sábado, 25 de julho de 2009

O Mestre e os Heterónimos

Ficou no ar esta questão: Mestre, o Alberto Caeiro? E porquê?

Apenas porque o próprio Fernando Pessoa, na encenação da sua vida interior, assim o disse, sem explicar a razão dessa surpreendente escolha. E surpreendente já que, referindo-se ao Alberto Caeiro, ele havia escrito na carta dos heterónimos: “
Caeiro, como disse, não teve mais educação que quase nenhuma – só instrução primária”.E também porque, acrescentara, que, após ter escrito “os trinta a tal” poemas que, prèviamente havia intitulado de “Guardador de Rebanhos”, encontrara o seu Mestre. Não explicou, nem o jovem Casais Monteiro lhe levantou essa questão, porque é que alguém, com “quase nenhuma educação” e “só com a instrução primária”, lhe podia surgir, assim de súbito como Mestre, – a ele Fernando Pessoa, com a sua enorme cultura e com a sua instrução de nível universitário. Aliás, esta sua afirmação, decorria, com uma certa lógica, da publicação, no nº 30 da revista “Presença”, – de que, relembre-se, o Casais Monteiro era director -, de um texto, assinado pelo Álvaro de Campos, com o título: “Notas para recordação do meu Mestre Caeiro”. Mais tarde, em 1960, na já citada edição da Obra Poética do Fernando Pessoa, da Editorial José Aguilar, do Rio de Janeiro, apareceu um texto, assinado pelo Ricardo Reis, em que, num estilo completamente diferente do usado pelo Campos, faz uma análise crítica, da poesia do Alberto Caeiro, atribuindo-lhe um sentido profundamente inovador, enquadrado por uma filosofia perfeitamente coerente. Se não deixa escrito que também ele, Ricardo Reis, o tomava como Mestre, a verdade é que o assumiu através de uma das suas mais conhecidas Odes,- aquela com que abre o Livro I.

O Fernando Pessoa, fez aquela surpreendente afirmação, na carta de 1935, mas a justificação teórica dessa essa surpresa, “mandou-a” dar aos seus outros dois heterónimos, desse modo dando azo a que se possa considerar, que essa justificação não seria possível, segundo a maneira de pensar e de ser do Fernando Pessoa-ele-mesmo. E é, realmente, essa a conclusão que me permito tirar…

As “Notas” do Álvaro de Campos, publicadas na “Presença”, como tudo o que foi editado em vida do Fernando Pessoa, são um trecho, trabalhado, bem estruturado e completo. O que não acontece com o texto assinado pelo Ricardo Reis e, pela primeira vez editado em 1960, que tem lacunas e que, pela sua curta extensão, dá ideia de que iria merecer um maior aprofundamento.

Mas a maior homenagem prestada ao
poeta guardador de rebanhos, foi-nos deixada por dois maravilhosos poemas que se seguem.


Mestre, meu mestre querido!
Coração do meu corpo intelectual e inteiro!
Vida da origem da minha inspiração!
Mestre, o que é feito de ti nesta forma de vida?
Não cuidaste se morrerias, se viverias, nem de ti nem de nada,
Alma abstracta e visual até aos ossos,
Atenção maravilhosa ao mundo exterior sempre múltiplo,
Refúgio das saudades de todos os deuses antigos,
Espírito humano da terra materna,
Flor acima do dilúvio da inteligência subjectiva…

Mestre, meu mestre!
Na angústia sensacionista de todos os dias sentidos,
Na mágoa quotidiana das matemáticas de ser,
Eu, escravo de tudo como um pó de todos os ventos,
Ergo as mãos para ti, que estás longe, tão longe de mim!

Meu mestre e meu guia!
A quem nenhuma coisa feriu, nem doeu, nem perturbou,
Seguro como um sol fazendo o seu dia involuntariamente,
Natural como um dia mostrando tudo,
Meu mestre, o meu coração não aprendeu a tua serenidade,
Meu coração não aprendeu nada,
Meu coração não é nada,
Meu coração está perdido.

Mestre, só seria como tu se tivesse sido tu.
Que triste a grande hora alegre em que primeiro te ouvi!
Depois tudo é cansaço neste mundo subjectivado,
Tudo é esforço neste mundo onde se querem coisas,
Tudo é mentira neste mundo onde se pensam coisas,
Tudo é outra coisa neste mundo onde tudo se sente.
Depois, tenho sido como um mendigo deixado ao relento
Pela indiferença de toda a vila.
Depois, tenho sido como as ervas arrancadas,
Deixadas aos molhos em alinhamentos sem sentido.
Depois, tenho sido eu, sim eu, por minha desgraça,
E eu, por minha desgraça, não sou eu, nem outro nem ninguém.
Depois, mas porque é que ensinaste a clareza da vista,
Se não me podias ensinar a ter a alma com que a ver clara?
Por que é que me chamaste para o alto dos montes
Se eu, criança das cidades do vale, não sabia respirar?
Por que é que me deste a tua alma se eu não sabia o que fazer dela,
Como quem está carregado de ouro num deserto,
Ou canta com voz divina entre ruínas?
Por que é que me acordaste para a sensação e a nova alma,
Se eu não saberei sentir, se a minha alma é de sempre a minha?

Prouvera ao Deus ignoto que eu ficasse sempre aquele
Poeta decadente, estupidamente pretensioso,
Que poderia ao menos vir a agradar,
E não surgisse em mim a pavorosa ciência de ver.
Para que me tornaste eu? Deixasses-me ser humano!

Feliz o homem marçano,
Que tem a sua tarefa quotidiana normal, tão leve, ainda que pesada,
Que tem a sua vida usual,
Para quem o prazer é prazer e o recreio é recreio,
Que dorme sono,
Que come comida
Que bebe bebida, e por isso tem alegria.

A calma que tinhas, deste-ma, e foi-me inquietação.
Libertaste-me, mas o destino do homem é ser escravo.
Acordaste-me, mas o destino do homem é dormir.



ALVARO DE CAMPOS 15/4/1928


Mestre, são plácidas
Todas as horas
Que nós perdemos,
Se no perdê-las,
Qual numa jarra,
Nós pomos flores.

Não há tristezas
Nem alegrias
Na nossa vida.
Assim saibamos,
Sábios incautos,
Não a viver,

Mas decorrê-la,
Tranquilos, plácidos,
Tendo as crianças
Como nossas mestras
E os olhos cheios
De Natureza…

À beira-rio,
À beira-estrada,
Conforme calha,
Sempre no mesmo
Leve descanso
De estar vivendo.

O Tempo passa,
Não nos diz nada.
Envelhecemos.
Saibamos, quase
Maliciosos,
Sentir-nos ir.

Não vale a pena
Fazer um gesto.
Não se resiste
Ao deus atroz
Que os próprios filhos
Devora sempre.

Colhamos flores.
Molhemos leves
As nossas mãos
Nos rios calmos,
Para aprendermos
Calma também.

Girassóis, sempre
Fitando o sol,
Da vida iremos
Tranquilos, tendo
Nem o remorso
De ter vivido.


RICARDO REIS 12/6/1914


O Campos, de um modo explícito e dramático e o Reis de um modo contido e interiorizados, ambos se assumem como discípulos do Caeiro. Um, sentindo tudo de todas as maneiras, outro, pensando tudo de todas as maneiras, mas ambos evocando o Mestre, cada um a seu modo.

Até hoje, ainda não saiu da prodigiosa “arca-que-já-o-não-é”, – o seu conteúdo está agora, devidamente (?) catalogado na Biblioteca Nacional –, nenhum texto em que o Fernando Pessoa, ele-próprio, nos explique a razão porque, em Janeiro de 1935, se assumiu como discípulo do poeta, guardador de rebanho. Esse silêncio conduz-nos à busca do que parece ser uma intencional omissão.

Da análise que fizemos mais atrás da génese dos heterónimos, foi deixado claro que eles surgiram na imaginação do Poeta, inicialmente de modo imprevisto, como uma saída para os impasses que o seu pensamento foi sofrendo, no aprofundamento dos problemas do Ser e do Estar.

A poesia em inglês,da sua adolescência em Durban, na África do Sul, escrita sob a influência directa dos poetas ingleses considerados clássicos, é também ela uma escrita em termos de um grande formalismo clássico, por isso sujeita ao espartilho da métrica e da rima. Espartilho que ele tentou quebrar, mais tarde, já em Lisboa, procurando temas tão ousados que, como ele próprio confessou aos seus “discípulos”da “Presença”, nunca seria capaz de utilizar em português. Há excepções, “
35 sonets”, “Inscriptions” ou “The mad fiddler”, e alguns poemas avulsos. Mas são excepções, mais no tema, que não no estilo; desse só se libertará e criará um caminho novo, na poesia em português. Antes disso, foi e é, um poeta inglês, do século dezanove, que a Inglaterra desconhece. Embora tenha continuado sempre a escrever poemas em inglês, mesmo até 1935, ano da sua morte, não deixa de ser curioso referir que esses poemas dispersos se assemelham à traduções de poemas portugueses para inglês… Um Eng. Álvaro de Campos “traduzido” para inglês…

Mas essa libertação foi lenta. Com vinte anos, a beleza do que nos deixou ,decorre do sonho de poder viver uma outra vida e da amargura de sentir amarrado ao vazio do seu viver quotidiano. E este trajecto só nos surgiu com alguma clareza, depois da edição crítica, da Imprensa Nacional, que apresentou, em volumes separados, os poemas não atribuíveis a qualquer dos heterónimos, de 1915/1920, 1921/1930, 1931/1933 e 1934/1935. E mais claramente ainda, quando a Editorial “Assírio & Alvim” começou a publicar a Obra do Fernando Pessoa, sob a direcção do Richard Zenith, um americano que veio para Portugal, “viver” a sua paixão pelo nosso grande poeta e nos ofereceu, nos seus prefácios, uma visão inovadora de toda a Obre pessoana. Com uma equipa de reconhecida competência, fez um nova leitura dos originais do espólio de Pessoa, existentes na Biblioteca Nacional e cuja difícil caligrafia tem criado variações nos textos editados . No volume em que começa a apresentar a poesia do Fernando Pessoa-ele-próprio, de 1908/1914, claramente se constata a evolução do jovem Pessoa, do seu amadurecimento, tanto temático como estilístico.

E vale a pena determo-nos um pouco por aqui, para melhor se compreender o surgimento dos heterónimos.

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segunda-feira, 29 de junho de 2009

Ainda os heterónimos - O Mestre

Na carta, já aqui referida, escrita pelo Fernando Pessoa, ao então jovem director da revista “Presença”, Adolfo Casaes Monteiro, – a célebre carta da génese dos heterónimos! -, para além das muitas particularidades com que ornamenta os poetas “que lhe foram surgindo”, referindo-se ao Alberto Caeiro, nascido, “Guardador de Rebanhos”,escreve :”Abri com um título, “O Guardador de Rebanhos”. E o que se seguiu foi o aparecimento de alguém em mim, a quem dei desde logo o nome de Alberto Caeiro. Desculpe-me o absurdo da frase: aparecera em mim o meu mestre.”
Com o detalhe com que me julguei capaz, procurei, mais atrás, fazer uma leitura desta carta, na parte a que se refere à génese do heterónimos, mais compatível com a realidade, procurando compreender o verdadeiro sentido do que o poeta escreveu, tomando esse texto como uma parábola. Sendo, como também o disse, um documento duma enorme importância, ele só se enquadra na realidade da sua obra, tal como ela tem vindo a surgir da famosa arca, - comparando datas, atribuições de autoria hesitante e até, em muitos casos, radicalmente, opostas -, se entendermos o que o Fernando Pessoa pensava, ao encenar um verdadeiro drama-em-gente, criando personagens, atribuindo-lhes idades e características físicas precisas, indicando, por exemplo, a data do falecimento de um desses personagens (precisamente o Alberto Caeiro), e o exílio voluntário de um outro ( o Ricardo Reis).
E passo a citar o que está escrito nessa carta:

“Ricardo Reis nasceu em 1887 (não me lembro o dia e o mês, mas tenho-os

algures) Porto, é médico e está presentemente no Brasil. Alberto Caeiro nasceu em
1889 e morreu em 1915; nasceu em Lisboa, mas viveu Não teve profissão nem educação quase alguma. Álvaro de Campos nasceu
em Tavira, no dia 15 de Outubro de 1890 (à 1.30 da tarde, diz-me o Ferreira Gomes, e é verdade, pois, feito o horóscopo para essa hora está certo). Este, como sabe
é Engenheiro naval (por Glasgow) , mas agora está aqui em Lisboa em inactividade. Caeiro era de estatura média, e, embora realmente frágil (morreu tuberculoso)
não parecia tão frágil como era. Ricardo Reis é um pouco, mas muito pouco, mais baixo, mais forte, mais seco. Álvaro de Campos é alto (1m,,75 de altura – mais
2 cm. do que eu) magro e um pouco tendente a curvar-se. Cara rapada, todos – Caeiro, louro sem cor; Reis, de um vago moreno mate; Campos entre o branco e
moreno, tipo vagamente judeu português, cabelo porém liso e, normalmente apartado ao lado, monóculo.”,

Embora todo o texto pareça um relato minucioso de factos, situações e pessoas de existência real, tudo se passava, de facto, na imaginação do poeta. O que pretenderia, afinal, o Fernando Pessoa que o seu correspondente pensasse? Parece uma pergunta descabida, mas ela tem todo o sentido, se me é permitido afirmá-lo. Possivelmente, e porque se tratava de interlocutores de elevado nível cultural, o que o Poeta pretenderia, era, apenas, que o jovem Casaes Monteiro entendesse desta forma: “ É assim que eu “vejo” toda esta questão”. E era assim que se passava dentro de si próprio, como já tive ocasião de sugerir, numa entrada de 31 de Agosto do ano passado. Julgo que quem deu realidade pessoal aos heterónimos, foram os que fizeram uma leitura por excesso. Ou seja: aceitaram tudo como realidade.

Antes de passar adiante, julgo de muito interesse a transcrição de um texto do Fernando Pessoa, que se encontrou na arca, sem data nem assinatura e que veio a ser editado, pela primeira vez, em 1960, em “ Fernando Pessoa – Obra Poética”, da Editora José Aguilar, de São Paulo, Brasil. Considero que a questão dos heterónimos fica arrumada, com a palavra do próprio poeta. Este texto surge, na citada edição, como “Nota preliminar” a “Ficções de interlúdio”, livro onde o poeta, em muitos dos seus projectos editorais deixados junto dos seus papéis, incluiria, em conjunto, as poesias do Ricardo Reis, do Alberto Caeiro e do Álvaro de Campos, excluindo dessas “ficções” a poesia assinada por si próprio. Numa primeira parte desse texto, explica as diferenças de estilos dos três poetas, abordando ainda a prosa do Livro do Desassossego, e as semelhanças e as diferenças, entre o seu modo de pensar e de escrever e o modo de pensar e de escrever do Bernardo Soares, encerrando essa dissertação com este significativo parágrafo:

“Nos autores da “Ficções de interlúdio não são só as ideias e os sentimentos que se distinguem dos meus: a mesma técnica de composição, o mesmo estilo, é
diferente do meu. Aí cada personagem é criada integralmente diferente, e não apenas diferentemente pensada. Por isso nas “Ficções de Interlúdio” predomina o verso. Em prosa é mais difícil de outrar.”

E mais adiante, depois de analisar as diferenças, dentro da divisão que Aristóteles deu à poesia, – lírica, elegíaca, épica e dramática –, acrescenta:

“Por qualquer motivo temperamental que não me proponho analisar, nem importa que analise, construí dentro de mim várias personagens diversas entre si e
de mim, personagens essas a que atribuí poemas vários, que não são como eu, nos meus sentimentos e ideias, os escreveria.
Assim têm estes poemas de Caeiro, os do Ricardo Reis e os do Álvaro de Campos que ser considerados. Não há que buscar em quaisquer deles ideias ou
sentimentos meus, pois muitos deles exprimem ideias que não aceito, sentimentos que nunca tive. Há simplesmente que os ler como estão, que é aliás como se
deve ler.
Um exemplo: escrevi com sobressalto e repugnância o poema oitavo do “Guardador de Rebanhos”, com a sua blasfémia infantil e o seu antiespiritualista absoluto.
Na minha pessoa própria e aparentemente real, com que vivo social e objectivamente, nem uso de blasfémia, nem sou antiespiritualista. Alberto Caeiro, porém,
como eu o concebi, é assim: assim tem pois de escrever, quer eu queira quer não, quer eu pense como ele ou não. Negar-me o direito de fazer isto seria o mesmo
que negar a Shakespeare o direito de dar expressão à alma de Lady Macbeth, com o fundamento de que ele, poeta, não era mulher nem, que se saiba,
histero-epiléctico, ou de lhe atribuir uma tendência alucinatória e uma ambição que não recua perante o crime. Se assim é das personagens fictícias de um drama,
é igualmente lícito das personagens fictícias sem drama, pois que é lícito porque ela são fictícias e não porque estão num drama
Parece escusado explicar uma coisa de si tão simples e intuitivamente compreensível. Sucede, porém, que a estupidez humana é grande e a bondade humana não
é notável.”

Aliás, é este prodígio que tem espantado o Mundo literário: várias e maravilhosas poesias, de diferente forma e conteúdo, num só poeta, o Fernando Pessoa! Este é um dado, que, neste momento pretendo deixar assim, esperando que outros, mais capazes, desmontem este ponto de vista, que é apenas meu. O que me levou a abordar o tema e a fazer as citações que fiz, tem a ver com uma outra questão, que julgo de interesse aprofundar: Caeiro, o Mestre? Porquê?
Será muito razoável usar, desde já, de uma medida profiláctica, e que é a de ter a noção bem clara de que, se há estudiosos, muito respeitáveis, que conseguem apresentar uma lista com dezenas de heterónimos, encontrados nos papéis que o Pessoa nos deixou, a verdade é que, literariamente, podemos falar de cinco heterónimos, em língua portuguesa: o Alberto Caeiro, o Ricardo Reis, o Álvaro de Campos, o Bernardo Soares e o António Mora. Tudo resto me parecem simples experiências, inconsequentes, sem obra que justifique a sua distinção como autor. O Barão de Teive, pareceu, em dada fase, que iria ser o responsável pelo “Livro do Desassossego”, mas, muito rapidamente, a melodia em que se tornou o Livro, se autonomizou e, sobretudo, se afastou completamente, do modo de pensar do Barão de Teive, aparecendo, então, essa figura, hoje universal, do guarda-livros, Bernardo Soares. E do Barão ficaram os apontamentos para “A Educação de um Estóico”, que começam e acabam no meio, – se me é permitida a expressão.
O António Mora é um caso deveras especial: começou por ser uma figura que entrava numa novela, que o Fernando Pessoa começou a escrever, chamada “ A Casa de Saúde de Cascais”. E o Mora estava lá em tratamento, tendo uma postura muito original, que o leva a discutir, com o autor da novela, numa altura em que ele, – é assim que o Fernando Pessoa o narra –, foi visitar o estabelecimento de saúde de Cascais, que, como está bem de ver, era destinado a loucos mansos…
O Pessoa, parou com a novela, como aliás, fez com muitas outras, e começou a escrever um tipo de prosa, de apologia do “Regresso dos Deuses”, que era o motivo central da conversa do António Mora na Casa de Saúde. Daí, a reparar que o Ricardo Reis também tinha uma costela panteísta, foi um instante. E eis que os põe a discutir o tema, cada um dentro de um estilo muito próprio. O Reis, com o seu brilhante espírito de síntese e o Mora, sempre numa prosa abundante e nem sempre muito objectiva. Mas a verdade é que, em termos meramente quantitativos, o António Mora escreveu incomensuravelmente mais do que os seus colegas pessoanos. O volume da Edição Crítica, da Imprensa Nacional, referente à obra do António Mora, tem 389 páginas de denso texto!
Portanto parece-me perfeitamente legítima a questão: Caeiro, o Mestre? E porquê?

quinta-feira, 1 de janeiro de 2009

O Ortónimo I






Dois poemas de Fernando Pessoa traduzidos para chinhês



O Ortónimo


A esta minha perspectiva da génese heteronímica do Fernando Pessoa, entendo de acrescentar que tenho um enorme respeito pela famosa carta, como documento importantíssimo que é, no estudo desta questão: é a declaração mais importante e detalhada daquilo a que o Poeta chamou, o seu “drama em gente”. Aos que, mais tarde, como o Gaspar Simões, vieram gritar, histericamente.” Fomos enganados! Ele fingiu!”, aconselharia a retirarem do poema “Autopsicografia” a mensagem correcta:

O Poeta é um fingidor.
Finge tão completamente
Que chega a fingir que é dor
A dor que deveras sente
.

Ele sentia-se vários, sentia de modos diferentes, chegava a pensar de modos opostos e contraditórios. Ele sentiu isso deveras, e quis transmiti-lo também ,e ficará sempre para o Casais Monteiro, a glória de ter sido o escolhido para ser o o seu Arauto.


Portanto os Heterónimos só existem, porque existiu o Ortónimo já que dele fazem parte integrante e indissolúvel.Os Heterónimos são diferentes estados de Alma do mesmo Poeta.
.

Toda esta magia tem a sua origem, afinal, no Fernando António Nogueira Pessoa, nascido no dia 13 de Junho de 1888, às 3 horas e 20 minutos, em casa de seus Pais, Joaquim Seabra Pessoa e Maria Madalena Xavier Pinheiro Nogueira, no Largo de S. Carlos nº 4 – 4º Esq., em Lisboa. Aos sete anos escreveu, por seu punho, a primeira poesia, dedicada, como não poderia deixar de ser, a sua Mãe:

À minha querida mamã

Eis-me aqui em Portugal
Nas terras onde nasci.
Por muito que goste delas,
Ainda gosto mais de ti

Fernando Pessoa 26/7/1895

Desta pequena semente, germinou a mais frondosa das árvores, que se multiplicou numa imensa e luxuriante Floresta, a qual veio, por fim, a cobrir, de modo avassalador, o Mundo inteiro!

O facto de ter vivido, até aos seus dezassete anos, em Durban, onde o Padrasto tinha sido colocado como Consul de Portugal, determinou que a sua instrução escolar fosse feita em língua inglesa, tendo, essa aprendizagem sido brilhante, ao ponto de haver recebido o Queen Victoria Memorial Prize, para o melhor ensaio, no exame de candidatura à Universidade.

A poesia inglesa surgiu na sua adolescência e manteve-se viva durante muito anos, primeiro como único caminho poético e depois, já de regresso a Portugal, acompanhada da primeira poesia em português, até que, sem nunca esquecer a língua inglesa, que se tornou, aliás, a sua ferramenta profissional, passou a sentir apenas em português. As primeiras poesias em português que foram recuperadas da famosa arca, datam de 1908, tendo o Fernando Pessoa, portanto, 20 anos. É ainda uma poesia presa à rima e ao sentido clássico, tanto na forma como no conteúdo . Era a fase em que os seus sentimentos procuravam as palavras para se exprimirem e, subconscientemente, as encontrava por tradução…

Vamos encontrar, com data do de 8/4/1911 o primeiro grande poema,, dos que estão traduzidos em mais de trinta idiomas: O Sino da Minha Aldeia :


Ó sino da minha aldeia,
Dolente na tarde calma,
Cada tua badalada
Soa dentro da minha alma.

É tão lento o teu soar
Tão como triste da vida,
Que já a primeira pancada
Tem o som de repetida.

Por mais que me tanjas perto,
Quando passo, sempre errante,
És para mim como um sonho,
Soas-me na alma distante.

A cada pancada tua
Vibrante no céu aberto,
Sinto mais longe o passado.
Sinto a saudade mais perto.

Sem que o Fernando Pessoa disso se apercebesse, começara o milagre da sua multiplicação. O génio que o possuía, ràpidamente ultrapassou os limites da sua capacidade poética de então. Cêdo começou a busca de outros caminhos, na procura das verdades eternas, que êle entrevia através das palavras novas e das ideias novas que o seu pensamento buscava.

As palavras são a materialalização das ideias e das intuições que surgem no nosso pensamento,as quais só se revelam e se tornam realidade, quando encontram as palavras que as enformam em toda a sua extensão. Juntas, como por milagre, formam os juízos e saiem para o mundo para o enriquecer e assim quebrar o silêncio de que, interiormente, todos somos feitos. E assim procuramos encontrar os outros ; as palavras são os gestos da nossa Alma e a chave para abrir o Mundo. E, quando chamadas pela Música, ganham asas, voam, e criam a Poesia.

E, no entanto, com a chave nas mãos, vivemos a angústia de não encontrar a Porta para abrir. São os Poetas, a ponte entre o que somos e sentimos e o que quereríamos ser e quereríamos sentir. São dêles as palavras novas, que não soubemos encontrar, e com as quais “
nos fingimos mais alto e ao pé de qualquer Paraízo”. São eles que nos ajudam a encontrar o caminho.

A poesia do Fernando Pessoa, transformou-se nessa busca da Luz, ciente de que só se encontra a Luz a partir da escuridão. E avançou sempre, sentindo que a simplicidade na aceitação da natureza das coisas poderia ser o caminho. Mas a Natureza e as coisas da Natureza, não conseguem dialogar connosco: são apenas o eco dos nossos sentimentos. E êle procurou ir mais além, aceitando o que lhe parecia necessário aceitar, procurando a Beleza como justificação para essa aceitação que, no fundo, era uma aceitação redutora, pois não havia espaço para sentir. Foi quando procurou sentir tudo e de todas as maneiras, voluntàriamente esquecendo as consequência que tal ousadia poderia acarretar . Mas foi indo sempre, por esse caminho novo, à procura da Porta para a abrir com a Chave, que nas suas mãos encontrara. E levou-nos com êle.

E assim viveu uma aventura poética sem igual,que legou ao Mundo, e que nos legou a cada um de nós. As últimas palavras que ecreveu, num papel que pediu á Enfermeira, no dia anterior a morrer, têm o sentido profundo de toda a sua vida: “
I know not what tomorrow, will bring”. Num estranho inglês, deixou-nos este pensamento: "Não sei o que o amanhã trará". Não tinha encontrado em vida, a Porta que tão denodadamente procurara . Talvez no dia seguinte, 30 de Novembro de 1935, tudo se viesse a resolver.

Entre a quadra que dedicou à sua Mãe, em 26 de Jullho de 1895 e a angustiosa dúvida sobre o que o amanhã lhe traria, passaram-se apenas 40 anos, dos 47 que somou a vida do Poeta. E depois, se a imagem me é permitida, nasceu e cresceu a sua Imortalidade. Com uma rapidez surpreendente, a sua poesia foi sendo traduzida para mais de tres dezenas de línguas diferentes, sendo estudada nas mais reputadas universidade de todo o Mundo, tornando assim,Fernando Pessoa, e pela voz dos críticos estrangeiros, o maior poeta do século XX e um dos maiores poetas de todos os tempos. A poesia do Fernando Pessoa é tratada, em Portugal, ou como tese de caracter universitário ou como matéria para exames escolares, atribuindo-se-lhe uma complexidade que ela, definitivamente ,não tem.É o que tentarei demonstrar a seguir