terça-feira, 31 de março de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS



As fadas dançam no ermo
Sem ninguém as poder ver -
Nessa clareira sem termo
Que é cercada de esquecer...

Dançam num ritmo diverso
Do que a vida faz e canta,
Que é um poema sem ter um verso
E sem se ouvir nos encanta.

Tal é a dança que a aragem
Interrompe e nos vem dar.
É só ruído da folhagem?
O que fiz foi uma viagem
Ou só não quero sonhar?


FERNANDO PESSOA, 31 DE MARÇO DE 1934

segunda-feira, 30 de março de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS




Não tenho quinta nenhuma.
Se a quero ter p'ra sonhar,
Tenho que a extrair da bruma
Do meu mole meditar.

E então, desfazendo a névoa
Que há sempre dentro de nós,
Progressivamente elevo-a
Até uma quinta a sós.

Vejo os tanques, vejo as calhas
Por onde a água vai pequena,
Vejo os caminhos com falhas,
Vejo a eira erma e serena.

E, contente deste nada
Que em mim mesmo faço externo,
Gozo a frescura relvada
Da não-quinta em que me interno.

Vilegiatura impossível,
Dou-lhe nós para lembrar,
E esqueço-a ao primeiro nível
Do meu mole meditar.

FERNANDO PESSOA, 30 DE MARÇO DE 1931

domingo, 29 de março de 2020

FAZ HOJE 91 ANOS




Aqui está-se sossegado.
Longe do mundo e da vida,
Cheio de não ter passado,
Até o futuro se olvida.
Aqui está-se sossegado.

Tinha os gestos inocentes,
Seus olhos riam no fundo.
Mas invisíveis serpentes
Faziam-na ser do mundo.
Tinha os gestos inocentes.

Aqui tudo é paz e mar.
Que longe a vista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde!
Aqui tudo é paz e mar.

Sim, poderia ter sido...
Mas vontade nem razão
O mundo têm conduzido
A prazer ou conclusão.
Sim, poderia ter sido.

Agora não esqueço e sonho.
Fecho olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que vejo azul a esverdear.
Agora não esqueço o sonho.

Não foi propósito, não.
Os seus gestos inocentes
Tocavam no coração
Como invisíveis serpentes.
Não foi propósito, não.

Durmo, desperto e sozinho.
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho -
Um movimento sem lida...
Durmo, desperto e sozinho.

Nada explica nem consola.
Tudo está certo depois.
Mas a dor que nos desola,
A mágoa de um não ser dois -
Nada explica nem consola.

FERNANDO PESSOA, 29 DE MARÇO DE 1929

sábado, 28 de março de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS



D. JOÃO
INFANTE DE PORTUGAL

Não fui alguém. Minha alma estava estreita
Entre tão grandes almas minhas pares,
Inutilmente eleita,
Virgemmente parada;

Porque é do português, pai de amplos mares,
Querer, poder só isto:
O inteiro mar, ou a orla vã desfeita -
O todo, ou o seu nada.

FERNANDO PESSOA, 28 DE MARÇO DE 1930

sexta-feira, 27 de março de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS




Com que revolta me reconheço
Sempre esquecido do que eu amei!
O sol luz claro, o céu azul
Dá aos sentidos a lucidez
O vento é brando, neste amplo sul,
E os mortos morrem segunda vez.

FERNANDO PESSOA, 27 DE MARÇO DE 1934

quinta-feira, 26 de março de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS



AS ILHAS AFORTUNADAS

Que voz vem no som das ondas
Que não é a voz do mar?
É a voz de alguém que nos fala,
Mas que, se escutamos, cala,
Por ter havido escutar.

E só se, meio dormindo,
Sem saber de ouvir ouvimos,
Que ela nos diz a esperança
A que, como uma criança
Dormente, a dormir sorrimos.

São ilhas afortunadas,
São terras sem ter lugar,
Onde o Rei mora esperando.
Mas, se vamos despertando,
Cala a voz, e há só o mar.

FERNANDO PESSOA, 26 DE MARÇO DE 1934

quarta-feira, 25 de março de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS




No meio da noite
Enquanto a dormir
Jaz tudo em meu torno
Sem eu o ouvir,

No meio da noite
Medito o que sou...
Às vezes o vento
Quando começou

De repente cessa
E é inútil ouvir
Pois tudo acabou
Sem se conseguir.

FERNANDO PESSOA, 25 DE MARÇO DE 1931

terça-feira, 24 de março de 2020

FAZ HOJE 97 ANOS



Depois de me ver ao espelho,
Sem mais, devolvo o retrato.
Sou tão feio e estou tão velho
Que era mais que um desacato
Não devolver o retrato
Ou só com a condição...
Dê-me, em troca, só perdão.

FERNANDO PESSOA, 24 DE MARÇO DE 1923

segunda-feira, 23 de março de 2020

FAZ HOJE 90 ANOS




Vieram com o ruído e com a espada
Senhores do destino após vencer
E uma após outra foi cada mulher
Os sucessores esconder da estrada.

Eram soldados, com a ordem dada
E vinham sobriamente recolher
O sangue das crianças a morrer
Nos escombros da própria casa achada.

Mais longe, sobre o asno do destino,
Levava a Mãe piedosa aquela dor
Futura que era agora o seu Menino.

Apertava-o ao peito, sob a vaga luz
Que toldava mais as árvores ao sol pôr.
De uma, talvez, seria feita A Cruz.

FERNANDO PESSOA, 23 DE MARÇO DE 1930

domingo, 22 de março de 2020

FAZ HOJE 106 ANOS



AURORA SOBRE O MAR DESCONHECIDO

Mãos brancas (meras mãos sem corpo e sem braços)
Acariciando um negro veludo...
Os olhos do guerreiro vistos por cima do escudo

(Cartas de luto sobre regaços)
E nunca desfraldado o estandarte
De modo a ver-se que cores e imagens tem...
Mãos sem lágrimas, mãos que nunca seriam de mãe...
Ah, não ser eu toda a gente e toda a parte!'

Dói púrpuras o silêncio, e que lírios a hora!
E nos tabernáculos das ocasiões um rito de timbres cobra
Os vitrais das passadas desilusões...

Cessou no Oposto o ruído de vagas batalhas
Ficou todo o espaço sendo, com túmulos (brancos) a Hora,
Um suspirar de guizos, com fimbrias de falhas...

Abrem-se de par em par impossíveis portões
E desabrocha a ira nos olhos de Artur
Dos vultos, na sombra, de leões...

Mas os dias acontecem oráculos neutros
E não há rituais, Princesa, senão de imperfeições...


FERNANDO PESSOA, 22 DE MARÇO DE 1914

sábado, 21 de março de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS




Vibra, clarim, cuja voz diz
Que outrora ergueste o grito real
Por D. João, Mestre de Avis,
E Portugal!

Vibra, grita aquele hausto fundo
Com que impeliste, como um remo,
Em El-Rei D. João Segundo
O Império extremo!

Vibra, sem lei ou com a lei,
Como aclamaste outrora em vão
O morto que hoje é vivo - El-Rei
D. Sebastião!

Vibra chamando, e aqui convoca
O inteiro exército fadado
Cuja extensão os pólos toca
Do mundo dado!

Aquele exército que é feito
De quanto em Portugal é o mundo
E enche este mundo vasto e estreito
De ser profundo!

Para a obra que há que prometer
Ao nosso esforço alado em si,
Convoca todos sem saber
(É a Hora!) aqui!

Os que, soldados da alta glória,
Deram batalhas com um nome,
E de cuja alma a voz da história
Tem sede e fome.

E os que, pequenos e mesquinhos,
No ver e crer da externa sorte,
Calçaram imperiais caminhos
Com vida e morte.

Sim, estes, os plebeus do Império,
Heróis sem ter para que o ser,
Chama-os aqui, ó som etéreo
Que vibra a arder!

E os que sonharam, enlevados
No Outro Império que sorri
Além do mundo e os céus fechados,
Aqui! Aqui!

E, se o futuro é já presente
Na visão de quem sabe ver,
Convoca aqui eternamente
Os que hão-de ser!

Todos, todos! A hora passa,
O génio colhe-a quando vai.
Vibra! Forma outra e a mesma raça
Da que se esvai!

A todos, todos, feitos num
Que é Portugal, sem lei nem fim,
Convoca, e, erguendo-os um a um,
Vibra, clarim!

E outros, e outros, gente vária,
Oculta neste mundo misto.
Seu peito atrai, rubra e templária,
A Cruz de Cristo.

Glosam, secretos, altos motes,
Dados no idioma do Mistério -
Soldados não, mas sacerdotes,
Do Quinto Império.

Aqui! Aqui! Todos que são
O Portugal que é tudo em si,
Venham do abismo ou da ilusão,
Todos aqui!

Armada intérmina surgindo,
Sobre ondas de uma vida estranha,
Do que por haver ou do que é findo -
É o mesmo: venha!

Vós não soubestes o que havia
No fundo incógnito da raça,
Nem como a Mão, que tudo guia,
Seus planos traça.

Mas um instinto involuntário,
Um ímpeto de Portugal,
Encheu vosso destino vário
De um dom fatal.

De um rasgo de ir além de tudo,
De passar para além de Deus,
E, abandonando o gládio e o escudo,
Galgar os céus.

Titãs de Cristo! Cavaleiros
De uma cruzada além dos astros,
De que esses astros, aos milheiros,
São só os rastros.

Vibra, estandarte feito som,
No ar do mundo que há-se ser.
Nada pequeno é justo e bom.
Vibra a vencer!

Transcende a Grécia e a sua história
Que em nosso sangue continua!
Deixa atrás Roma e a sua glória
E a Igreja sua!

Depois transcende esse furor
E a todos chama ao mundo visto,
Hereges por um Deus maior
E um novo Cristo!
Vinde aqui todos os que sois,
Sabendo-o bem, sabendo-o mal,
Poetas, ou santos, ou heróis
De Portugal.

Não foi p'ra servos que nascemos
Da Grécia ou Roma ou de ninguém.
Tudo negámos e esquecemos:
Fomos para além.
Vibra, clarim, mais alto! Vibra!
Grita a nossa ânsia já ciente,
Que o seu inteiro voo libra
De poente a oriente!

Vibra, clarim! A todos chama!
Vibra! E tu mesmo, voz a arder,
O Portugal de Deus proclama
Com o fazer!

O Portugal feito Universo,
Que reúne, sob amplos céus,
O corpo anónimo e disperso
De Osíris, Deus.

O Portugal que se levanta
Do fundo surdo do Destino,
E, como a Grécia, obscuro canta
Baco divino.

Aquele inteiro Portugal,
Que, universal perante a luz,
Reza, ante a Cruz universal,
Ao Deus Jesus.

FERNANDO PESSOA, 21 DE MARÇO DE 1934

quinta-feira, 19 de março de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS




Na nuvens brancas que lentam
Quando a chuva está à espera
A luz do sol faz uma orla
Que amarela e reverbera.

Parece aquele ouro que orla
Os panos para o caixão.
Salvo que as nuvens são brancas
E pretos os panos são.

Mas a verdade é a mesma
Por um mistério da vida
Por isso o ouro orla as nuvens
E os panos da despedida.

Nuvens brancas, panos negros,
Por mais que o queiram cobrir,
O mistério transparece
E orla-os de luz a sorrir.

Porque, enfim, o branco alegre
Ou o preto triste são
Cousa que o sol cria e mata
Na sua circunscrição.

FERNANDO PESSOA, 20 DE MARÇO DE 1931

FAZ HOJE 105 ANOS




Tange o sino, tange
Tange doloroso.
Cai como quer um alfange
No meu sonhar de gozo...
E o sino tange, tange
Lento e ao longe moroso.

E tange e plange ao longe
Aérea melodia...
Cada som é um monge
Na sua alva fria.
Tange o sino de bronze
No escurecer que esfria.

E em mim também é escura
A tarde do meu ser
E plange em mim, na lonjura
Do meu vago esquecer
Um sino ao longe, a agrura
De me saber ser.

FERNANDO PESSOA, 19 DE MARÇO DE 1911

quarta-feira, 18 de março de 2020

FAZ HOJE 86 ANOS



Colhe todas as rosas que encontrares!
Colhe até as que sonhas; com um laço
De erva comprida prende-as regulares,
E, assim em feixes, traze-as no regaço!

Vem até mim com essas rosas plenas
E eu saberei, entre elas, distinguir
As que são reais, porque são mais pequenas,
E, maiores, as fora de existir.

Mas é com realidade e ilusão,
Com um feixe de flores vindo e dado,
Que conseguimos dar ao coração
O prémio inútil que lhe nega o fado.

FERNANDO PESSOA, 18 DE MARÇO DE 1934

terça-feira, 17 de março de 2020

FAZ HOJE 89 ANOS



Toda esta noite choveu
Nos gargalinhos do poço.
Senhora Dona Maria,
Boquinha de cravo roxo.'

Esta quadra é popular.
Pergunto, quem é que a fez?
Deve ter sido tão jovem
Sentida a primeira vez!

Quem me dera poder ter
Sem cultura nem verdade
Aquela quadra por vida
E a vida por claridade!


FERNANDO PESSOA, 17 DE MARÇO DE 1931

segunda-feira, 16 de março de 2020

FAZ HOJE 85 ANOS




Ai que prazer
Não cumprir um dever,
Ter um livro para ler
E não o fazer!
Ler é maçada,
Estudar é nada.
O sol doura sem literatura.
O rio corre, bem ou mal,
Sem edição original.
E a brisa, essa,
De tão naturalmente matinal,
Como tem tempo não tem pressa.

Livros são papéis pintados com tinta.
Estudar é uma coisa em que está indistinta
A distinção entre nada e coisa nenhuma.

Quanto é melhor, quando há bruma,
Esperar por D. Sebastião,
Quer venha ou não!

Grande é a poesia, a bondade e as danças...
Mas o melhor do mundo são as crianças,
Flores, música, o luar, e o sol, que peca
Só quando, em vez de criar, seca.

O mais do que isto
É Jesus Cristo,
Que não sabia nada de finanças
Nem consta que tivesse biblioteca...

FERNANDO PESSOA, 16 DE MARÇO DE 1935