sábado, 31 de janeiro de 2015

FAZ HOJE 86 ANOS




Aquela graça incomparável
Que nasce sem saber falar
Pende no meu sonho estável
Como uma música no ar.

Meu coração recebe dela
Dessa lembrança dolorida,
Um ar bom que abre uma janela
E refresca o torpor da vida...

Não creio que haja mentira ou verdade.
Ela era uma alma alada e nobre
Que deu um breve tempo
Como se dá esmola a um pobre.
Deu-me sorriso e não saudade.



FERNANDO PESSOA, 31 DE JANEIRO DE 1929

sexta-feira, 30 de janeiro de 2015

FAZ HOJE 94 ANOS




À LA MANIÈRE DE A. CAEIRO

A mão invisível do vento roça por cima das ervas.
Quando se solta, saltam nos intervalos do verde
Papoilas rubras, amarelos malmequeres juntos,
E outras pequenas flores azúis que se não vêem logo.

Não tenho quem ame, ou vida que queira, ou morte que roube.
Por mim, como pelas ervas um vento que só as dobra
Para as deixar voltar àquilo que foram, passa.
Também por mim um desejo inutilmente bafeja
As hastes das intenções, as flores do que imagino,
E tudo volta ao que era sem nada que acontecesse.

RICARDO REIS, 30 DE JANEIRO DE 1921


quinta-feira, 29 de janeiro de 2015

FAZ HOJE 82 ANOS



Na ampla sala de jantar das tias velhas
O relógio tictaqueava o tempo mais devagar.
Ah o horror da felicidade que se não conheceu
Por se ter conhecido sem se conhecer,
O horror do que foi porque o que está está aqui.
Chá com torradas na província de outrora
Em quantas cidades me tens sido memória e choro!
Eternamente criança,
Eternamente abandonado,
Desde que o chá e as torradas me faltaram no coração.

Aquece, meu coração!
Aquece ao passado,
Que o presente é só uma rua onde passa quem me esqueceu...

ÁLVARO DE CAMPOS, 29 DE JANEIRO DE 1933


quarta-feira, 28 de janeiro de 2015

POEMA SEM DATA




Pois bem, matou-se. Morreu-lhe a filha
Tísica, tudo foi-lhe acabar
O vaivém tirado, o seu sonho, a ilha,
E ela atirou-se do quarto andar.

Foi isso. Foi. Mas não estou tranquilo.
Meu coração tem um sobressalto.
Que foi aquilo? Que foi aquilo?
O que há naquilo que falho e falto?

Morreu-me pai, morreu-me a mãe,
Amei-os. Sim, mas neste momento
Não lembro nada, sinto-me bem.
Que grande pulha do sentimento!


FERNANDO PESSOA, POEMA SEM DATA


terça-feira, 27 de janeiro de 2015

FAZ HOJE 98 ANOS




Olho os campos, Neera,
Verdes campos, e penso
Em que virá um dia
Em que não mais os olhe.

Isto se o meditar,
Me toldará os céus
E fará menos verdes
Os verdes campos reais.

Ah! Neera, o futuro
Ao futuro deixemos.
O que não está presente
Não existe pra nós.

Hoje não tenho nada
Senão os verdes campos
E o céu azul por cima.
Seja isto todo o mundo.

RICARDO REIS, 27 DE JANEIRO DE 1917