quinta-feira, 30 de junho de 2011

FAZ HOJE 97 ANOS





DOIS EXCERTOS DE ODES
(fins de duas odes, naturalmente)


I




Vem, noite antiquíssima e idêntica,
Noite Rainha nascida destronada,
Noite igual por dentro ao silêncio, Noite
Com as estrelas lantejoulas rápidas
No teu vestido franjado de infinito.


Vem,  vagamente,
Vem, levemente,
Vem sozinha, solene, com as mãos caídas
Ao teu lado, vem
E traz os montes longínquos para ao pé das árvores próximas,
Funde num campo teu, todos os campos que vejo,
Faze da montanha um bloco só do teu corpo,
Apaga-lhes todas as diferenças que de longe eu vejo
Todas as estradas que a sobem,
Todas as várias árvores que a fazem verde-escuro ao longe,
Todas as casas brancas e com fumo entre as árvores,
E deixa só uma luz, e outra luz e mais outra,
Na distância imprecisa e vagamente perturbadora,
Na distância subitamente impossível de percorrer.


Nossa Senhora
Das cousas impossíveis que procuramos em vão,
Dos sonhos que vêm ter connosco ao crepúsculo, à janela,
Dos propósitos que nos acariciam
Nos grandes terraços dos hotéis cosmopolitas
Ao som europeu das músicas e das vozes longe e perto,
E que doem por sabermos que nunca os realizaremos...
Vem, e embala-nos,
Vem e afaga-nos,
Beija-nos silenciosamente na fronte,
Tão levemente na fronte que nem saibamos que nos beijam
Senão por uma diferença na alma
Um vago soluço partindo melodiosamente
Do antiquíssimo de nós
Onde têm raiz todas essas árvores de maravilha
Cujos frutos são os sonhos que afagamos e amamos
Porque os sabemos fora de relação com o há  na vida.


Vem soleníssima,
Soleníssima e cheia
De uma oculta vontade de soluçar,
Talvez porque a alma é grande e vida é pequena,
E todos os gestos não saem do nosso corpo
E só alcançamos onde o nosso braço chega,
E só vemos até onde chega o nosso olhar.


Vem dolorosa,
Mater-Dolorosa das Angústias dos Tímidos,
Turris-Eburnea das Tristezas dos Desesperados,
Mão fresca sobre a testa em febre dos Humildes,
Sabor de água sobre os lábios secos dos Cansados.
Vem, lá do fundo
Do horizonte lívido,
Vem e arranca-me
Do solo de angústia e inutilidade
Onde vicejo.
Apanha-me do meu solo, malmequer esquecido,
Folha a folha lê em mim não sei que sina
E desfolha-me para teu agrado,
Para teu agrado silencioso e fresco.
Uma folha de mim lança para o Norte,
Onde estão a cidades de Hoje que eu tanto amei;
Outra folha de mim lança para o Sul,
Onde estão os mares que os Navegadores abriram;
Outra folha minha atira ao Ocidente,
Onde arde ao rubro tudo o que talvez seja o Futuro,
Que eu sem conhecer adoro;
E a outra, as outras, o resto de mim
Atira ao Oriente
Ao Oriente de onde vem tudo, o dia e a fé,
Ao Oriente pomposo, fanático e quente,
Ao Oriente budista, bramânico, sintoísta
Ao Oriente que é tudo o nós não temos,
Que é tudo o que nós não somos,
Ao Oriente onde, - quem sabe? -, Cristo talvez ainda hoje viva,
Onde Deus talvez exista realmente e mandando tudo...


Vem sobre os mares,
Sobre os mares maiores,
Sobre os mares sem horizontes precisos,
Vem e passa a mão pelo dorso da fera,
E acalma-a misteriosamente,
Ó domadora hipnótica das coisas que se agitam muito!


Vem, cuidadosa,
Vem, maternal,
Pé ante pé, enfermeira antiquíssima, que te sentaste
À cabeceira dos deuses das fés já perdidas,
E que viste nascer Jeová e Júpiter,
E sorriste porque tudo te é falso e inútil.


Vem, Noite silenciosa e extática,
Vem envolver na noite manto branco
O meu coração...
Serenamente como uma brisa na tarde leve,
Tranquilamente como um gesto materno afagando,
Com as estrelas luzindo nas tuas mãos
E a lua máscara misteriosa na tua face,
Todos os sons soam de outra maneira 
Quando tu vens.
Quando tu entras baixam todas as vozes,
Ninguém te vê entrar,
Ninguém sabe quando entraste,
Senão de repente, vendo que tudo se recolhe,
Que tudo perde as arestas e as cores,
E que no alto céu ainda claramente azul
Já crescente nítido, ou círculo branco, ou mera luz nova que vem,


A lua começa a ser real.




II


Ah o crepúsculo, o cair da noite, o acender das luzes, nas grandes cidades,
E a mão de mistério que abafa o bulício,
E o cansaço de tudo em nós que nos corrompe
Para uma sensação exacta e precisa e activa da Vida!
Cada rua é um canal de uma Veneza de tédios
E que misterioso o fundo unânime das ruas,
Das ruas ao cair da noite, ó Cesário Verde, ó Mestre,
Ó do "Sentimento de um Ocidental"!


Que inquietação profunda, que desejo de outras cousas,
Que não são países, nem momentos,nem vidas,
Que desejo talvez de outros modos de estados de alma
Humedece interiormente o instante lento e longínquo!


Um horror sonâmbulo entre luzes que se acendem,
Um pavor terno e líquido, encostado às esquinas
Como um mendigo de sensações impossíveis
Que não sabe quem lhas possa dar...


Quando eu morrer,
Quando me for, ignobilmente, como toda a gente,
Por aquele caminho cuja ideia se não pode encarar de frente,
Por aquela porta a que, se pudéssemos assomar, não assomaríamos,
Para aquele porto que o capitão do Navio não conhece,
Seja por essa hora condigna dos tédios que tive,
Por esta hora mística e espiritual e antiquíssima,
Por essa hora em que talvez, há muito mais tempo do que parece,
Platão sonhando viu a ideia de Deus
Esculpir corpo e existência absolutamente plausível
Dentro do seu pensamento exteriorizado como um campo. 


Seja por esta hora que me leveis a enterrar,
Por esta hora que eu nem sei como viver,
Em que não sei que sensações ter ou fingir que tenho,
Por essa hora cuja misericórdia é torturante e excessiva,
Cujas sombras vêm de qualquer outra cousa que não as cousas,
Cuja passagem não roça vestes pelo chão da Vida Sensível 
Nem deixa perfume nos caminhos do Olhar.


Cruza as mão sobre o joelho, ó companheira que eu não tenho nem quero ter,
Cruza as mãos sobre o joelho e olha-me em silêncio
A esta hora em que eu não posso ver tu que me olhas,
Olha-me em silêncio e em segredo e pergunta a ti própria 
- Tu que me conheces - quem eu sou...  


ÁLVARO DE CAMPOS , 30 DE JUNHO DE 1914  









quarta-feira, 29 de junho de 2011

FAZ HOJE 92 ANOS





O sono é suave, mas o meio-sono
É mais suave ainda. Estar sabendo
Que se estará nesse lúcido abandono
É como a brisa à sombra se entretendo.


O amor é suave, mas o amor-talvez
É mais suave ainda. É como estar
Sobre a extensão alegre de um convés
A fitar sem os ver o céu e o mar.


A .vida é suave, mas poder haver
Outra melhor é mais suave ainda.
É como entre a erva alta o malmequer
Que, uma vez visto, todo o campo alinda.


Assim, sob altos ramos rumorosos
Pensei, e a breve e incerta vibração
Dava-me pensamentos mais ditosos
Do que quaisquer felicidades dão.


Pouco sabemos do que há ou somos.
Nada sabemos do que nos espera.
Para uns a vida é fruta, com seus gomos.
Para outros é só a primavera.


FERNANDO PESSOA, 29 DE JUNHO DE 1919

terça-feira, 28 de junho de 2011

FAZ ESTE MÊS 102 ANOS

Antes que o Tempo fosse
De dentro d'alma reinei
Numa vida antiga e doce.
Antes que o tempo fosse
Vivi sem dor e amei.


Não sei a que forma vaga
Prendi esse meu amor
Sei que inda me embriaga
Remota imagem e vaga
Que vive na minha dor.


Recordo um sonho sonhado?
É sonho a recordação?
Não sei: ao meu ser cansado
Que importa o que foi sonhado,
Se o próprio real é uma ilusão?


FERNANDO PESSOA, JUNHO DE 1909

segunda-feira, 27 de junho de 2011

FAZ HOJE 99 ANOS

MORS


Com teus lábios irreais de Noite e Calma
Beija o o meu ser confuso de amargura,
Com teu óleo de Paz e de Doçura
Unge-me esta ânsia vã que não se acalma.


Quantas vezes o Tédio pôs a palma
Sobre a minha cerviz dobrada e obscura;
Quantas vezes a onda da loucura
Me roçou as franjas pela alma.


Corpo da parte espiritual em mim,
Do que em mim não é senso e mutação
E se concebe como sem ter fim,


Põe carinhosamente a tua mão
Na minha fronte, até que eu seja afim
À tua inconsciente imensidão.


FERNANDO PESSOA, 27 DE JUNHO DE 1912

domingo, 26 de junho de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS





ASSOUPISSEMENT




Canta-me, canta, sem parar,
Sem nada querer conseguir,
Uma canção que faça sonhar...
Sem fazer sentir...


Estou como se tivesse pena.
Não conheço ninguém no mundo.
Canto que a noite está serena
E qualquer história é amor profundo...


Tudo serve... O luar, o rio,
A barquinha que está a boiar...
Tudo menos este fastio
De desejar e de pensar...


Canta, não queres, bem sei...Nada...
Deixa-me desejar não ser
Com a alma leve e descansada...
Dormis, vestígios do saber?


FERNANDO PESSOA, 26 DE JUNHO DE 1929





sábado, 25 de junho de 2011

FAZ HOJE 99 ANOS







Põe-me as mãos nos ombros...
Beija-me a fronte...
A minha vida é escombros
A minha alma insonte.


Eu não sei porquê,
Meu dês de onde venho,
Sou o ser que vê,
E vê tudo estranho.


Pões a tua mão
Sobre o meu cabelo...
Tudo é ilusão,
Sonhar é sabê-lo.


FERNANDO PESSOA, 25 DE JUNHO DE 1912

sexta-feira, 24 de junho de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS







O piano noutro andar
Tem sempre um som magoado...
Sem querer, faz-me lembrar,
Com saudade, o passado.


Não um passado que houvesse,
Pelo piano repetido,
Mas um que só entristece
Sem que tivesse existido.


É um passado absoluto,
Abstracto, de toda a gente.
Penso ou cismo? Sonho ou escuto?
Sinto ou em mim alguém sente?


Por que é que, sem nexo ou jeito,
Fala este som casual
Ao coração imperfeito
À sensação desigual?


Não sei. Mas surge do fundo
Do meu ser desconhecido
Um tédio de haver o mundo,
Um horror a ter vivido.


FERNANDO PESSOA, 24 DE JUNHO DE 1933

quinta-feira, 23 de junho de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS





Parte-te contra a parede,
Coração que ninguém quer!
Alma com fome e com sede
Só do que não pode haver,
O que te há-de suceder?
Cai no lixo e fica lá.
Anseio que és somente
De ir buscar o que não há
Onde os outros não hás não são gente!
Quebra-te, coisa que sente!


FERNANDO PESSOA, 23 DE JUNHO DE 1934

quarta-feira, 22 de junho de 2011

FAZ HOJE 94 ANOS

CANÇÃO TRISTE


O Sol, que dá nas ruas, não dá
No meu carinho.
A felicidade quando virá?
Por que caminho?


Hora e horas por fim são meses
De ansiado bem.
Eu penso em ti indecisas vezes
E tu ninguém!


Não tenho barco para a outra margem,
Nem sei do rio.
Ah! E envelhece já a tua imagem
E eu sinto frio.


Não me resigno, não me decido,
Choro querer...
Sempre eu! Ó sorte dá-me o olvido
De pertencer!


Enterrei hoje outra vez meu sonho
Amante má.
Tornou-se triste por ser risonho,
E não ser já.


Inútil brisa roçando leve
Já morta flor,
Saudando a um bem que não se teve
Vácuo com dor.


Triste se é triste, e de o ser não finda
Quando é conforto
Como mãe louca que embala ainda
Um filho morto.


FERNANDO PESSOA, 22 DE JUNHO DE 1917

terça-feira, 21 de junho de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS



TOMÁMOS A VILA DEPOIS DE INTENSO BOMBARDEAMENTO




A criança loura
Jaz no meio da rua.
Tem as tripas de fora
E por uma corda sua
Um combóio que ignora.

A cara está um feixe
De sangue e de nada.
Luz um pequeno peixe -
Dos que bóiam nas banheiras -
À beira da estrada.


Cai sobre a estrada o escuro,
Longe, ainda uma luz doura
A criação do futuro...


E o da criança loura?


FERNANDO PESSOA, 21 DE JUNHO DE 1929

segunda-feira, 20 de junho de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS







BICARBONATO DE SÓDIO




Súbita, uma angústia...
Ah que angústia, que náusea do estômago à alma!
Que amigos que tenho tido!
Que vazias de tudo as cidades que tenho percorrido!
Que esterco metafísico os meus propósitos todos!


Uma angústia,
Uma desconsolação da epiderme da alma,
Um deixar cair os braços ao sol-pôr do esforço...
Renego.
Renego tudo.
Renego mais que tudo.
Renego a gládio e fim todos os Deuses e a negação deles.


Mas o que é que me falta, que o sinto faltar-me no estômago e na circulação do sangue?
Que atordoamento vazio me esfalfa no cérebro?


Devo tomar qualquer coisa ou suicidar-me?
Não, vou existir. Arre! Vou existir.
E-xis-tir...
E-xis-tir...


Meu Deus! Que budismo me esfria o sangue!
Renunciar de portas todas abertas,
Perante a paisagem todas as paisagens,
Sem esperança, em liberdade,
Sem nexo,
Acidente da inconsequência da superfície das coisas,
Monótono mas dorminhoco,
E que brisas quando as portas e as janelas estão todas abertas!
Que verão agradável dos outros!


Dêem-me de beber, que não tenho sede!


ÁLVARO DE CAMPOS, 20 DE JUNHO DE 1930





domingo, 19 de junho de 2011

FAZ HOJE 92 ANOS

Bendito galo que cantas
Da noite que vai ser dia!
Parece que me levantas
Do meu ser em que eu jazia.


Teu grito estrídulo e puro
É a manhã antes dela.
Ainda bem que há futuro!
Brilha mal a última estrela.


Renovas, graças a Deus,
Teu som prolongado e claro.
Clareia a orla dos céus.
Por que penso? por que paro?


FERNANDO PESSOA, 19 DE JUNHO DE 1919

sábado, 18 de junho de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS

No breve número de doze meses
O ano passa, e breves são os anos,
Poucos a vida dura.
Que são doze ou sessenta na floresta
Dos números, e quanto pouco falta
Para o fim do futuro!
Dois terços já, tão rápido, do curso
Que me é imposto correr descendo, passo.
Apresso, e breve acabo. 


RICARDO REIS, 18 DE JUNHO DE 1930

sexta-feira, 17 de junho de 2011

FAZ HOJE 82 ANOS



POEMA DE CANÇÃO SOBRE A ESPERANÇA




I




Dá-me lírios, lírios,
E rosas também.
Mas se não tens lírios
Nem rosas a dar-me,
Tem vontade ao menos
De me dar lírios
E também as rosas.
Basta-me a vontade,
Que tens, se a tiveres,
De me dar os lírios 
E as rosas também,
E terei os lírios -
Os melhores lírios -
E as melhores rosas
Sem receber nada, 
A não ser a prenda 
Da da tua vontade
De me dares lírios
E rosas também.


II


Usas um vestido
Que é uma lembrança
Para o meu coração.
Usou-o outrora
Alguém que me ficou
Lembrada sem vista.
Tudo na vida
Se faz por recordações.
Ama-se por memória.
Certa mulher faz-nos ternura
Por um gesto que lembra a nossa mãe.
Certa rapariga faz-nos alegria
Por falar como a nossa irmã.
Certa criança arranca-nos da desatenção
Porque amámos uma mulher parecida com ela
Quando éramos jovens e não lhe falávamos.
Tudo é assim, mais ou menos,
O coração anda aos trambolhões.
Viver é desencontrar-se consigo mesmo.
No fim de tudo, se tiver sono, dormirei.
Mas gostava de te encontrar e que falássemos.
Estou certo que simpatizaríamos um com o outro.
Mas se não nos encontrarmos, guardarei o momento
Em que pensei que nos poderíamos encontrar.
Guardo tudo,
Guarda as cartas que me escrevem,
Guardo até as cartas que não me escrevem -
Santo Deus, a gente guarda tudo mesmo que não queira,
E o teu vestidinho azul, meus Deus, se eu te pudesse atrair
Através dele até mim!
Enfim, tudo pode ser...
És tão nova- tão jovem como diria o Ricardo Reis -
E a minha visão de ti explode literariamnte,


E deito-me para trás na praia e rio como um elemento inferior,
Arre, sentir cansa, e a vida é quente quando o sol está alto.
Boa noite na Austrália!


ÁLVARO DE CAMPOS, 17 DE JUNHO DE 1929



quinta-feira, 16 de junho de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS







Esta velha angústia,
Esta angústia que trago há séculos em mim,
Transbordou da vasilha,
Em lágrimas, em grandes imaginações,
Em sonhos em estilo de pesadelos sem terror,
Em grandes emoções súbitas sem sentido nenhum.


Transbordou.
Mal sei como conduzir-me na vida
Com este mal-estar a fazer-me pregas na alma!
Se ao menos endoidecesse deveras!
Mas não: é este estar-entre,
Este quase,
Este poder ser que...
Isto.


Um internado num manicómio é, ao menos, alguém.
Eu sou um internado num manicómio sem manicómio.
Estou doido a frio,
Estou lúcido e louco,
Estou alheio a tudo e igual a todos:
Estou dormindo desperto com sonhos que são loucura
Porque não são sonhos,
Estou assim...


Pobre velha casa da minha infância perdida!
Quem te diria que eu me desacolhesse tanto!
Que é do teu menino? Está maluco.
Que é de quem dormia sossegado sob o teu tecto provinciano?
Está maluco.
Quem de quem fui? Está maluco. Hoje é quem eu sou.


Se ao menos eu tivesse uma religião qualquer!
Por exemplo, a por aquele manipanso
Que havia em casa, lá nessa, trazido de África.
Era feiíssimo, era grotesco,
Mas havia nele a divindade de tudo em que se crê.
Se eu pudesse crer num manipanso qualquer -
Júpiter, Jeová, a Humanidade -
Qualquer serviria,
Pois o que é tudo senão o que pensamos de tudo?


Estala, coração de vidro pintado!


ÁLVARO DE CAMPOS 16 DE JUNHO DE 1934

quarta-feira, 15 de junho de 2011

FAZ HOJE 86 ANOS





Estio.Uma brisa ardida
Passa no ar abrasado.
Não 'stou cansado da vida:
De mim é que 'stou cansado.


E como na tarde sumida
O sol baço luz sem rir,
Tenho que sorrir à vida
Sem ter vida a que sorrir.


FERNANDO PESSOA, 15 DE JUNHO DE 1925

terça-feira, 14 de junho de 2011

FAZ HOJE 95 ANOS

Tange a tua flauta, pastor.Esta tarde
Pertence à dor, à tua dor que em mim arde.

Tange por isso pastor, a tua flauta a tremer.
Tange, tange, para que eu me não sinta sofrer.


Leve, um vento antigo passa entre ti e mim.
Leve, o vento regressa, e a música está no fim.


Mas nunca haverá fim ou música em meu tormento.
Tange outra vez a flauta, pastor. Deixa o vento


Estar entre ti e mim outra vez, como a sombra triste
Que está na tua alma, na minha alma, e não existe.


FERNANDO PESSOA, 14 DE JUNHO DE 1916

segunda-feira, 13 de junho de 2011

Aniversário de Fernando Pessoa

O Google homenageou hoje, na sua página de abertura, o nosso grande Poeta! Uma merecida homenagem que prova, uma vez mais, a sua universalidade.

FAZ HOJE 81 ANOS





ANIVERSÁRIO


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha,  estava certa como uma religião qualquer.


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saúde de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter esperança, já não sabia ter esperanças.
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.


Sim, o que foi de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui - ai meu Deus!, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o eco...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!


O que eu hoje sou é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,E estar eu sobrevivente a mim mesmo como um fósforo frio...


No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viajem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!


Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na louça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas, - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tias velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...


Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos.
Duro.
Somam-se-me dias.
Serei velho quando for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado na algibeira!...


O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...


ÁLVARO DE CAMPOS, 13 DE JUNHO DE 1930