sábado, 25 de julho de 2009

O Mestre e os Heterónimos

Ficou no ar esta questão: Mestre, o Alberto Caeiro? E porquê?

Apenas porque o próprio Fernando Pessoa, na encenação da sua vida interior, assim o disse, sem explicar a razão dessa surpreendente escolha. E surpreendente já que, referindo-se ao Alberto Caeiro, ele havia escrito na carta dos heterónimos: “
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária”.E também porque, acrescentara, que, após ter escrito “os trinta a tal” poemas que, prèviamente havia intitulado de “Guardador de Rebanhos”, encontrara o seu Mestre. Não explicou, nem o jovem Casais Monteiro lhe levantou essa questão, porque é que alguém, com “quase nenhuma educação” e “só com a instrução primária”, lhe podia surgir, assim de súbito como Mestre, – a ele Fernando Pessoa, com a sua enorme cultura e com a sua instrução de nível universitário. Aliás, esta sua afirmação, decorria, com uma certa lógica, da publicação, no nº 30 da revista “Presença”, – de que, relembre-se, o Casais Monteiro era director -, de um texto, assinado pelo Álvaro de Campos, com o título: “Notas para recordação do meu Mestre Caeiro”. Mais tarde, em 1960, na já citada edição da Obra Poética do Fernando Pessoa, da Editorial José Aguilar, do Rio de Janeiro, apareceu um texto, assinado pelo Ricardo Reis, em que, num estilo completamente diferente do usado pelo Campos, faz uma análise crítica, da poesia do Alberto Caeiro, atribuindo-lhe um sentido profundamente inovador, enquadrado por uma filosofia perfeitamente coerente. Se não deixa escrito que também ele, Ricardo Reis, o tomava como Mestre, a verdade é que o assumiu através de uma das suas mais conhecidas Odes,- aquela com que abre o Livro I.

O Fernando Pessoa, fez aquela surpreendente afirmação, na carta de 1935, mas a justificação teórica dessa essa surpresa, “mandou-a” dar aos seus outros dois heterónimos, desse modo dando azo a que se possa considerar, que essa justificação não seria possível, segundo a maneira de pensar e de ser do Fernando Pessoa-ele-mesmo. E é, realmente, essa a conclusão que me permito tirar…

As “Notas” do Álvaro de Campos, publicadas na “Presença”, como tudo o que foi editado em vida do Fernando Pessoa, são um trecho, trabalhado, bem estruturado e completo. O que não acontece com o texto assinado pelo Ricardo Reis e, pela primeira vez editado em 1960, que tem lacunas e que, pela sua curta extensão, dá ideia de que iria merecer um maior aprofundamento.

Mas a maior homenagem prestada ao
poeta guardador de rebanhos, foi-nos deixada por dois maravilhosos poemas que se seguem.


Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, o que é feito de ti nesta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva…

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, o meu coração não aprendeu a tua serenidade,
Meu coração não aprendeu nada,
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu, nem outro nem ninguém.
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Por que é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia o que fazer dela,
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve, ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino do homem é ser escravo.
Acordaste-me, mas o destino do homem é dormir.



ALVARO DE CAMPOS 15/4/1928


Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Como nossas mestras
E os olhos cheios
De Natureza…

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O Tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis, sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.


RICARDO REIS 12/6/1914


O Campos, de um modo explícito e dramático e o Reis de um modo contido e interiorizados, ambos se assumem como discípulos do Caeiro. Um, sentindo tudo de todas as maneiras, outro, pensando tudo de todas as maneiras, mas ambos evocando o Mestre, cada um a seu modo.

Até hoje, ainda não saiu da prodigiosa “arca-que-já-o-não-é”, – o seu conteúdo está agora, devidamente (?) catalogado na Biblioteca Nacional –, nenhum texto em que o Fernando Pessoa, ele-próprio, nos explique a razão porque, em Janeiro de 1935, se assumiu como discípulo do poeta, guardador de rebanho. Esse silêncio conduz-nos à busca do que parece ser uma intencional omissão.

Da análise que fizemos mais atrás da génese dos heterónimos, foi deixado claro que eles surgiram na imaginação do Poeta, inicialmente de modo imprevisto, como uma saída para os impasses que o seu pensamento foi sofrendo, no aprofundamento dos problemas do Ser e do Estar.

A poesia em inglês,da sua adolescência em Durban, na África do Sul, escrita sob a influência directa dos poetas ingleses considerados clássicos, é também ela uma escrita em termos de um grande formalismo clássico, por isso sujeita ao espartilho da métrica e da rima. Espartilho que ele tentou quebrar, mais tarde, já em Lisboa, procurando temas tão ousados que, como ele próprio confessou aos seus “discípulos”da “Presença”, nunca seria capaz de utilizar em português. Há excepções, “
35 sonets”, “Inscriptions” ou “The mad fiddler”, e alguns poemas avulsos. Mas são excepções, mais no tema, que não no estilo; desse só se libertará e criará um caminho novo, na poesia em português. Antes disso, foi e é, um poeta inglês, do século dezanove, que a Inglaterra desconhece. Embora tenha continuado sempre a escrever poemas em inglês, mesmo até 1935, ano da sua morte, não deixa de ser curioso referir que esses poemas dispersos se assemelham à traduções de poemas portugueses para inglês… Um Eng. Álvaro de Campos “traduzido” para inglês…

Mas essa libertação foi lenta. Com vinte anos, a beleza do que nos deixou ,decorre do sonho de poder viver uma outra vida e da amargura de sentir amarrado ao vazio do seu viver quotidiano. E este trajecto só nos surgiu com alguma clareza, depois da edição crítica, da Imprensa Nacional, que apresentou, em volumes separados, os poemas não atribuíveis a qualquer dos heterónimos, de 1915/1920, 1921/1930, 1931/1933 e 1934/1935. E mais claramente ainda, quando a Editorial “Assírio & Alvim” começou a publicar a Obra do Fernando Pessoa, sob a direcção do Richard Zenith, um americano que veio para Portugal, “viver” a sua paixão pelo nosso grande poeta e nos ofereceu, nos seus prefácios, uma visão inovadora de toda a Obre pessoana. Com uma equipa de reconhecida competência, fez um nova leitura dos originais do espólio de Pessoa, existentes na Biblioteca Nacional e cuja difícil caligrafia tem criado variações nos textos editados . No volume em que começa a apresentar a poesia do Fernando Pessoa-ele-próprio, de 1908/1914, claramente se constata a evolução do jovem Pessoa, do seu amadurecimento, tanto temático como estilístico.

E vale a pena determo-nos um pouco por aqui, para melhor se compreender o surgimento dos heterónimos.

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