domingo, 31 de agosto de 2014

FAZ HOJE 84 ANOS




É boa! Se fossem malmequeres!
E é uma papoula
Sozinha, com esse ar de 'queres?'
Veludo da natureza tola.

Coitada!
Por ela
Saí da marcha pela estrada.
Não a ponho na lapela.

Oscila ao leve vento, muito
Encarnada a arroxear.
Deixei no chão o meu intuito.
Caminharei sem regressar.

FERNANDO PESSOA, 31 DE AGOSTO DE 1930


sábado, 30 de agosto de 2014

FAZ HOJE 81 ANOS



No sono antes do sono,
No sonho sem sonhar,
Passam em abandono
Sombras, formas sem dono,
Que surgem a acabar.

É um mito do interlúdio
Que há entre a vida e a vida.
Meu mal sonhar ilude-o.
Minha dor esquecida
Não sabe quem a olvida.

E, assim, entre entre e entre,
Dos sonhos que vou tendo,
Como um japão excentre,
Abro a sorrir o ventre,
E morro, o ventre vendo.


FERNANDO PESSOA, 30 DE AGOSTO DE 1933


sexta-feira, 29 de agosto de 2014

FAZ HOJE 99 ANOS




Bocas roxas de vinho
Testas brancas sob rosas,
Nus, brancos antebraços
Deixados sobre a mesa:

Tal seja, Lídia, o quadro
Em que fiquemos, mudos,
Eternamente inscritos
Na consciência dos deuses.

Antes isto que a vida
Como os homens a vivem,
Cheia da negra poeira
Que erguem das estradas.

Só os deuses socorrem
Com seu exemplo aqueles
Que nada mais pretendem
Que ir no rio das coisas.

RICARDO REIS, 29 DE AGOSTO DE 1915


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

FAZ HOJE 79 ANOS



O sono que desce sobre mim,
O sono mental que desce fisicamente sobre mim,
O sono universal que desce individualmente sobre mim -
Esse sono
Parecerá aos outros o sono de dormir,
O sono da vontade de dormir,
O sono de ser sono.

Mas é mais, mais de dentro, mais de cima:
É o sono da soma de todas as desilusões,
É o sono da síntese de todas as desesperanças,
É o sono de haver mundo comigo lá dentro
Sem que eu houvesse contribuído em nada para isso.

O sono que desce sobre mim
É contudo como todos os sonos.
O cansaço tem ao menos brandura,
O abatimento tem ao menos sossego,
A rendição é ao menos o fim do esforço,
O fim é ao menos o já não haver que esperar.

Há um som de abrir uma janela,
Viro indiferente a cabeça para a esquerda
Por sobre o ombro que a sente,
Olho pela janela entreaberta:
A rapariga do segundo-andar de defronte
Debruça-se com os olhos azuis à procura de alguém.
De quem?,
Pergunta a minha indiferença.
E tudo isso é sono.

Meu Deus, tanto sono!...

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE AGOSTO DE 1935