coração é uma avozinha que anda
Pedindo esmola às portas da Alegria.

Não chegues a Port-Said, navio de ferro!
Volta à direita, nem eu sei para onde.
Passo os dias no smoking-room com o conde -
Um escroc francês, conde de fim de enterro.

Volto à Europa descontente, e em sortes
De vir a ser um poeta sunambólico.
Eu sou monárquico mas não católico
E gostava de ser as coisas fortes.

Gostava de ter crenças e dinheiro,
Ser vária gente insípida que vi.
Hoje, afinal, não sou senão, aqui,
Num navio qualquer um passageiro.

Não tenho personalidade alguma.
É mais notado que eu esse criado
De bordo que tem um belo modo alçado
De laird escocês há dias em jejum.

Não posso estar em parte alguma. A minha
Pátria é onde não estou. Sou doente e fraco.
O comissário de bordo é velhaco.
Viu-me co'a sueca... e o resto ele adivinha.

Um dia faço escândalo cá a bordo,
Só para dar que falar de mim aos mais.
Não posso com a vida, e acho fatais
As iras com que às vezes me debordo.

Levo o dia a fumar, a beber coisas,
Drogas americanas que entontecem,
E eu já tão bêbado sem nada! Dessem
Melhor cérebro aos meus nervos como rosas.

Escrevo estas linha. Parece impossível
Que mesmo ao ter talento eu mal o sinta!
O facto é que esta vida é uma quinta
Onde se aborrece uma alma sensível.

Os ingleses são feitos p'ra existir.
Não há gente como esta p'ra estar feita
Com a Tranquilidade. A gente deita
Um vintém e sai um deles a sorrir.

Pertenço a um género de portugueses
Que depois de estar a Índia descoberta
Ficaram sem trabalho.A morte é certa.
Tenho pensado nisto muitas vezes.

Leve o diabo a vida e a gente tê-la!
Nem leio o livro à minha cabeceira
Enoja-me o Oriente. É uma esteira
Que a gente enrola e deixa de ser bela.

Caio no ópio por força. Lá querer
Que eu leve a limpo uma vida destas
Não se pode exigir. Almas honestas
Com horas p'ra dormir e p'ra comer,

Que um raio as parta! E isto afinal é inveja.
Porque estes nervos são a minha morte.
Não haver um navio que me transporte
Para onde eu nada queira que o não veja!

Ora! Eu cansava-me do mesmo modo.
Qu'ria outro ópio mais forte para ir de ali
Para sonhos que dessem cabo de mim
E pregassem comigo nalgum lodo.

Febre! Se isto que tenho não é febre,
Não sei como é que se tem febre e sente.
O facto essencial é que estou doente.
Está corrida, amigos, esta lebre.

Veio noite. Tocou já a primeira
Corneta, p'ra vestir para o jantar.
Vida social por cima! Isso! E marchar
Até que a gente saia p'la coleira!

Porque isto acaba mal e há-de haver
(Olá!) sangue e um revólver lá pró fim
Deste desassossego que há em mim
E não há forma de se resolver.

E quem me olhar, há-de me achar banal,
A mim e à minha vida... Ora! um rapaz...
Meu próprio monóculo me faz
Pertencer a um tipo universal.

Ah, quanta alma haverá, que ande metida
Assim como eu na Linha, e como eu mística?
Quantos sob a casaca característica
Não terão como eu o horror à vida?

Se ao menos eu por fora fosse tão
Interessante como sou por dentro!
Vou no Maelstrom, cada vez mais pró centro.
Não fazer nada é a minha perdição.

Um inútil. Mas é tão justo sê-lo!
Pudesse a gente desprezar os outros
E, ainda que co'os cotovelos rotos,
Ser herói, doido, amaldiçoado ou belo!

Tenho vontade de levar as mãos
À boca e morder nelas fundo e a mal.
Era uma ocupação original
E distraia os outros, os tais sãos.

O absurdo como uma flor da tal Índia
Que não vim encontrar na Índia, nasce
No meu cérebro farto de cansar-se,
E a minha vida mude-a Deus, ou finde-a...

Deixam-me estar aqui, nesta cadeira,
Até virem meter-me no caixão.
Nasci p'ra mandarim de condição,
Mas faltam-me o sossego, o chá e a esteira.

Ah que bom que era ir daqui de caída
P'ra cova por um alçapão de estouro!
A vida sabe-me a tabaco louro.
Nunca fiz mais que fumar a vida.

Afinal o que quero é fé, é calma
E não ter estas sensações confusas.
Deus que acabe com isto! Abra as eclusas -
E basta de comédias na minh'alma!

1914, Março
No canal de Suez, a bordo.

ÁLVARO DE CAMPOS








sexta-feira, 25 de março de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS

Há música. Tenho sono.
Tenho sono com sonhar.
'Stou num longínquo abandono
Sem me sentir nem pensar.

A música é pobre. Mas
Não será mais pobre a vida?
Não importa que eu durma. Faz
Sono sentir a descida...

Que inteligência há-de dar-se
Ao princípio da absorção?
Há música. Antes chorar-se
Sem que (...)

Aventura inexequível,
Congruência com não ser.
Meu coração no desnível,
Meu cansaço sem ceder.

Meu paraíso perdido!
Meu rebanho abandonado!
Vou no séquito abolido
Como um pajem exilado.


FERNANDO PESSOA, 25 DE MARÇO DE 1928

quinta-feira, 24 de março de 2011

FAZ HOJE 88 ANOS

Depois de me ver ao espelho,
Sem mais, devolvo o retrato.
Sou tão feio e estou tão velho
Que era mais que um desacato
Não devolver o retrato
Ou só com a condição...
Dê-me, em troca, só perdão.


FERNANDO PESSOA 24 DE MARÇO DE 1923

FAZ HOJE 80 ANOS

Num dia silencioso
E num quarto interior
Como soa doloroso
Um pregão de vendedor!

Devendo ter a alegria
Da rua e do céu que tem,
A voz soa longe, fria
Da própria vida a que vem.

Talvez o mal seja meu,
Que a voz, onde soa e está,
Não sabe que eu sinto e que eu
Sinto sempre o que não há.

Sinto que é a vida que, inerme
Ao coração se me exprime.
É a vida, mas a dizer-me
Que dela não me aproxime.


FERNANDO PESSOA, 24 DE MARÇO DE 1931

quarta-feira, 23 de março de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS

Vieram com o ruído e com a espada
Senhores do destino após vencer
E uma após outra foi cada mulher
Os sucessores esconder da estrada.

Eram soldados, com a ordem dada
E vinham sobriamente recolher
O sangue das crianças a morrer
Nos escombros da própria casa achada.

Mais longe, sobre o asno do destino,
Levava a Mãe piedosa aquela dor
Futura que era agora o seu Menino.

Apertava-o ao peito, sob a vaga luz
Que toldava mais as árvores ao sol pôr.
De uma, talvez, seria feita A Cruz.


FERNANDO PESSOA, 23 DE MARÇO DE 1930

FAZ HOJE 98 ANOS


HORA MORTA


Lenta e lenta a hora
Por mim dentro soa...
(Alma que se ignora!)
Lenta e lenta e lenta,
Lenta e sonolenta
A hora se escoa...

Tudo tão inútil!
Tão como que doente,
Tão divinamente
Fútil - ah, tão fútil...
Sonho que se sente
De si próprio ausente...

Naufrágio no ocaso...
Hora de piedade...
Tudo é névoa e acaso...
Hora oca e perdida.
Cinza de vivida
(Que tarde me invade?)

Por que lento ante ela,
Lenta em seu soar,
Me sinto ignorar?
Por que é que me gela
Meu próprio pensar
Em sonhar amar?...


FERNANDO PESSOA, 23 DE MARÇO DE 1913

terça-feira, 22 de março de 2011

FAZ HOJE 97 ANOS


AURORA SOBRE O MAR DESCONHECIDO


Mãos brancas (meras mãos sem corpo e sem braços)
Acariciando um negro veludo...
Os olhos do guerreiro vistos por cima do escudo
(Cartas de luto sobre o regaço)
E nunca desfraldado o estandarte
De modo a ver-se que cores e imagens tem...
Mãos sem lágrimas, mãos que nunca seriam de mãe...
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!

Dói púrpuras o silêncio, e que lírios a hora!
E nos tabernáculos das ocasiões um rito de timbres colora
Os vitrais das passadas desilusões...

Cessou no Oposto o ruído de vagas batalhas
Ficou todo o espaço sendo, como túmulos (brancos) a Hora,
Um suspirar de guizos, com fímbrias de falhas...

Abrem-se de par em par impossíveis portões
E desabrocha a ira nos olhos de Artur
Dos vultos, na sombra, de leões...

Mas os dias acontecem oráculos neutros
E não há rituais, Princesa, senão de imperfeições...

FERNANDO PESSOA, 22 DE MARÇO DE 1914

segunda-feira, 21 de março de 2011

FAZ HOJE 74 ANOS

CHAMADA


Vibra, clarim, cuja voz diz
Que outrora ergueste o grito rial
Por D. João, Mestre de Avis,
E Portugal!

Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El Rei D. João Segundo
O Império extremo!

Vibra, sem lei ou com lei,
Como aclamaste outrora em vão
O morto que hoje é vivo - El Rei
D. Sebastião!

Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exército fadado
Cuja extensão os pólos toca
Do mundo dado!

Aquele exército que é feito
De quanto em Portugal é o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo!

Para a obra que há que prometer
Ao nosso esforço alado em si
Convoca todos sem saber
(É a Hora!) aqui!

Os que, soldados de alta glória,
Deram batalhas com nome,
E de cuja alma a voz da história
Tem sede e fome.

E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e crer da externa sorte,
Calçaram imperiais caminhos
Com vida e morte.

Sim, estes, os plebeus do Império,
Heróis sem ter para que o ser,
Chama-os aqui, ó som etéreo
Que vibra a arder!

E os que sonharam, enlevados
No Outro Império que sorri
Além do mundo e os céus fechados
Aqui! Aqui!

E, se o futuro é já presente
Na visão de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que hão-de ser!

Todos, todos! A hora passa,
O génio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raça
Da que se esvai!

A todos, todos, feitos num
Que é Portugal. sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um
Vibra, clarim!

E outros, e outros, gente vária,
Oculta neste mundo misto,
Seu peito atrai, rubra e templária,
A Cruz de Cristo.

Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do mistério -
Soldados não, mas sacerdotes,
Do Quinto Império.

Aqui! Aqui! Todos que são
O Portugal que é tudo em si,
Venham do abismo ou da ilusão,
Todos aqui!

Armada intérmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha,
Do que por haver ou do que é findo -
É o mesmo: venha!

Vós não soubestes o que havia
No fundo incógnito da raça,
Nem como a Mão, que tudo guia,
Seus planos traça.

Mas um instinto involuntário,
Um ímpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vário
De um dom fatal.

De um rasgo de ir além de tudo,
De passar para além de Deus,
E, abandonando a gládio e o escudo,
Galgar os céus.

Titãs de Cristo! Cavaleiros
De uma cruzada além dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
São só os rastos.

Vibra, estandarte feito som.
No ar do mundo que há-de ser.
Nada pequeno é justo e bom.
Vibra a vencer!

Transcende a Grécia e a sua história
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrás Roma e a sua glória
E a Igreja sua!

Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto,
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!

Vinde todos os que sois,
Sabendo-o bem. sabendo-o mal,
Poetas, ou santos ou heróis
De Portugal!

Não foi p'ra servos que nascemos
Da Grécia, ou Roma ou de ninguém.
Tudo negámos e esquecemos:
Fomos mais além.

Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa ânsia já ciente,
Que o seu inteiro voo libra
Do poente a oriente!

Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
Com o fazer!

O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anónimo e disperso
De Osíris a Deus.

O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grécia, obscuro canta
Baco divino.

Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a luz,
Reza, ante a Cruz universal
Ao Deus Jesus.

FERNANDO PESSOA, 21 DE MARÇO DE 1934





domingo, 20 de março de 2011

FAZ HOJE 80 ANOS


Na nuvens brancas que lentam
Quando a chuva está à espera
A luz do sol faz uma orla
Que amarela e reverbera.

Parece aquele ouro que orla
Os panos para o caixão.
Salvo que as nuvens são brancas
E pretos os panos são.

Mas a verdade é a mesma
Por um mistério da vida
Por isso o ouro orla as nuvens
E os panos da despedida.

Nuvens brancas, panos negros,
Por mais que o queiram cobrir,
O mistério transparece
E orla-os de luz a sorrir.

Porque, enfim, o branco alegre
Ou o preto triste são
Cousa que o sol cria e mata
Na sua circunscrição.

FERNANDO PESSOA, 20 DE MARÇO DE 1931

FAZ HOJE 80 ANOS

Como chove! Um desalento
Faz sombras em meu coração.
Chove sem frio nem vento.
É um chover sem estação.
Faz pontos grados no chão.

E através disso o sol doura
Os pingos luzindo a vir.
Há dois tempos nesta hora.
É como estar a sorrir
Da dor que nos vai surgir.

Sim, e aperta a chuva negra.
Não há sol e é preto o chão.
Nada em mim finge que alegra
Meu fingido coração.
Chove com grande razão.

FERNANDO PESSOA, 20 DE MARÇO DE 1931

sábado, 19 de março de 2011

FAZ HOJE 100 ANOS


Tange o sino, tange,
Tange doloroso.
Cai como quer um alfange
No meu sonhar de gozo...
E o sino tange, tange
Lento e ao longe moroso.

Tange e plange, longe
Aérea melodia...
Cada som é um monge
Na sua alva fria...
Tange o sino de bronze
No escurecer que esfria.

E em mim também é escura
A tarde do meu ser
E plange em mim, na lonjura
Do meu vago esquecer
Um sino ao longe, oh agrura
De ser sempre o meu ser.

FERNANDO PESSOA, 19 DE MARÇO DE 1911