sábado, 30 de novembro de 2019

FAZ HOJE 85 ANOS





Subiste à glória pela descida abaixo.
Paradoxo? Não: a realidade.
O paradoxo é o que é palavras
A realidade é o que és.
Subiste porque desceste.
Está bem.
Amanhã talvez eu faça a mesma coisa.
Por ora, se calhar, invejo-te.
Não sei se te invejo a vitória.
Não sei se te invejo o consegui-la.
Mas realmente creio que te a invejo
Sempre é vitória...
Façam um embrulho de mim
E depois deitem-me ao rio.
E não esqueçam o 'se calhar' quando lá me deitarem.
Isso é importante.
Não esqueçam o 'se calhar'.
Isso é que é importante.
Porque tudo é se calhar...

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE NOVEMBRO DE 1934



sexta-feira, 29 de novembro de 2019

FAZ HOJE 85 ANOS





Sonhei - quem não sonhara? - porque a tarde
Baixava o azul do céu e já se via
Uma estrela pequena, sem alarde,
Ainda em dia a desmentir o dia.

Tudo quanto mal fiz ou não queria
Numa fogueira que não vejo arde,
Meu coração, que espera e não confia,
É como um poço ao qual a água tarde.

Sonhei. Pois não havia de sonhar
Vendo ante mim este céu brando e o mar,
Ao longe um lago, parecer parado...

Sonho... Não sei de quê, mas foi de um bem
Que não sei se era algum ou se era alguém
E que só conheci como ignorado.


FERNANDO PESSOA, 29 DE NOVEMBRO DE 1934


quinta-feira, 28 de novembro de 2019

FAZ HOJE 86 ANOS




Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.

Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.

Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.

Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.

Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há 'sperança de um mar,
Mas nem' desejo de o ter.


FERNANDO PESSOA, 28 DE NOVEMBRO DE 1933


quarta-feira, 27 de novembro de 2019

FAZ HOJE 95 ANOS





MARINHEIRO-MONGE

Marinheiro-Monge
Deste mar profundo
Rema-me p'ra longe
De eu sentir o mundo.

Rema, e de teus braços
O angular potente
Que impele o barco apague os traços
Do meu sentir doente!

Chia a 'spuma e alveja
'Spuma é o mundo certo.
Como a água contra nós fresqueja
'Spelhando tão perto!

Marinheiro-Monge
Deste mar de além,
Leva-me p'ra longe
De se qu'rer um bem!

Como pesa a vida
Se ela nos não fôr
Mais indefinida
Do que peso e dor!

Rema, e olha-me mudo,
Vendo sem visão,
Quero sentir tudo
Sem ter coração!

Marinheiro-Monge
Deste mar sem fim,
Rema p'ra longe
Do que sou p'ra mim!

FERNANDO PESSOA, 27 DE NOVEMBRO DE 1924