quarta-feira, 31 de maio de 2017

FAZ HOJE 90 ANOS



Solene passa sobre a fértil terra
A branca, inútil nuvem fugidia,
Que um negro instante de entre os campos ergue
Um sopro arrefecido.

Tal me alta na alma a lenta ideia voa
E me enegrece a mente, mas já torno,
Como a si mesmo o mesmo campo, ao dia
Superfície da vida.


RICARDO REIS, 31 DE MAIO DE 1927


terça-feira, 30 de maio de 2017

FAZ HOJE 86 ANOS





Não digas que, sepulto, já não sente
O corpo, ou que a alma vive eternamente.
Que sabes tu do que não sabes? Bebe!
Só tens de certo o nada do presente.

Depois da noite, ergue-se do remoto
Oriente, com um ar de ser ignoto,
Frio, o crepúsculo da madrugada...
Do nada do meu sono ignaro broto.

Deixa aos que buscam o buscar, e a quem
Busca buscar julgar que busca bem.
Que temos nós com Deus e ele connosco?
Com qualquer coisa o que é que uma outra tem?

Sultão após sultão esta cidade
Passou, e hora após hora a vida, que há-de
Durar nela enquanto ela aqui durar,
Nem ao sultão ou a nós deu a verdade.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MAIO DE 1931


segunda-feira, 29 de maio de 2017

FAZ HOJE 83 ANOS





O céu, azul de luz quieta...
As ondas brandas a quebrar
Na praia lúcida e completa -
Pontas de dedos a brincar...

No piano anónimo da praia
Tocam nenhuma melodia,
De cujo ritmo por fim raia
Todo o sentido deste dia.

Que bom se isto satisfizesse!
Que certo, se eu pudesse crer
Que esse mar e essas ondas e esse
Céu têm vida e têm ser.

FERNANDO PESSOA, 29 DE MAIO DE 1934


domingo, 28 de maio de 2017

FAZ HOJE 85 ANOS





PARAGEM ZONA

Tragam-me esquecimento em travessas!
Quero comer o abandono da vida!
Quero perder o hábito de gritar para dentro.
Arre, já basta! Não sei o quê, mas já basta...
Então viver amanhã, hein?... E o que se faz hoje?
Viver amanhã por ter adiado hoje?
Comprei por acaso um bilhete para esse espectáculo?
Que gargalhadas daria quem pudesse rir!
E agora aparece o eléctrico - o de que eu estou à espera -
Antes fosse outro... Ter de subir já!
Ninguém me obriga, mas deixá-lo passar, porquê?
Só deixando passar todos, e a mim mesmo, e à vida...
Que náusea no estômago real que é a alma consciente!
Que sono bom o ser outra pessoa qualquer...
Já compreendo por que é que as crianças querem ser guarda-freios...
Não, não compreendo nada...
Tarde de azul e ouro, alegria das gentes, olhos claros da vida...

ÁLVARO DE CAMPOS, 28 DE MAIO DE 1930


sábado, 27 de maio de 2017

FAZ HOJE 108 ANOS





Poeira negra nevoando
A parda e indefinida estrada
És poeira, e mais nada.

Ténue poeira levantada
Da vida da estrada
Poeira pairando, revoando, nevoando
Sobre a branca, a monótona ou negra estrada
Poeira de sombras vivendo
Ai de nós - és poeira e mais nada.

Por mais longe que a poeira
Possa ir
Cai sempre.

A poeira é sempre da estrada.

FERNANDO PESSOA, 27 DE MAIO DE 1909