Ascensão
Quanto mais desço em mim mais subo em Deus…
Sentei-me ao lar da vida e achei-o frio,
Mas pus tão alta fé nos sonhos meus
Que ardente rio
Do puro Compreender e alto Amor
Da chama espiritual e interior
Deu nova luz ao meu alheio olhar
E às minhas faces cor…
E esta fé, esta lívida alegria
Com que, alma de joelhos, creio e adoro,
É a minha própria sombra que me guia
Para um fim que eu ignoro…
Porque Deus fez de mim o seu altar
Quando Ele me nasceu tal como sou,
Se p’ra minha alma volvo um quase-olhar
Não me vejo onde estou.
Eu tenho Deus em mim… Em Deus existo.
Quando crê, cega, acho-a minha fé calma…
Maria-Virgem concebeu um Cristo
Dentro da minha alma…
Alma fria de altura; que os seus céus
Dentro em si própria acha… Para si morta
Em Deus… Mas o que é Deus? E Existe Deus?
Isso que importa?
Manibus data lilia plenis
Cheia de lírios
Tuas mãos estende
Para os meus martírios…
Estende e fica assim
Nem sonho de gesto
Vá desde mim
Até tuas mão,
Para receber
Os teus lírios vãos…
Olhando, só olhando
Até a vida ir
Ficarei, amando
Como o mero ver
Só a ideia, só –
Dos lírios receber…
Fica sem mudança
Assim – P’ra quê os gestos
Se mesmo olhar cansa?
Como duas figuras
De um baixo relevo,
Por só-arte puras,
Assim ficaremos
Porque a nossa vida
Dorme sobre remos…
Mãos sempre estendidas
Eu sempre só olhando
Duas hirtas vidas
‘Té que nos achemos
Vendo-nos de fora
Mero quadro… Sonhemos…
Sempre à margem de hoje…
Tão inutilmente
A vida nos foge!
FERNANDO PESSOA, 10 DE JANEIRO DE 1913
Ironia
Faz uma casa onde outro pôs uma pedra.
O galego Colón, de Pontevedra,
Segui-nos para onde nós não fomos,
Não vimos da nossa árvore esses pomos.
Um império ganhou para Castela
Para si glória merecida – aquela
De um grande longe aos mares conquistando.
Mas não ganhou o tê-lo começado.
FERNANDO PESSOA, 10 DE JANEIRO DE 1922
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