sexta-feira, 30 de novembro de 2018

FAZ HOJE 84 ANOS





Tantos poemas contemporâneos!
Tantos poetas absolutamente de hoje -
Interessante tudo, interessante todos...
Ah, mas é quase tudo...
É tudo vestíbulo
É tudo só para escrever...
Nem arte,
Nem ciência
Nem verdadeira nostalgia...
Este olhou bem o relevo desse cipreste...
Esse viu bem o poente por trás do cipreste...
Este reparou bem na emoção que tudo isso daria...
Mas depois?...
Ah, meus poetas, meus poemas - e depois?
O pior é sempre o depois...
É que para dizer é preciso pensar -
Pensar com o segundo pensamento -
E vocês, meus velhos, poetas e poemas,
Pensam só com a rapidez primária da asneira – e  é  pena -

Mais vale o clássico seguro,
Mais vale o romântico cantante,
Mais vale qualquer coisa, ainda que má,
Que os arredores inconstruídos duma qualquer coisa boa ...
'Tenho a minha alma!'
Não, não tens: tens a sensação dela.
Cuidado com a sensação!
Muitas vezes é dos outros,
E muitas vezes é nossa
Só pelo acidente estonteado de a sentirmos...



ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE NOVEMBRO DE 1934


quinta-feira, 29 de novembro de 2018

FAZ HOJE 84 ANOS




Quando os anjos são gente são crianças,
Crianças pequeninas que não crescem
Porque, como aqui são
Visitas, só, das nossas esperanças,
Sorriem para o nosso coração
Só um ano ou dois; depois desaparecem.

Será que o céu não pode aqui deixá-las
Mais que o tempo, tão pouco!, que há que dar
Para que o coração aprenda a amá-las,
E assim possa aprender a tudo amar?

Não sei... Talvez saudades da outra vida
As façam regressar depressa ao céu
Depois de estar sua missão cumprida -
Qualquer missão, por nós desconhecida,
De amor e paz, que Deus nos deu.

Vêm, sorriem, passam, como a flor
Deixa cair as pétalas já fanadas...

Ai, Maria Leonor,
Teus olhos cujo azul era o amor,
E as tuas pequenas mãos tão lindas!


FERNANDO PESSOA, 29 DE NOVEMBRO DE 1934


quarta-feira, 28 de novembro de 2018

FAZ HOJE 85 ANOS




Nas margens do rio verde
Que por verdes margens corre
Meu pensamento se perde.
Como se a alma o deserde,
Meu saber que penso morre.

Tão lento, tão afastado
Do propósito de um curso
Vai o rio, que o meu fado
Parece bem figurado
Nesse insciente percurso.

Nada lastimo nem peço.
Nada desejo nem creio.
No rio verde me esqueço
Até de que sou possesso
Da ausência do meu enleio.

Nada, nem remos nem velas,
Turvam a água do rio.
E, quando anoitece, aquelas
Ondas vão sob as estrelas
No seu mesmo nada a fio.

Nada? Não. No meu olhar
E no que penso por ver
É que há um rio a mudar,
É que há 'sperança de um mar,
Mas nem' desejo de o ter.


FERNANDO PESSOA, 28 DE NOVEMBRO DE 1933


terça-feira, 27 de novembro de 2018

FAZ HOJE 94 ANOS




Marinheiro-Monge
Desta mar profundo
Rema-me p'ra longe
De eu sentir o mundo.

Rema, e de teus braços
O angular potente
Que impele o barco apague os traços
Do meu sentir doente!

Chia a 'spuma e alveja
'Spuma é o mundo certo.
Como a água contra nós fresqueja
'Spelhando tão perto!

Marinheiro-Monge
Deste mar de além,
Leva-me p'ra longe
De se qu'rer um bem!

Como pesa a vida
Se ela nos não fôr
Mais indefinida
Do que peso e dor!

Rema, e olha-me mudo,
Vendo sem visão,
Quero sentir tudo
Sem ter coração!

Marinheiro-Monge
Deste mar sem fim,
Rema p'ra longe
Do que sou p'ra mim!

FERNANDO PESSOA, 27 DE NOVEMBRO DE 1924