sexta-feira, 31 de outubro de 2008

HETERÓNIMOS III




De cima para baixo: Alberto Caeiro, Ricardo Reis
e Álvaro de Campos, vistos por Almada Negreiros, -
- Átrio da Faculdade de Letras da Universidade de
Lisboa.


O Poeta, segundo os depoimentos dos que mais de perto com ele lidaram, muito especialmente da irmã Henriqueta Madalena, a Teta, como carinhosamente ele lhe chamava, não era um tímido. Tinha uma vida interior tão intensa que, muitas vezes, mesmo em família, parecia que se ausentava e que se alheava de tudo o que se passava á sua volta. No entanto era muito dedicado aos sobrinhos, entrando nas suas brincadeiras, inventando jogos e escrevendo poemas só para eles.(A sua sobrinha, Manuela Nogueira, juntou esses poemas num livro a que chamou “O melhor do mundo são as crianças”, editado por Assírio & Alvim).

Não era alegre e expansivo, embora fosse um excelente conversador, usando de uma fina ironia que, muitas vezes, se transformava num humor inteligente e contido. Aliás, toda a Obra do Poeta está cheia dessa subtil ironia.

O que ressalta neste quadro é, sem dúvida, a intensidade da sua vida interior. Dotado de uma inteligência invulgar, todas as questões que inquietam a Alma humana, eram por ele dissecadas, analisadas, não só através da sua lógica espontânea, mas também, através de exercícios impressionantes de perspectivações através da lógica oposta, da intermédia, ou doutra qualquer que ele concebesse como possível.

Este exercício permanente que, desde o fim da sua adolescência, passou a fazer parte da sua rotina de vida, se assim se lhe pode chamar, conduziu a uma capacidade de despersonalização completamente invulgar. Capacidade essa que o levou a conviver, interiormente, com uma série de personagens distintas no seu modo de encarar a vida e, porque era Poeta, distintas também no seu modo de se exprimir. O Fernando Pessoa era um raciocinador tremendo; deixou uma enorme quantidade de textos longamente trabalhados mas raramente terminados, a que chamava chamava, “policiários”, onde surge uma figura carismática, o Dr. Quaresma, que nos enreda em raciocínios completamente irrefutáveis… Desse exigente racionalismo tinha que nascer o seu oposto. E nasceu, com o nome de Alberto Caeiro…

Li hoje duas páginas
Do livro dum poeta místico,
E ri como quem tem chorado muito.

Os poetas místicos são filósofos doentes,
E os filósofos são homens doidos.

Porque os poetas místicos dizem que as flores sentem
E dizem que as pedras têm alma
E que os rios têm êxtases ao luar.

Mas as flores, se sentissem, não eram flores,
Eram gente;
E se as pedras tivessem alma, eram coisas vivas, não eram pedras;
E se os rios tivessem êxtases ao luar,
Os rios eram homens doentes.

É preciso não saber o que são flores e pedras e rios
Para falar dos sentimentos deles.
Falar da alma das pedras, das flores, dos rios,
É falar de si próprio e dos seus falsos pensamentos.
Graças a Deus que as pedras são só pedras,
E que os rios não são senão rios,
E que as flores são apenas flores.

Por mim, escrevo a prosa dos meus versos
E fico contente,
Porque sei que compreendo a Natureza por fora;
E não a compreendo por dentro
Porque a Natureza não tem dentro;
Senão não era Natureza.

(Poema XXVIII)



Era uma voz interior que o impelia para a aceitação da Natureza, tal como os nossos sentidos dela tomam conhecimento; tudo é apenas o que parece, no que a nós aparece. Querer ver para lá disso, será inventar uma outra Natureza. Esta toada serena, embalava-o como a sua saudosa velha ama o embalava em criança. O Alberto Caeiro, são os olhos de criança do Fernando Pessoa. Esta voz interior, soou a pacificação mas nunca podia conduzir á Paz. E não conduziu.

Primeiro sentiu a necessidade de tornar mais subtil e aprofundada essa visão estática e essa aceitação redutora e linear, depois, mantendo o mesmo tema, enriqueceu-o com um ritmo e uma melodia diferentes. Era a chegada do Ricardo Reis: não era pastor de pensamentos, como o Caeiro, mas vivia nos prados da Arcádia.

E extasiou-se e extasiou-nos a nós, com a beleza superior de uma aceitação intelectualizada, nascendo de dentro e explicando-se com a perfeição da forma dos grandes poetas latinos. Estóico ou epicurista, – ou talvez ambas as coisas –, falou mais da Natureza, das flores, dos rios, das árvores e do aconchego que a suas sombras concedem, mas falou também da Cleo, da Lídia, da Neera, e do seu amor por elas, como se elas existissem e o amor fizesse parte da Natureza, como as árvores, as flores e os rios. Tudo no presente, olhando sempre o passado saudosamente, mas ignorando intencionalmente o futuro, ou até mesmo, se virá a haver futuro; pensar para lá do momento que passa, é inútil e é doloroso.


Vem sentar-te comigo, Lídia, à beira do rio.
Sossegadamente fitemos o seu curso e aprendamos
Que a vida passa, e não estamos de mãos enlaçadas.
(Enlacemos as mãos).

Depois pensemos, crianças adultas, que a vida
Passa e não fica, nada deixa e nunca regressa,
Vai para um mar muito longe, para ao pé do Fado,
Mais longe que os deuses.

Desenlacemos as mãos, porque não vale a pena cansarmo-nos,
Quer gozemos, quer não gozemos, passamos como o rio.
Mais vale saber passar silenciosamente
E sem desassossegos grandes.

Sem amores, nem ódios, nem paixões que levantam a voz,
Nem invejas que dão movimento de mais aos olhos,
Nem cuidados, porque se os tivesse o rio sempre correria,
E sempre iria ter ao mar.

Amemo-nos tranquilamente, pensando que podíamos,
Se quiséssemos, trocar beijos e abraços e carícias,
Mas que mais vale estarmos sentados ao pé um do outro
Ouvindo correr o rio e vendo-o.

Colhamos flores, pega tu nelas e deixa-as
No colo, e que o seu perfume suavize o momento –
Este momento em que sossegadamente, não cremos em nada,
Pagãos inocentes da decadência.

Ao menos, se for sombra antes, lembrar-te-ás de mim depois
Sem que a minha lembrança te arda ou te fira ou te mova,
Porque nunca enlaçamos as mãos, nem nos beijámos,
Nem fomos mais do que crianças.

E se antes do que eu levares o óbolo ao barqueiro sombrio,
Eu nada terei que sofrer ao lembrar-me de ti.
Ser-me-ás suave à memória lembrando-te assim – à beira rio,
Pagã triste e com flores no regaço.



(12-6-1914)




A melodia transformara-se em sinfonia: novas palavras, novos sons, novas cores e era o Fernando Pessoa a surgir do azul profundo! Era o grande Poeta a sentir que os caminhos eram muitos e que era preciso percorrê-los a todos, fosse ou não impossível fazê-lo. Mas compreendeu que ser assim, pagão triste e com flores no regaço, era esconder-se da vida que tinha quotidianamente de viver. Era como que um regresso ao quarto dos brinquedos e à ternura da velha ama. Mas chamavam-no lá de fora. Ouvia os ruídos da Vida a passar e sabia que tinha que ir.

E foi. Surgiu então o Avaro de Campos com o seu sensacionismo cosmopolita, o que viajara pelo golfo de Suez, mas que continuaria sempre a cantar Lisboa e o seu Tejo ancestral. O que virara as costas à plácida Natureza, e sentia com a alma, os navios que saiam pela barra, as máquinas que os faziam mover, os ruídos que enchiam as cidades, e queria ser tudo em todos os momentos e sentir tudo de todas as maneiras. E, então a sinfonia tornara-se mais rica e a orquestra enchia o mundo com a harmonia de todos os seus instrumentos. A música impossível, nascera!

O Álvaro de Campos era o Fernando Pessoa virado do avesso! Mas o Poeta deixou escrito:

“Pus no Caeiro todo o meu poder de despersonalização dramática, pus em Ricardo Reis toda a minha disciplina mental vestida da música que lhe é própria, pus no Álvaro de Campos toda a emoção que não dou a mim nem à vida”.

Atrevo-me a uma alteração: o Álvaro de Campos é toda a emoção que o Fernando Pessoa realmente sentiu e que, sem essa ajuda, nunca deixaria que se exteriorizasse.


Não: não quero nada.
Já disse que não quero nada.

Não me venham com conclusões!
A única conclusão é morrer.
Não me tragam estéticas!
Não me falem em moral!
Tirem-me daqui as metafísicas!
Não me apregoem sistemas completos, não me enfileirem conquistas
Das ciências, (das ciências, Deus meu, das ciências!) –
Das ciências, das artes, da civilização moderna!

Que mal fiz eu aos deuses todos?

Se têm a verdade, guardem-na!

Sou técnico, mas tenho técnica só dentro da técnica.
Fora disso sou doido, com todo o direito a sê-lo.
Com todo o direito a sê-lo, ouviram?

Não me macem, por amor de Deus!

Queriam-me casado, fútil, quotidiano e tributável?
Queriam-me o contrário disto, o contrário de qualquer coisa?
Se eu fosse outra pessoa, fazia-lhes, a todos, a vontade.
Assim, como sou, tenham paciência!
Vão para o diabo sem mim.
Ou deixem-me ir sozinho para o diabo!
Para que havemos de ir juntos?

Não me peguem no braço!
Não gosto que me peguem no braço. Quero ser sozinho.
Já disse que sou sozinho!
Ah, que maçada quererem que eu seja de companhia!

Ó céu azul – o mesmo da minha infância –
Eterna verdade vazia e perfeita!
Ó macio Tejo ancestral e mudo,
Pequena verdade onde o céu se reflecte!
Ó mágoa revisitada, Lisboa de outrora de hoje!
Nada me dais, nada me tirais, nada sois que eu me sinta,

Deixem-me em paz! Não tardo, que eu nunca tardo…
E enquanto tarda o Abismo e o Silêncio quero estar sozinho.


(Lisbon revisited - 1923)


Referi sinfonia e orquestra, por entender que a Obra do Fernando Pessoa é una e indivisível, como una e indivisível é a sinfonia criada pela harmonia das diferentes melodias tocadas pelos diversos instrumentos, de corda, de sopro ou de percussão; partes diferentes que se harmonizam num todo único. Escrita com uma grande beleza, em vários tons, variando a altura, a intensidade e o timbre, na criação de uma harmonia, que vem de dentro de uma só alma, – a alma do Poeta Fernando Pessoa.

Os Heterónimos, são estados de Alma. Estados da mesma Alma. Da única Alma. Da Alma do Fernando Pessoa.
O resto, é mais uma criação do Poeta no palco imenso da sua imaginação: personagens criados por um dramaturgo, como o Rei Lear ou o Hamlet, criados pelo Shakespeare, com gestos e falas, que os definem e caracterizam, outorgados pelos seus criadores. Chamou-lhe, o nosso Poeta, “drama em gente”. Drama que se representou, em estreia, dentro do seu criador, decerto extasiado e talvez até surpreso, por tão mágica aparição. E depois, só depois de cuidar de todos os detalhes desta peça dramática, deixar que o Mundo a ela assistisse e dela participasse.

A famosa “Carta dos Heterónimos” foi o Aviso da Boa Nova e o Adolfo Casais Monteiro, o Arauto que o Fernando Pessoa escolheu para o levar ao Mundo. E assim se fez.



quarta-feira, 15 de outubro de 2008

OS HETERÓNIMOS II

É impossível falar de Fernando Pessoa, sem abordar o inultrapassável tema dos Heterónimos.

Quando em 1942 a editorial Ática, como refiro mais atrás, começou a publicar uma colecção intitulada, "Obras Completas do Fernando Pessoa", para o público anónimo, foi, decerto muito surpreendente que o 2º, o 3º e o 4º volumes, aparecessem como tendo a autoria, respectivamente, de Álvaro de Campos ("Poesias"), de Alberto Caeiro ("Poemas") e de Ricardo Reis ("Odes"). Muitos terão perguntado, na ignorância da obra do grande poeta,natural nessa época : então, é Fernando Pessoa, ou é Álvaro de Campos, ou é Alberto Caeiro ou é Ricardo Reis?

Recordemos que, até essa altura, apenas tinha sido editado um único livro do Fernando Pessoa: a "Mensagem", em 1934. Havia muitos poemas dispersos por inúmeras revistas de arte, mas a difusão dessas publicações era, como ainda hoje continua a ser, restrita a um pequeno círculo de intelectuais.

Essa surpresa, como também já referi, não só, não foi esclarecida pela crítica, com a publicação, sucessiva, de diversas Obras dedicadas ao Poeta, como ainda foi adensada, intelectualizada, levando para o debate universitário aquilo que, pela sua simplicidade de base, deveria ter merecido uma abordagem simples e clara, para uso do grande público leitor. Criou-se e alimentou-se um mistério que nunca mais abandonou o estudo da Obra do F. Pessoa por todo Mundo: dos Estados Unidos ao Japão, ou à China, passando por todos os continentes. Quando, em 1988, foi organizado, em Lisboa, um Congresso Internacional, na comemoração do centenário do nascimento do Poeta, que reuniu os maiores especialistas das mais variadas nacionalidades, a maioria das comunicações apresentadas, abordavam o tema dos Heterónimos… Em meu entender foi a primeira vez que ultrapassaram alguns tabus, de que, mais adiante, darei conta.

Dizia o Fernando Pessoa: “
O Mito é o nada que é Tudo”. O Mito, aqui, é aquilo a que toda a gente chama “a famosa carta dos Heterónimos”. Uma carta escrita pelo Poeta, em 13 de Janeiro em 1935, para o Adolfo Casais Monteiro, então um jovem director da revista coimbrã, “Presença”
.

O texto desta carta foi sendo considerado, ao longo dos tempos, como sagrado e inquestionável. Nele, e como resposta a um pedido feito pelo Casais Monteiro, por sua carta de 10 desse mesmo mês, o Fernando Pessoa, em oito longas páginas dactilografadas, usa metade desse texto para dar uma explicação para a sua heteronomia e para caracterizar, poeticamente, psicologicamente e até (?) fisicamente, os seus três mais conhecidos heterónimos.

A leitura completa dessa carta é muito importante para quem pretenda compreender completamente, tudo o que irá ser escrito de seguida. E essa leitura pode ser feita no livro de Adolfo Casais Monteiro, “Páginas de doutrina estética”, 1946, no livro de João Gaspar Simões, “Vida e Obra de Fernando Pessoa. História de uma geração”, 1950 (vol. II) , no volume da Edição Crítica do Fernando Pessoa, da Imprensa Nacional de 1988, “Cartas entre Fernando Pessoa e os directores da Presença”, edição e estudo de Enrico Martines . e, ainda, no nº 49 (Junho de 1937) da revista “Presença”.

Começo por cometer o “sacrilégio” de pôr completamente em causa o sentido literal de tudo quanto o Poeta diz sobre a génese dos seus principais heterónimos.

Explicando-me: o Fernando Pessoa era um correspondente muito relapso e disso se estava sempre a desculpar a todos para quantos escrevia. Demorava sempre, ou quase sempre, semanas, quando não eram mesmo, meses, a responder, sob as mais diversas alegações: problemas familiares, doenças, falta de sentido de concentração, amargura e solidão… E era, realmente assim que corria a vida real do Fernando Pessoa. Amarguras e depressões que ele procurava esconder dos seus companheiros dos cafés que frequentava e que percorria, como se tal fosse um rito que o ajudasse a viver.

Ora a célebre carta, que a Edição Crítica analisa nas suas duas versões, agora existentes no espólio, na Biblioteca Nacional, – o original, recebido pelo Casais Monteiro e a cópia, a papel químico, que o Fernando Pessoa tirou, como tirava sempre das cartas que considerava como mais importantes –, tem a data de 13 de Janeiro e responde à carta do Casais Monteiro de, 10 do mesmo mês. Portanto, mesmo “na volta do correio”! O que é um espanto, quer pelos seus hábitos epistolares, quer pela extensão do texto, e quer ainda pela precisão dos detalhes já referidos. Daí que seja perfeitamente razoável retirar uma primeira ideia: o tema estava perfeitamente estudado e preparado, aguardando a melhor e a mais “rentável oportunidade”,( do ponto de vista do autor), para ver a luz do dia. E ela surgiu com o pedido do jovem ensaísta, seu grande admirador, que pretendia escrever um livro sobre o Poeta Fernando Pessoa. Só mesmo assim podemos ultrapassar os incríveis três dias de diferença entre o pedido e a sua satisfação, sobretudo, sabendo que esse período se reduz a um dia, perante a normal demora do correio.

É difícil admitir que o jovem admirador do Poeta, tenha acreditado ,e atrás dele, muitos outros, menos jovens e mais sabedores, que tenha realmente existido “
O dia glorioso de 8 de Março de 1914," em que, depois de ter escrito, numa folha em branco, como título, “O Guardador de Rebanhos”, escreveu, de seguida e de um só fôlego, “trinta e tantos poemas” que constituem a maior parte da obra, "O Guardador de Rebanhos" do Alberto Caeiro, que assim, acabara de nascer. Parece que nem ele, nem os que se lhe seguiram, leram, um pouco antes, na mesma carta, esta frase, que até parece um aviso aos incautos:

Seja como for, a origem mental dos meus heterónimos está na minha tendência orgânica para a despersonalização e para a simulação.”

Por outro lado, à medida que mais estudiosos foram tendo acesso ao espólio pessoano, mais pontas soltas foram sendo encontradas. Só dois exemplos. Há um texto isolado, que podia ser destinado ao prefácio da Obra do Caeiro, em que Pessoa declara que no dia
13 de Março de 1914 escreveu “de um só hausto do espírito…grande número dos primeiros poemas do Guardador de Rebanhos”, embora na carta dos heterónimos tenha fixado, para esse efeito, o dia 8 do mesmo mês… Por outro lado, há, no espólio, poemas do Guardador de Rebanhos com datas de 4, 7, 8 e 11 de Março de 1914, os quais, somados aos poemas não datados também lá existentes, eleva para 24 o número de poemas escritos antes ou depois do “dia triunfal”…

Não me empenhei em arrasar um mito; apenas pretendi colocar uma certa ordem na questão da génese dos heterónimos. Se houve dia triunfal ou não, se foi no dia 8 ou no dia 13, tudo isso será importante para os filólogos e os exegetas encarregados de fazer a Edição Crítica da Obra de Fernando Pessoa; de posse dos textos originais, analisando a tinta e as características do bico do aparo ou aparos com que foram escritos, avaliando o tipo de papel utilizado como suporte para essa escrita, eles estão a pôr em prática as técnicas da ciência que estudaram. Nós, maravilhados leitores da Obra do Fernando Pessoa, precisamos de saber muito pouco desse tipo de coisas para “sentirmos” a sua poesia.

O ordenar a questão desta maneira mais clara, permite-nos avançar mais livremente na busca de uma explicação para a heteronomia do Fernando Pessoa.

quarta-feira, 13 de agosto de 2008

O MENINO E A SUA MÃE




O MENINO DA SUA MÃE




No plaino abandonado

Que a morna brisa aquece,

De balas traspassado

- Duas de lado a lado -,

Jaz morto e arrefece.



Raia-lhe a farda o sangue.

De braços estendidos,

Alvo, louro, exangue,

Fita com olhar langue

E cego os céus perdidos.



Tão jovem! que jovem era!

(Agora que idade tem?)

Filho único, a mãe lhe dera

Um nome e o mantivera:

"O menino da sua mãe".



Caiu-lhe da algibeira

A cigarreira breve.

Dera-lha a mãe. Está inteira

E boa a cigarreira.

Ele é que já não serve.



De outra algibeira, alada

Ponta a roçar o solo,

A brancura embaínhada

De um lenço... Deu-lho a criada

Velha que o trouxe ao colo.



Lá longe, em casa, há aprece:

"Que volte cedo e bem!"

(Malhas que o Império tece!)

Jaz morto e apodrece

O menino da sua mãe.



Fernando Pessoa (publicado em Maio de 1926)

(A MÃE DO SEU MENINO)



UN SOIR À LIMA (excertos)




Vem a voz da radiophonia e dá

A notícia num arrastamento vão:

"A seguir

Un soir à Lima."



Cesso de sorrir...

Pára-me o coração...



E, de repente,

Essa querida e maldita melodia

Rompe do aparelho inconsciente...

Numa memória súbita e presente

Minha alma se extravia...



O grande luar de Africa fazia

A encosta arborizada reluzente.



A sala em nossa casa era ampla, e estava

Posta onde, até ao mar, tudo se dava

À clara escuridão do luar ingente...

Mas só eu à janela.

Minha mãe estava ao piano

E tocava...

Exactanente

Un soir à Lima.



Meu Deus, que longe, que perdido, que isso está!

Que é do seu alto porte?

Da sua voz continuamente acolhedora?

Do seu sorriso carinhoso e forte?

O que hoje há

Que mo recorda é isto que oiço agora:

"Un soir à Lima".

Prossegue na radiophonia

A mesma, a mesma melodia

O mesmo
Un soir à Lima.



Seu cabelo grisalho era tão lindo

Sob a luz.

E eu que nunca pensei que ela morresse

E me deixasse entregue a quem eu sou!

Morreu, mas eu sou sempre o seu menino.

Ninguèm é homem para a sua mãe!



E inda através de lágrimas não falha

À memória que tenho

O recorte perfeito da medalha

Daquele perfeitíssimo perfil.

Chora, ao lembrar-te, mãe, romana e já grisalha,

Meu coração teu e infantil.

Vejo teus dedos no teclado e há

Luar lá fora eternamente em mim.

Tocas em meu coração, sem fim,

Un soir à Lima.

............................................................



Não ter aqui numa gaveta

Não ter aqui numa algibeira,

Fechada, havida, completa,

Essa cena inteira!

Não poder arrancar

Do espaço, do tempo, da vida

E isolar

Num lugar da alma onde ficasse possuída

Eternamente

Viva,quente,

Essa sala, essa hora,

Toda a família e a paz e a música que há

Mas real como ali está

Ainda, agora,

Quando, mãe, mãe, tocavas

Un soir à Lima.



Mãe, mãe, fui teu menino

Tão bem dobrado

Na sua educação

E hoje sou um trapo que o Destino

Fez enrolado e atirado

Para um canto do chão.



Jazo, mesquinho,

Mas ao meu coração

Sobe, num torvelinho

A memória de quanto ouvi do que há

No que há de carícias, de lar, de ninho,

Ao relembrar o ouvi, hoje, meu Deus, sòzinho,

Un soir à Lima.



Onde é que a hora, e o lar e o amor está

Quando mãe, mãe, tocavas

Un soir À Lima

.................................................................................



Mas, mãe, não haverá

Um Deus que me não torne tudo vão,

Ou outro mundo em que isso agora está?

Divago ainda: tudo é ikusão.

Un soir à Lima.



Quebra-te coração...



Fernando Pessoa 17/9/35



terça-feira, 5 de agosto de 2008

Os Heterónimos I

Se no GOOGLE se introduzir o nome "Fernando Pessoa",obter-se-ão, como resposta ,cêrca de 2 550 000 entradas...(Exacto:dois milhoes quinhentos e cinquenta mil!)


Se na Livraria AMAZON se fizer a mesma busca, surgem 1232 livros nas mais diversas línguas - traduções da obra e estudos...


Se se tiver em conta que a Obra do Fernando Pessoa está traduzida e estudada, em todos os países da Europa, das Américas (Norte, Cantral e Sul), em Israel, na Rússia, no Japão, na China...


Se a tudo isto se juntar , o muito mais que, por economia de espaço, se não acrescenta, compreenderemos porque é que o Fernando Pessoa é considerado, em todo o mundo culto, o maior poeta do Século XX, de uma dimensão equiparada, à de um Virgílio, de um Dante ou de um Shakeespeare.




A explicação para esta surpreendente dimensão, está dentro sua Obra.




Só o seu conhecimento nos permitirá compreender que ele pensou e sentiu, tudo aquilo que todos nós, seus leitores, sentimos e pensamos, mas que não conseguimos verbalizar. Nele, as palavras ligam-se como as notas numa peça musical, criando uma toada de encantamento, que nos identifica e nos faz assumir como nosso, o poema que estamos a ler. Tudo ecôa dentro de nós, como se de coisa nossa se tratasse. Por outras palavras: ele diz, o que todos nós gostávamos de ter dito.



Parece que não há emoções ou sentimentos em que ele não tenha pegado, desdobrado, alisado, tirado os vincos, para depois tudo nos surgir no nosso pensamento como uma melodia , extasiando-nos, elevando-nos a uma realidade muito para além desta que ,quotidianamente, vivemos.




O Fernando Pessoa, morreu em 30 de Novembro de 1935. Tinha publicado em vida apenas uma obra, que acabou por intitular de " Mensagem", a qual, durante anos foi concebendo, sob o título indiciador do conteúdo da obra, "Portugal". Mas, para lá desse livro, tinha deixados, dispersos por diversas publicações, 132 trechos em prosa e 299 poemas.



Em 1942 a Editorial Ática, sob a responsabilidade do seu Director, Luis de Montalvor e de João Gaspar Simões, publicou, a partir dos papéis que o Poeta deixou dentro da famosa arca, um volume com o título "Poesia de Fernando Pressoa".




A meritória vontade de divulgarem, mais amplamente a extraordinário poesia do Fernando Pessoa, que conheciam bem, por com ele terem privado, levou-os, com a autorização da família do Poeta, a resbuscarem a referida arca onde os inéditos foram sendo guardados e organizados pelo seu autor, sem outro projecto que não fosse o de publicarem, -, "
as composições que se nos afiguraram dignas de representar o génio disciplinado de Fernando Pessoa".- como escreveram no prefácio à obra que editaram. Quer dizer: assumiram o indevido papel de julgadores do que valia a pena publicar, ou não publicar... Sabe-se hoje, com a arca guardada na Biblioteca Nacional e o seu conteudo devidamente inventariado, que são cerca de 32 000 folhas de papel, manuscito, dactiloscrito ou misto.




Para piorar a situação, em 1944 e 1945, foram sendo, sucessivamente editados, utilizando o mesmo alucinante critério, volumes separados, com a poesia dos Haterónimos, - cá está a explicação para o título desta entrada... - Alvaro de Campos, Alberto Caeiro, e Ricardo Reis, encerrando esta série, a reedição da "Mensagem". Tudo feito sem os cuidados que o tratamento de um espólio deste valor, deveria merecer. As edições que foram saindo, bem como as suas reedições, contêm êrros de transcrição que, durante mais de 40 anos se foram, lamentàvelmente, propagando, uma vez que foi a partir destes textos que as traduções, nas mais diversas línguas, foram sendo feitas.Mas deixemos, para já, o aprofundamento deste mar de boas intenções, - das tais de que o Inferno está cheio...



A verdade é que o grande público desconhecia por completo a existência dos Heterónimos e o que significavam na Obra de um Poeta, de que já conhecia os maravilhosos poemas da Mensagem.





Em 1949 começou aquilo a que eu, sem pedir licença a ninguém, chamarei , "
a saga dos complicadores do Fernando Pessoa"!





Em 1949,"
Unidade e Diversidade em Fernando Pessoa", da autoria de um então jovem professor universitário, da Faculdade de Letras de Lisboa, que se celebrizou com este livro: Jacinto Prado Coelho. Escrito por um universitário, para universitários; o grande público, ficou à margem.





No ano seguinte, "
Vida e Obra de Fernando Pessoa", de Joâo Gaspar Simões, um antigo director da revista coimbrã, "Presença" que, durante os anos 20, tinha divulgado uma grande parte da obra do Fernando Pessoa e que o etornizara como mestre da nova geração. Podia ter ajudado a descomplicar, se o Gaspar Simões não tivesse fantasiada, acabando por transmitir uma imagem, completamente adulterada do biografado, de tal modo que, em 1951, Eduardo Freitas da Costa ,que era filho de um primo do Poeta, que o teve por seu melhor e mais próximo amigo, para repor a verdade, escrevesse um livro, intitulado, "Notas a uma biografia romanceada", no qual, documentalmente, desmontou as mistificações mais evidentes do Gaspar Simões. A este tema ainda voltarei...



Mas se exceptuarmos, como parece justo, as intervenções sempre claras do Adolfo Casais Monteiro,e, mais tarde, do António Quadros, o que se seguiu foi, cada vez mais, no sentido da complicação e não, como parece que deveria ter sido, da descomplicação.



Refiro alguns títulos:



"
Fernando Pessoa e o Poetodrama", do Prof José Augusto Seabra;

"
O heterotexto pessoano", do Prof. José Augusto Seabra;

"
Os Fundamentos Filosóficos da Obra de Fernando Pessoa" de António Pinho Coelho;

"
De luto por existir", de Ricardina Guerreiro.



Tudo teses universitárias, de costa viradas para o leitor comum.



E é para o leitor comum que eu gostava de estar a escrever, sem o talento dos autores acima citados, mas com o tal sonho de levar o Fernando Pessoa para junto daqueles que ainda o não conhecem.

quinta-feira, 31 de julho de 2008

ANIVERSÁRIO

No tempo em que festejavam o dia dos neus anos,
Eu era feliz e ninguém estava morto.
Na casa antiga, até o eu fazer anos era uma tradição de há séculos,
E a alegria de todos, e a minha, estava certa como uma religião qualquer.
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos,
Eu tinha a grande saude de não perceber coisa nenhuma,
De ser inteligente para entre família,
E de não ter as esperanças que os outros tinham por mim.
Quando vim a ter as esperanças,já não sabia ter esperanças...
Quando vim a olhar para a vida, perdera o sentido da vida.

Sim, o que fui de suposto a mim mesmo,
O que fui de coração e parentesco,
O que fui de serões de meia-província,
O que fui de amarem-me e eu ser menino,
O que fui _ ai, meu Deus, o que só hoje sei que fui...
A que distância!...
(Nem o acho...)
O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!

O que eu sou hoje é como a humidade no corredor do fim da casa,
Pondo grelado nas paredes...
O que eu sou hoje (e a casa dos que me amaram treme através das minhas lágrimas),
O que eu sou hoje é terem vendido a casa,
É terem morrido todos,
E estar eu sobrevivente a mim-mesmo como um fósforo frio...

No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...
Que meu amor, como uma pessoa, esse tempo!
Desejo físico da alma de se encontrar ali outra vez,
Por uma viagem metafísica e carnal,
Com uma dualidade de eu para mim...
Comer o passado como pão de fome, sem tempo de manteiga nos dentes!

Vejo tudo outra vez com uma nitidez que me cega para o que há aqui...
A mesa posta com mais lugares, com melhores desenhos na loiça, com mais copos,
O aparador com muitas coisas - doces, frutas, o resto na sombra debaixo do alçado -,
As tia velhas, os primos diferentes, e tudo era por minha causa,
No tempo em que festejavam o dia dos meus anos...

Pára, meu coração!
Não penses! Deixa o pensar na cabeça!
Ó meu Deus, meu Deus, meu Deus!
Hoje já não faço anos,
Duro.
Somam-se-me dias,
Serei velho quando for.
Mais nada.
Raiva de não ter trazido o passado roubado na algibeira!...

O tempo em que festejavam o dia dos meus anos!...

(15/10/1929)