sábado, 31 de março de 2018

FAZ HOJE 116 ANOS





MOTE:

Teus olhos contas escuras,
São duas, Avé Marias
Dum rosário d'amarguras
Que eu rezo todos os dias.

(Augusto Gil)

Glosa:

Quando a dor me amargurar,
Quando sentir penas duras,
Só me podem consolar
Teus olhos, contas escuras.

Deles só brotam amores;
Não há sombra d'ironias;
Esses olhos sedutores
São duas Avé Marias.

Mas se a ira os vem turvar
Fazem-me sofrer torturas
E as contas todas rezar
Dum rosário d'amarguras.

Ou se os alaga a aflição
Peço p'ra ti alegrias
Numa fervente oração
Que rezo todos os dias!

FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1902


sexta-feira, 30 de março de 2018

FAZ HOJE 87 ANOS




Não tenho quinta nenhuma.
Se a quero ter p'ra sonhar,
Tenho que a extrair da bruma
Do meu mole meditar.

E então, desfazendo a névoa
Que há sempre dentro de nós,
Progressivamente elevo-a
Até uma quinta a sós.

Vejo os tanques, vejo as calhas
Por onde a água vai pequena,
Vejo os caminhos com falhas,
Vejo a eira erma e serena.

E, contente deste nada
Que em mim mesmo faço externo,
Gozo a frescura relvada
Da não-quinta em que me interno.

Vilegiatura impossível,
Dou-lhe nós para lembrar,
E esqueço-a ao primeiro nível
Do meu mole meditar.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1931


quinta-feira, 29 de março de 2018

FAZ HOJE 89 ANOS



Aqui está-se sossegado.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-na ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido.

Agora não esqueço e sonho.
Fecho olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que vejo azul a esverdear.
Agora não esqueço o sonho.

Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho -
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois -
Nada explica nem consola.

FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1929


quarta-feira, 28 de março de 2018

FAZ HOJE 88 ANOS




D. JOÃO
INFANTE DE PORTUGAL

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;

Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita -
O todo, ou o seu nada.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930