quarta-feira, 29 de fevereiro de 2012

POEMA SEM DATA



Ora até que enfim..., perfeitamente...
Cá está ela!
Tenho a loucura exactamente na cabeça.


Meu coração estoirou como um bomba de pataco,
E a minha cabeça teve o sobressalto pela espinha acima...


Graças a Deus que estou doido! 
Que tudo quanto dei me voltou em lixo,
E, como cuspo atirado ao vento,
Me dispersou pela cara livre!
Que tudo quanto fui se me atou aos pés,
Como a serapilheira para embrulhar coisa nenhuma!
Que tudo quanto pensei me faz cócegas na garganta
E me faz querer vomitar sem eu ter comido nada!
Graças a Deus, porque, como na bebedeira,
Isto é uma solução-
Arre, encontrei uma solução, e foi preciso o estômago!
Encontrei uma verdade, senti-a com os intestinos


Poesia transcendental, já a fiz também!
Grandes raptos lírico, também já por cá passaram!
A organização de poemas relativos à vastidão de cada assunto resolvido em vários -
Também não é novidade.
Tenho vontade de vomitar, e de me vomitar a mim...
Tenho uma náusea que, se pudesse comer o universo para o despejar na pia, comia-o.
Com esforço, mas era para bom fim.
Ao menos era para um fim.
E assim como sou não tenho nem fim nem vida...


ÁLVARO DE CAMPOS

terça-feira, 28 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 83 ANOS



ABAT JOUR

A lâmpada acesa
(Outrem a acendeu)
Baixa uma beleza
Sobre o chão que é meu.

No quarto deserto
Salvo o meu sonhar,
Faz no chão incerto
Um círculo a ondear.

E entre a sombra e a luz
Que oscila no chão
Meu sonho conduz
Minha inatenção.

Bem sei... Era dia
E longe daqui...
Quanto me sorria
O que nunca vi!

E no quarto silente
Com a luz a ondear
Deixei vagamente
Até de sonhar...

FERNANDO PESSOA, 28 DE FEVEREIRO DE 1929

segunda-feira, 27 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS




O POENTE

A hora é de cinza e de fogo.
Eu morro-a dentro de mim.
Deixemos a crença em rogo,
Saibamos sentir-nos Fim.

Não me toques, fales, olhes...
Distrai-te de eu 'star aqui.
Quero que antes desfolhes
A minha idéia de ti...

Quero despir-me de ter-te,
Quero morrer-me de amar-te.
Tua presença converte
Meu esquecer-te em odiar-te.

Quero estar só nesta hora...
Sem Tragédia... Frente a frente
Com a minha alma que chora
Sob o céu indiferente,

Basta estar, sem que haja ao lado
Exterior da minha alma
Meu saber-te ali, irado
De ti, mancha nesta calma

Ânsia de me não possuir,
De me não ter mais que meu,
De me deixar esvair
Pela indiferença do céu.


FERNANDO PESSOA, 27 DE FEVEREIRO DE 1913

domingo, 26 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 92 ANOS




Revive ainda um momento
Na 'sperança que perdi,
Flor do meu pensamento,
Hálito do que morri...

Inútil, irreal sorriso
Na penumbra de pensar...
Eu da vida que preciso?
O sonho com que a negar.

Vago luar de promessa,
Resto de sombra a morrer
Na antemanhã que começa
Ah, ter-te, e nunca viver.


FERNANDO PESSOA, 26 DE FEVEREIRO DE 1920

sábado, 25 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS




A MARINHA

Mas o vento do Norte,
O vento do norte cheio de espuma e frio
Soprou sobre a tua sorte e sobre a minha sorte
E a nossa sorte, como uma areia levada, fugiu.
Perdeu-se na noite,
Perdeu-se na noite e no longe com o vento a soprar
E só fica na minha memória a memória do açoite
Do vento na noite que levou a minh'alma a uivar, a uivar...

Pela praia nocturna, meu amor perdido, pela praia...
Pela praia nocturna sob um céu sem lua e sem calma
Nós demos as mãos
E esquecemos a vida, e o mundo, a nossa própria alma...
O som do mar embalava, o seu ruído brusco perdia
A rudeza, o ser só exterior, vinha aureolar
Aquilo invisível em nós que nos alava e prendia
E o resto era a noite longínqua e o suspiro do mar.

Passamos por tantas terras dentro das emoções!
Buscamos tão órfãos a porta e a mãe da nossa alma!
Mas as mãos que se tinham presas sentiram os corações
Acharam-se no nosso silêncio e na noite talvez calma.

Nós éramos o Amor. Fora de nós o oceano
Levou na noite de trás para diante o sossego do ruído
Que tarda como nós, mas não morre, embalou o meu engano
Que era certo agora em nós e no nosso absorto sentido.

Sempre estava connosco salvo a abdicação do mundo
Que toca na alma na noite e no céu e no mar
Mas o nosso amor era uma ilha no oceano sem fundo
Do consolo da vida, das ondas lá longe e do vento a esperar.

Nada jurámos.A alma era tudo, o corpo da hora
Velou-se na sombra da noite absoluta e no mar que tremia...
Quem havia além de nós com alma e com vida agora?
Fora de nós de quente e humano e certo, o que havia?

Não tínhamos vivido antes daquele momento
Antes tinha sido o nosso corpo e a nossa alma...
Vindo de uma outra bando o nosso pensamento
Que era uma calma morte e a dita da noite sem calma.

Tudo pensámos menos o amor, e só ela havia...
Cada um era só ele; o outro não era preciso...
As mãos tornando-se leves na alma que não as sentia
E tudo estava em cada um por ser o outro, o indeciso...

Pela primeira vez nada sobrava ou faltava -
Pela primeira vez nada era aos nossos pés
Nada era nada sobre o não que ali estava
Pela primeira vez, pela primeira vez

Uma pessoa impossível feita de morte dos dois
Passeava sozinha, era o nada tudo, ali na areia...
E o mundo era uma ilusão, com seus dias e com seus sóis,
E a alma era falsa com a sua dor e a alegria em que anseia.

Não bem alma, não bem vida,apenas amor...
Não bem nós, nem o mundo, uma outra coisa real...
E o espaço vazio em que isso era verdadeiro, um sabor
A unidade suprema, além do bem e do mal.

FERNANDO PESSOA, 25 DE FEVEREIRO DE 1917



sexta-feira, 24 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS



Estendo os braços para ti...
A noite cai nas nossas mãos...
Nós éramos melhor que irmãos
Na outra vida que vivi.

Teus girassóis eram na alma...
Os teus tanques nos gestos teus...
Tu inclinavas-te p'ra Deus
E a noite era uma grande palma...

Perdi-te quando me encontrei...
Não quis a vida que me deram...
Nossos beijos de outrora eram
Segundo uma divina lei...

Aparecias entre véus...
Passavas entre o trigo e a tarde...
Inda no meu coração arde
O poente que nos dera Deus...

Deixa que eu peça a Deus por ti
Para que venhas algum dia
Quando a vida estiver vazia
E eu chore o muito que vivi.

Então talvez de entre palmeiras
Tua presença abra em flor
Caminharás no meu amor
Como uma brisa por bandeiras.

Água nas cascatas desfeitas
Do meu sorriso enternecido...
Serás o íntimo sentido
Das nossas horas mais perfeitas...

Lua subindo no horizonte
Da minha imagem de ti
A tua vida estrelas e
Tantas estrelas que em vão conte.

Em teu torno, halo misterioso,
Sete planetas com anéis...
Seguindo como (...) fiéis
O teu advento silencioso.

E a vida longe, como um belo
Manto deixado em desvario...
Nós indo p'ra o Castelo Esguio
E Deus saliente do Castelo.

FERNANDO PESSOA, 24 DE FEVEREIRO, DE 1915


quinta-feira, 23 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS


SEGUNDO GRAU

Há um frio e um vácuo no ar.
'Stá sobre tudo a pairar,
Cinzento-preto, o luar.


Luar triste de antemanhã
De outro dia e sua vã
'Sperança e inútil afã.

É como a morte de alguém
Que era tudo que a alma tem
E que não era ninguém.

Absurdo erro disperso
No 'spaço, água onde é imerso
O cadáver do universo.

É como o meu coração
Nulo e pleno, vasto e vão,
Na antemanhã da visão.

FERNANDO PESSOA, 23 DE FEVEREIRO DE 1932

quarta-feira, 22 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS




Tudo me cansa. Nada me consola.
O que fiz fi-lo em vão.
Tu, tocando arranjos de viola
Dás-me uma outra emoção.

Não me viste, mas vieste. Isso me basta.
Toca sem dor nem fim.
E a tua música, vazia, contrasta
Com o pleno de mim.

Quanto levantes baixa-me, mas antes
Quero eu teu soluçar
Que a vida toda com os seus cambiantes
De dormir sem sonhar.


FERNANDO PESSOA, 22 DE FEVEREIRO DE 1934

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS






Não foram as horas que nós perdemos,
Nem o comboio que não chegou.
Foi só o barco e o gesto dos remos
E a triste vida que já passou.

Tudo nos dava a impressão de havermos
Entre travessas errado a rua,
E não acharmos o amor, nem termos
Para a tristeza senão a Lua...

Tudo isso foi como se não fosse...
Antes tivesse durado menos...
Enfim, que importa? Não há a posse...
E os céus eternos só são serenos...


FERNANDO PESSOA, 21 DE FEVEREIRO 
DE 1915

segunda-feira, 20 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 84 ANOS




Pesa a sentença atroz do algoz ignoto
Em cada cerviz néscia. É entrudo e riem.
Felizes, porque neles pensa e sente
A vida, e não eles.
De rosas, inda que falsas,teçam
Capelas veras. Breve e vão é o tempo
Que lhes é dado, e por misericórdia
Breve nem vão sentido.
Se a ciência é vida, sábio é só o néscio.
Quão pouco diferença a mente interna
Do homem da dos brutos! Sus! Deixai
Brincar os moribundos!


RICARDO REIS, 20 DE FEVEREIRO DE 1928

domingo, 19 de fevereiro de 2012

POEMA SEM DATA



DOBRADA À MODA DO PORTO


Um dia num restaurante, fora do espaço e do tempo,
Serviram-me o amor como dobrada fria.
Disse delicadamente ao missionário da cozinha
Que a preferia quente,
Que a dobrada (e era à moda do Porto) nunca se come fria.


Impacientaram-se comigo.
Nunca se pode ter razão, nem num restaurante.
Não comi, não pedi outra coisa, paguei a conta,
E vim passear para toda a rua.


Quem sabe o que isto quer dizer?
Eu não sei, e foi comigo...


(Sei muito bem que na infância de toda a gente houve um jardim,
Particular ou público, ou do vizinho.
Sei muito bem que brincarmos era o dono dele.
E que a tristeza é de hoje.)


Sei isso muitas vezes,
Mas se eu pedi amor, por que é que me trouxeram
Dobrada à moda do Porto fria?
Não é prato que se possa comer frio,
Mas trouxeram-mo frio.
Não me queixei, mas estava frio.


ÁLVARO DE CAMPOS



sábado, 18 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 92 ANOS



Noite, ouvir-te o silêncio é ver o mar.
Uma calma desce em mim
E vem com ondas frescas alargar
O meu tédio sem fim.


FERNANDO PESSOA, 18 DE FEVEREIRO DE 1920

sexta-feira, 17 de fevereiro de 2012

POEMA SEM DATA



Foi numa das minhas viagens...
Era mar-alto e luar...
Cessara o ruído da noite a bordo.
Um a um grupo a grupo, recolheram-se os passageiros,
A banda era só uma estante que ficara a um canto não sei porquê...
Só na sala de fumo em silêncio jogava xadrez...
A vida soava pela porta aberta para a casa das máquinas...
Só...E um era uma alma nua diante do Universo...
(Ó minha vila natal em Portugal tão longe!
Porque não morri eu em criança quando só te conhecia a ti?)


Ah, quando nos fazemos ao mar
Quando largamos da terra, quando a vamos perdendo de vista,
Quando tudo se vai enchendo de vento puramente marítimo,
Quando a costa se torna uma linha sombria,
Nessa linha cada vez mais vaga ao anoitecer (pairam luzes) -
Ah então que alegria de liberdade para quem se sente.
Cessa de haver razão para existir socialmente.
Não há já razões para amar, odiar, dever,
Não há já leis, não há mágoas que tenham sabor humano...
Há só a Partida Abstracta, o movimento das águas
O movimento de afastamento, o som
Das ondas arrulhando a proa,
E uma grande paz intranquila entrando suave, no espírito.
Ah ter toda a minha vida
Fixa instavelmente num momento destes,
Ter todo o sentido da minha duração sobre a terra
Tornado num afastamento dessa costa onde deixei tudo -
Amores, irritações, tristezas, cumplicidades, deveres,
A angústia irrequieta dos remorsos,
A fadiga da inutilidade de tudo,
A saciedade até das coisas imaginadas,
A náusea, as luzes,
As pálpebras pesadas sobre a minha vida perdida...


Irei pra longe, pra longe! Pra longe, ó barco sem causa,
Para a irresponsabilidade pré-histórica das águas eternas,
Para longe, pra sempre para longe, ó morte.
Quando souber onde para longe e porque para longe, ó vida...


ÁLVARO DE CAMPOS



quinta-feira, 16 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 92 ANOS




Onde pus a esperança, as rosas
Murcharam logo.
Na casa, onde fui habitar,
O jardim, que eu amei por ser
Ali o melhor lugar,
E por quem essa casa amei -
Deserto o achei,
E, quando o tive, sem razão p'ra o ter.

Onde pus a afeição, secou
A fonte logo.
Da floresta, que fui buscar
Por essa fonte ali tecer
Seu canto de rezar -
Quando na sombra penetrei,
Só o lugar achei
Da fonte seca, inútil de se ter.

P'ra quê, pois, afeição, 'sperança,
Se perco, logo
Que as uso, a causa p'ra as usar,
Se tê-las sabe a não as ter?
Crer ou amar -
Até à raiz, do peito onde alberguei
Tais sonhos e os gozei,
O vento arranque e leve onde quiser
E eu os não possa achar!


FERNANDO PESSOA, 16 DE FEVEREIRO DE 1920

quarta-feira, 15 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS



MEIA - NOITE


As louras e pálidas crianças
- Dlon...
Desprendem a chorar suas tranças
- Dlon...

Quem nos dirá donde é esse pranto
- Dlon...
Sabê-lo tirar-lhe-ia o encanto
Dlon...
Que fique sempre como elas vago
- Dlon...
Folhas caídas à tona do lago
- Dlon...
Que nos inspire e o não percebamos
- Dlon...
Que só se sinta em nós que o amamos
- Dlon...
Que seja para nós som de fonte
- Dlon...
Que seja o mistério do horizonte
- ,Dlon...
Tristeza que dorme em vale e monte
- Dlon...
Tristeza vaga, dor, vago som
- Dlon...


FERNANDO PESSOA, 15 DE FEVEREIRO DE 1912

terça-feira, 14 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 79 ANOS




Para ser grande sê inteiro:nada
Teu exagera ou exclui.
Sê todo em cada coisa. Põe quanto és
No mínimo que fazes.
Assim em cada lago a lua toda
Brilha, porque alta vive.


RICARDO REIS, 14 DE FEVEREIRO DE 1933


segunda-feira, 13 de fevereiro de 2012

FAZ ESTE MÊS 98 ANOS

PAUIS


Pauis de roçarem ânsias pela minh'alma em ouro...
Dobre longínquo de Outros Sinos... Empalidece o louro
Trigo na cinza do poente... Corre um frio carnal por minh'alma...
Tão sempre a mesma, a Hora!... Baloiçar de cimos de palma...
Silêncio que as folhas fitam em nós... Outono delgado
Dum canto de vaga ave... Azul esquecido em estagnado...
Oh que mudo grito de ânsia põe garras na Hora!
Que pasmo de mim anseia por outra cousa que o que chora!
Estendo as mãos para além, mas ao estende-las já vejo
Que não é aquilo que quero aquilo que desejo...
Címbalos de Imperfeição... Ó tão antiguidade
A Hora expulsa de si-Tempo!...Onda de recuo que invade
O meu abandonar-me a mim próprio até desfalecer,
E recordar tanto o Eu presente que me sinto esquecer!...
Fluido de auréola, transparente de Foi, oco de ter-se...
O Mistério sabe-me a eu ser outro...  Luar sobre o não conter-se...
A sentinela é hirta - a lança que finca no chão
É mais alta que ela... Pra  que é tudo isto?...Dia chão...
Trepadeira de despropósito  lambendo de Hora os Aléns...
Horizontes fechando os olhos ao espaço em que são elos de erro...
Fanfarras de ópios de silêncios futuros... Longes trens...
Portões vistos de longe... através das árvores... tão de ferro!...


FERNANDO PESSOA, FEVEREIRO DE 1914




domingo, 12 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 97 ANOS




Não batas palmas diante a beleza.
Não se sente a beleza demasiado.
Saibamos como os deuses
Sentir divinamente.
Ao ver o belo, lembra-te que morre.
E que a tristeza desse pensamento
Torne elevada e calma
A tua admiração.
E se é estátua ou de Píndaro alta estrofe
Em quem teus olhos vão abandonados
Não te esqueças que essa
Beleza não é viva.
Sempre ao belo alguma coisa há-de faltar
Para que seja triste contemplá-lo
E que nunca se possa
Bater palmas ao vê-lo...
Calma é a beleza. Ama-a calmamente.
Os dons dos deuses como um deus aceita
E terás tua parte
Do néctar dado aos calmos.


RICARDO REIS,12 DE FEVEREIRO DE 1915

sábado, 11 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 100 ANOS



SONETO


Tudo quanto é beleza tu conténs
E quanto de amor há, que o tem nela,
No indefinido sentimento dela:
Tudo isso há em ti, e tu és e  manténs.


A vida com seu vago (...) bens
E o mundo de consciência que  revela
Tudo se inclui em ti, inda que se vela
O não poder-te ter, tudo que tens.


Amo-te por amar-te desprezando-me
E o meu desprezo fere o meu amor
De um sentimento tão total de dor


Que a dor pode ser um sentimento, dando-me
Mais sentir faz-me mais sentir no querer-te
No não poder querer poder obter-te.


FERNANDO PESSOA, 11 DE FEVEREIRO DE 1912

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 95 ANOS



Na sombra e no frio da noite os meus sonhos jazem.
Um frio maior cresce do abismo, e decresce.
Toca-me o coração de dentro a Mão que conhece.
As estrelas sobem. Por cima de mim se desfazem.
Ah, de que serve o sonho? O que acontece
Não é o que nós queremos, mas o que os Deuses fazem.


O silêncio oscila. Na inércia da hora paira
Um murmúrio ansioso de sombra.


A minha vontade é um acto alheio, um gesto visível
A olhos para quem o mundo visível é o que nós não vemos.


De que braço é todo o meus ser um só gesto abstracto?
Que movimentos no ar são as minhas acções queridas?
Falta ao meu senso de mim um ajuste e um tacto.


Jaz no chão com meus sonhos a cinza de todas as vidas.


FERNANDO PESSOA, 10 DE FEVEREIRO, DE 1917

quinta-feira, 9 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 92 ANOS




Não creio ainda no que sinto -
Teus beijos, meu amor, que são
A aurora ao fundo do recinto
Do meu sentido coração...

Não creio ainda nessa boca
Que, por tua alma em beijos dada,
Na minha boca estaca e toca
E ali (...) fica parada.

Não creio ainda. Poderia
Acaso a mim acontecer
Tu, e teus beijos, e a alegria?
Tudo isso é, e não pode ser.

FERNANDO PESSOA, 9 DE FEVEREIRO DE 1920

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 99 ANOS




A VOZ DE DEUS

"Com dia teço a noite
Com noite escrevo o dia...
Ó Universo, eu sou-te!"
(Sombra de luz na bruma fria,
Que é este archote?
Que mão o tem e o guia?)

"Não me chamo o meu nome...
Sou de ti, mundo-não,
Ser mente em ti, eu sou-me"
(De quem é esta voz-clarão?
D'O que tem por cognome
O ser da imensidão).



FERNANDO PESSOA, 8 DE FEVEREIRO DE 1913

terça-feira, 7 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 80 ANOS


O dia 'splende, luminoso e vasto.
O grande rio é mar; quem o vê rio?
Com o que vejo quem eu sou contrasto,
E aqui onde há calor, 'stou onde há frio.

Desde que existo, vivo dividido
Entre três seres, em que iguais estou:
O meu ser, o meu ser que tenho sido
E o verdadeiro ser que nunca sou.

Quantas traições e desentendimentos
Entre estes meus três seres descobri!
E eu assisti a tudo, como a estradas,
Que, veículos deles, percorri.

Hoje que, alheio a tudo e a mim mesmo,
Posso, à luz deste dia vasto e rico,
Verificar que fui um ser a esmo,
É ainda a esmo que o verifico.

Não tenho cura: tudo quanto fui
É quanto eu hei-de ser, sem outra pele.
Sem saber de fluir, o rio flui.
Sei que fluo, mas fluo como êle.


FERNANDO PESSOA, 7 DE FEVEREIRO DE 1932

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

FAZ HOJE 78 ANOS






Por que choras do que existe
A terra e o que a terra tem?
Tudo nosso - mal ou bem -
É fictício e só persiste
Porque a alma aqui é ninguém.

Não chores! Tudo é o nada
Onde os astros luzes são.
Tudo é lei e confusão.
Toma este mundo por 'strada
E vai como os santos vão.

Levantado de onde lavra
O inferno, em que somos réus
Sob o silêncio dos céus,
Encontrarás a Palavra,
O nome interno de Deus.

E, além da dupla unidade
Do que em dois sexos mistura
A ventura e a desventura,
O sonho e a realidade,
Serás quem já não procura;

Porque, limpo do universo,
Em Cristo Nosso Senhor,
Por sua verdade e amor,
Reunirás o disperso
E a Cruz abrirá em flor.


FERNANDO PESSOA 6 DE FEVEREIRO DE 1934