quinta-feira, 31 de agosto de 2017

FAZ HOJE 87 ANOS



É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de 'queres?'
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão o meu intuito.
Caminharei sem regressar.

FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1930


quarta-feira, 30 de agosto de 2017

FAZ HOJE 84 ANOS



Não sei se é sonho, se realidade,
Se uma mistura de sonho e vida,
Aquela terra de suavidade
Que na ilha extrema do sul se olvida.
É o que ansiamos. Ali, ali
A vida é jovem e o amor sorri.

Talvez palmares inexistentes,
Álea longínquas sem poder ser,
Sombra ou sossego dêem aos crentes
De que essa terra se pode ter.
Felizes, nós? Ah, talvez, talvez,
Naquela terra, daquela vez.

Mas já sonhada se desvirtua,
Só de pensá-la cansou pensar,
Sob os palmares, à luz da lua.
Sente-se o frio de haver luar.
Nessa terra, também, também
O mal não cessa, não dura o bem.

Não é com ilhas do fim do mundo,
Nem com palmares de sonho ou não,
Que cura a alma seu mal profundo,
Que o bem nos entra no coração.
É em nós que é tudo. É ali, ali,
Que a vida é jovem e o amor sorri.

FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933


terça-feira, 29 de agosto de 2017

FAZ HOJE 88 ANOS



DILUENTE

A vizinha do número catorze ria hoje da porta
De onde há um mês saiu o enterro do filho pequeno.
Ria naturalmente com a alma na cara.
Está certo: é a vida.
A dor não dura porque a dor não dura.
Está certo.
Repito: está certo.
Mas o meu coração não está certo.
O meu coração romântico faz enigmas do egoísmo
da vida.

Cá está a lição, ó alma da gente!
Se a mão esquece o filho que saiu dela e morreu,
Quem se vai dar ao trabalho de se lembrar de mim?
Estou só no mundo, como um pião de cair.
Posso morrer como o orvalho seca
Por uma arte natural da natureza solar.
Posso morrer à vontade da deslembrança,
Posso morrer como ninguém...
Mas isto dói,
Isto é indecente para quem tem coração
Isto...
Sim, isto fica-me nas goelas como uma sanduíche de lágrimas...
Glória? Amor? O anseio de uma alma humana?
Apoteose às avessas...
Dêem-me Água de Vidago que eu quero esquecer a vida!

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE AGOSTO DE 1929


segunda-feira, 28 de agosto de 2017

FAZ HOJE 90 ANOS





Nunca soube querer, nunca soube sentir, até
Pensar não foi certo em mim.
Deitei fora entre urtigas o que era a minha fé,
Escrevi numa página em branco, "Fim".

As princesas incógnitas ficaram desconhecidas,
Os tronos prometidos não tiveram carpinteiro,
Acumulei em mim um milhão difuso de vidas,
Mas nunca encontrei parceiro.

Por isso, se vieres, não te sentes ao meu lado, nem fales.
Só quero dormir, uma morte que seja
Uma coisa que me não rale nem com que tu te rales -
Que ninguém deseja nem não deseja.

Pus o meu Deus no prego. Embrulhei em papel pardo
As esperanças e as ambições que tive,
E hoje sou apenas um suicídio tardo,
Um desejo de dormir que ainda vive.

Mas dormir a valer, sem dignificação nenhuma,
Como um barco abandonado,
Que naufraga sozinho entre as trevas e a bruma
Sem lhe saber o passado.

E o comandante do navio que segue deveras
Entrevê na distância do mar
O fim do último representante das galeras,
Que não sabia nadar.

FERNANDO PESSOA, 28 DE AGOSTO DE 1927