sexta-feira, 31 de julho de 2020

FAZ HOJE 85 ANOS



O REI

O rei, cuja coroa de oiro é luz
Fita do alto trono os seus mesquinhos.
Ao meu Rei, coroaram-n'O de espinhos
E por trono lhe deram uma cruz.

O olhar fito do Rei a si conduz
Os olhares ansiosos e sozinhos.
Mas mais me fitam, e mortas sem carinhos,
Essas pálpebras mortas de Jesus.

O Rei fala, e o seu gesto tudo preenche,
O som da sua voz tudo transmuda.
Meu Rei morto tem mais que majestade:
Diz-me a verdade aquela boca muda,
E essas mãos presas dão-me a Liberdade.

FERNANDO PESSOA, 31 DE JULHO DE 1935

quinta-feira, 30 de julho de 2020

FAZ HOJE 106 ANOS




Cada coisa a seu tempo tem seu tempo.
Não florescem no inverno os arvoredos,
Nem pela primavera
Têm branco frio os campos.
À noite, que entra, não pertence, Lídia,
O mesmo ardor que o dia nos pedia.
Com mais sossego amemos
A nossa incerta vida.
À lareira, cansados não da obra
Mas porque a hora é a hora dos cansaços,
Não puxemos a voz
Acima de um segredo
E casuais, interrompidas sejam
Nossas palavras de reminiscência
(Não para mais nos serve
A negra ida do sol),
Pouco a pouco o passado recordemos
E as histórias contadas no passado
Agora duas vezes
Histórias, que nos falem
Das flores que na nossa infância ida
Com outra consciência nós colhíamos
E sob uma outra espécie
De olhar lançado ao mundo.
E assim, Lídia, à lareira, como estando,
Deuses lares, ali na eternidade,
Como quem compõe roupa
O outrora componhamos
Nesse desassossego que o descanso
Nos traz às vidas quando só pensamos
Naquilo que já fomos
E há noite lá fora.

RICARDO REIS, 30 DE JULHO DE 1914

quarta-feira, 29 de julho de 2020

FAZ HOJE 96 ANOS




O ANDAIME

O tempo que eu hei sonhado
Quantos anos foi de vida!
Ah, quanto do meu passado
Foi só a vida mentida
De um futuro imaginado!

Aqui à beira do rio
Sossego sem ter razão.
Este seu correr vazio
Figura, anónimo e frio,
A vida vivida em vão.

A 'sprança que pouco alcança!
Que desejo vale o ensejo?
E uma bola de criança
Sobe mais que a minha 'sprança
Rola mais que o meu desejo.

Ondas do rio, tão leves
Que não sois ondas sequer,
Horas, dias, anos, breves
Passam - verduras ou neves
Que o mesmo sol faz morrer.

Gastei tudo que não tinha.
Sou mais velho do que sou.
A ilusão, que me mantinha,
Só no palco era rainha:
Despiu-se, e o reino acabou.

Leve som das águas lentas,
Gulosas da margem ida,
Que lembranças sonolentas
De esperanças nevoentas!
Que sonhos o sonho e a vida!

Que fiz de mim? Encontrei-me
Quando estava já perdido.
Impaciente deixei-me
Como a um louco que teime
No que lhe foi desmentido.

Som morto das águas mansas
Que correm por ter que ser,
Leva não só as lembranças
Mas as mortas esperanças -
Mortas, porque hão-de morrer.

Sou já o morto futuro.
Só um sonho me liga a mim -
O sonho atrasado e obscuro
Do que eu devera ser - muro
Do meu deserto jardim.

Ondas passadas, levai-me
Para o olvido do mar!
Ao que não serei legai-me,
Que cerquei com um andaime
A casa por fabricar.

FERNANDO PESSOA, 29 DE JULHO DE 1924

terça-feira, 28 de julho de 2020

FAZ HOJE 85 ANOS




A OUTRA

Amamos sempre no que temos
O que não temos quando amamos.
O barco pára, largo os remos
E, um a outro, as mãos nos damos.
A quem dou as mãos?
À Outra.

Teus beijos são mel de boca,
São os que sempre pensei dar,
E agora a minha boca toca
A boca que eu sonhei beijar.
De quem é a boca?
Da Outra.

Os remos já caíram na água,
O barco faz o que a água quer.
Meus braços vingam minha mágoa
No abraço que enfim podemos ter.
Quem abraço?
A Outra.

Bem sei, és bela, és quem desejo...
Não deixa a vida que eu deseje
Mais que o que pode ser teu beijo
E poder ser eu que te beije.
Beijo, e em quem penso?
Na Outra.

Os remos vão perdidos já,
O barco vai não sei para onde.
Que fresco o teu sorriso está,
Ah, meu amor, e o que ele esconde!
Que é do sorriso?
Da Outra.

Ah, talvez mortos ambos nós,
Num outro rio sem lugar
Em outro barco outra vez sós
Poderemos recomeçar.
Que talvez sejas
A Outra.

Mas não, nem onde essa paisagem
É sob eterna luz eterna
Te acharei mais que alguém em viagem
Que amei com ansiedade terna
Por ser parecida
Com a Outra.

Ah, por ora, idos remos e rumo,
Dá-me as mãos, a boca, teu ser.
Façamos desta hora um resumo
Do que não poderemos ter.
Nesta hora, a única,
Sê a Outra!

FERNANDO PESSOA, 28 DE JULHO DE 1935

segunda-feira, 27 de julho de 2020

FAZ HOJE 95 ANOS



Que triste, à noite, no passar do vento,
O transvasar da imensa solidão
Para dentro do nosso coração,
Por sobre todo o nosso pensamento.

No sossego sem paz se ergue o lamento
Como da universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são
Sentinelas do nosso isolamento.

'Stamos sós com a treva e a voz do nada.
Tudo quanto perdemos mais perdemos.
De nós aos que se foram não há 'strada.

O vácuo encarna em nós, na vida; e os céus
São uma dúvida certa que vivemos.
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.

II

'Stou só. A atra distância, que infinita
A alma separa de outra, se alargou.
Em mim, porém, meu ser se unificou.
Sou um universo morto que medita.

Se estendo a mão na solidão aflita,
Nada há entre ela e aquilo que tocou.
Satélite de um astro que findou,
Rodeio o abismo, 'strela erma e maldita.

Não há porta no cárcere sem fim
Em que me vivo preso. Nunca houve
Porta neste meu ser que finda em mim.

Vivo até no passado a solidão.
Na erma noite agora o vento chove
E um novo nada enche-me o coração...

FERNANDO PESSOA, 27 DE JULHO DE 1925

domingo, 26 de julho de 2020

FAZ HOJE 125 ANOS



À minha querida Mamã

Ó terras de Portugal
Ò terras onde eu nasci
Por muito que goste delas
Inda gosto mais de ti.

FERNANDO PESSOA, 26 DE JULHO DE 1895

(Nota: o Poeta tinha apenas 7 anos!)

sexta-feira, 24 de julho de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS




Minha vida tem sido, em suma,
Reles e obscura,
Sem ventura nem desventura,
Sombras de trapos na bruma.

Como um caixeiro tenho ficado
A um balcão nulo,
Como acontece isto ao amante Catulo
Nem a poeta, conselheiro de Estado.

Até quando me amaram
Parece que me ofendiam.
Do casaco de gente com que me albardaram
Até os botões caíam.

Hoje estou calmo, um pouco certo,
Um tanto ou quanto já eu
E olho, passado, o portão aberto,
Mas digo sempre: 'não é meu'.


FERNANDO PESSOA, 24 DE JULHO DE 1931

quinta-feira, 23 de julho de 2020

FAZ HOJE 109 ANOS



Ondas no mar da vida,
Cada onda só é
Uma cousa vivida
Pelo olhar que a vê...
Só o olhar a separa
Do mar em que ela é nula
Nem sequer a onda pára
Senão no olhar que isola
O seu momento e uno
Ser e deixar de ser
No erróneo e oportuno
Julgá-la entre (...)



FERNANDO PESSOA, 23 DE JULHO DE 1911

quarta-feira, 22 de julho de 2020

FAZ HOJE 95 ANOS




Que triste, à noite, no passar do vento,
O transvasar da imensa solidão
Para dentro do nosso coração,
Por sobre todo o nosso pensamento.

No sossego sem paz se ergue o lamento
Como de universal desolação,
E o mistério, e o abismo e a morte são
Sentinelas do nosso isolamento.

"Stamos sós com a treva e a voz do nada.
Tudo quanto perdemos mais perdemos.
De nós aos que se foram não há "strada.

O vácuo incarna em nós, na vida; e os céus
São uma dúvida certa que vivemos.
Tudo é abismo e noite. Morreu Deus.

II

"Stou só. A atra distância, que infinita
A alma separa de outra, se alargou.
Em mim, porém, meu ser se unificou.
Sou um universo morto que medita.

Se estendo a mão na solidão aflita,
Nada há entre ela e aquilo que tocou.
Satélite de um astro que findou,
Rodeio o abismo, "strela erma e maldita.

Não há porta no cárcere sem fim
Em que me vivo preso. Nunca houve
Porta neste meu ser que finda em mim.

Vivo até no passado a solidão.
Na erma noite agora o vento chove
E um novo nada enche-me o coração...

III

Evoco em vão lembranças comovidas -
Quadros, afectos, rostos e ilusões
São pó - pó frio, cinza sem visões,
E são vidas ou cousas já vividas.

Quê? Até do passado sinto vivas
As cousas que fui eu. Que solidões
Me sinto!

E, sem orgulho de ser todo o Inferno
E vivo em mim a angústia insuperável
Do ermo que se sente vácuo e eterno.

FERNANDO PESSOA, 22 DE JULHO DE 1925

terça-feira, 21 de julho de 2020

FAZ HOJE 107 ANOS



Deu-me Deus o seu gládio porque eu faça
A sua santa guerra.
Sagrou-me seu em honra e em desgraça,
Às horas em que um frio vento passa
Por sobre a fria terra.

Pôs-me as mãos sobre os ombros e doirou-me
A fronte com o olhar;
E esta febre de Além, que me consome,
E este querer grandeza são seu nome
Dentro em mim a vibrar.

E eu vou, e a luz do gládio erguido dá
Em minha face calma.
Cheio de Deus, não temo o que virá,
Pois, venha o que vier, nunca será
Maior do que a minha alma.

FERNANDO PESSOA, 21 DE JULHO DE 1913

segunda-feira, 20 de julho de 2020

FAZ HOJE 107 ANOS


Ó praia de pescadores,
Neste pleno dia mole...
Acalmam todas as dores
Quando se estendem ao sol.

Procuro sereno o jeito
De receber toda a luz
E esta praia onde me deito
É quente e macia cruz.

Como uma vela ou uma rede
Ou numa vela deitado
E acalma em mim toda a sede
De me querer sossegado...

E ali p'ra além dos meus pés
Ruge o mar próximo e eterno...
Tenho toda a alma rés-vés
De um vago sorriso terno

Que envolve em oca bondade
O céu vazio que fito
Se relembro, é sem saudade...
E adormeço se medito...

Até que sob mim a areia
É mar e eu sinto embalar-me
O som bom da maré cheia
A trazer-me e a levar-me.

E barco do nulo sorvo
Com todo o corpo o saber
Que o sentir-me não é estorvo
A sentir ou nada ser.

E de tanto olhar o céu
Sinto-me ele - o sol me doura.
Tiro o ser eu como a um véu
E estou para fora da Hora...

FERNANDO PESSOA, 20 DE JULHO DE 1913

domingo, 19 de julho de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS




Vendi-me de graça aos casuais do encontro.
Amei onde achei, um pouco por esquecimento.
Fui saltando de intervalo em intervalo
E assim cheguei onde cheguei na vida.

Hoje, recordando o passado
Não encontro nele senão quem não fui...
A criança inconsciente na casa que cessaria,
A criança maior errante na casa das tias já mortas,
O adolescente inconsciente ao cuidado do primo padre tratado por tio,
O adolescente maior enviado para o estrangeiro (mania do tutor novo).
O jovem inconsciente estudando na Escócia, estudando na Escócia...
O jovem inconsciente já homem cansado de estudar na Escócia.
O homem inconsciente tão diverso e tão estúpido de depois...
Não tendo nada de comum com o que foi,
Não tendo nada de igual com o que penso,
Não tendo nada de comum com o que poderia ter sido.
Eu...
Vendi-me de graça e deram-me feijões por troco -
Os feijões dos jogos de mesa da minha infância varrida.




ÁLVARO DE CAMPOS, 19 DE JULHO DE 1930

sábado, 18 de julho de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS



Por tantos e tão ásperos caminhos!
Por tanta infiel vereda,
Que para os pés tinha só pedras duras,
Pedras e espinhos,
Em vez de aquela areia, como seda,
Que os sonhos dão às venturas...

Por tantos e tão ásperos caminhos
Cheguei aqui, inútil e perdido,
Sem razão de aqui estar ou por que ser...
Somos todos sozinhos...
Mas no meu coração tenho o sentido
De aquilo, o outro, que quis ter.

Por tantos e tão ásperos caminhos!...
Morreram as princesas de balada,
Os bobos choram quedos...
Que foi da festa por detrás dos moinhos?
E a princesa encantada -
Porque é que a sua mão me larga os' dedos?


FERNANDO PESSOA, 18 DE JULHO DE 1934

sexta-feira, 17 de julho de 2020

FAZ HOJE 106 ANOS




Não consentem os deuses mais que a vida.
Por isso, Lídia, duradouramente
Façamos-lhe a vontade
Ao sol e entre as flores.
Camaleões pousados na Natura
Tomemos sua calma e alegria
Por cor da nossa vida,
Por um jeito do corpo.
Como vidros às luzes transparentes
E deixando cair a chuva triste,
Só mornos ao sol quente;
E reflectindo um pouco.

RICARDO REIS, 17 DE JULHO DE 1914

quinta-feira, 16 de julho de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS




Tenho em mim como uma bruma
Que nada é nem contém
A saudade de coisa nenhuma,
O desejo de qualquer bem.

Sou envolvido por ela
Como por um nevoeiro
E vejo luzir a última estrela
Por cima da ponta do meu cinzeiro.

Fumei a vida. Que incerto
Tudo quanto vi ou li!
E todo o mundo é um grande livro aberto
Que em ignorada língua me sorri.

FERNANDO PESSOA, 16 DE JULHO DE 1934