sábado, 31 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS



Por mais que tente, não me desembrulho.
Há qualquer coisa de confuso em mim.
Lá pela a confusão não dar barulho,
Não quer dizer que lhe não seja afim.


Na noite informe ao luar brilha o jardim.
O mar ao longe dorme o seu marulho.
Que quieto é tudo! Como até o orgulho
De poder ser alguém aqui tem fim!


Como nesta nocturna quietação
Tudo se acalma e até se desconhece
No fundo ignoto do ermo coração.


Ah, com que quantidade tudo esquece!
Como tudo é silêncio e confusão
Onde só o som das árvores estremece!


FERNANDO PESSOA, 31 DE DEZEMBRO DE 1932

sexta-feira, 30 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 83 ANOS



NATAL




Natal. Na província neva.
Nos lares conchegados
Um sentimento conserva
Os sentimentos passados.


Coração oposto ao mundo,
Como a família é verdade!
Meu pensamento é profundo,
Estou só, e sonho saudade.


E como é branca de graça
A paisagem que não sei,
Vista de trás da vidraça
Do lar que nunca terei.


FERNANDO PESSOA, 30 DE DEZEMBRO DE 1928

quinta-feira, 29 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 93 ANOS


Báquica Medieval

O nosso patrão é pai.
Faz-nos o bem.
Bebamos à saúde dele,
E à nossa também!
Não falte trigo p’ra semente,
Remédio ao doente,
Nem vinho à gente!


O nosso rei é padrinho.
Que Deus o ajude!
Bebamos à saúde dele,
E à nossa saúde!
Não falte caridade a quem deve,
Direito a quem recebe,
Nem vinho a quem bebe!


E vá à saúde da terra.
Que é bem preciso!
Livre-nos Deus, a nós e a ela,
De seca e granizo!
Que há três coisas que Deus proibiu –
A fome, o frio,
E um copo vazio!



FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1918

quarta-feira, 28 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 92 ANOS



Hoje em que nada é português
Salvo a desgraça,
E em que um sopro maligno e soez
Por sobre as nossas almas passa;


Hoje, em que manda quem serviu
Por condição,
E o próprio amor à Pátria é frio
Por Pátria ser um nome vão;


Hoje que, ruído o trono e a glória
Só o Traidor,
O louro e o ouro da vitória
Goza, vil como um vil actor;


Hoje uma voz que se levante
E diga, embora
Chore de ver, chorando cante,
Que vem nascendo além a Aurora,


Diga em palavras já tocadas
De outra Visão,
O Rei, e a vinda das espadas,
E o fim da Horda e da Traição.




FERNANDO PESSOA 28 DE DEZEMBRO DE 1919

terça-feira, 27 de dezembro de 2011

FAZ ESTE MÊS 98 ANOS



Olha, Daisy, quando eu morrer tu hás-de
Dizer aos meus amigos aí de Londres,
Embora não o sintas, que tu escondes
A grande dor da minha morte. Irás de


Londres p’ra York, onde nasceste (dizes…
Que eu nada que tu digas acredito),
Contar àquele pobre rapazito
Que me deu tantas horas tão felizes,


Embora não o saibas, que morri…
Mesmo ele a quem eu tanto julguei amar,
Nada se importará… Depois vai dar


A notícia a essa estranha Cecily
Que acreditava que eu seria grande…
Raios partam a vida e quem lá ande!....


(A bordo do navio em que embarcou para o Oriente,
uns quatro meses antes do “Opiário”, portanto
Dezembro de 1913)

ÁLVARO DE CAMPOS, DEZEMBRO DE 1913

segunda-feira, 26 de dezembro de 2011

FAZ ESTE MÊS 100 ANOS


ANÁLISE


Tão abstracta é a ideia do teu ser
Que me vem de te olhar, que, ao entreter
Os meus olhos nos teus, perco-os de vista,
E nada fica ao meu olhar, e dista
Teu corpo do meu ver tão longamente,
E a ideia do teu ser fica tão rente
Ao meu pensar olhar-te, e ao saber-me
Sabendo que tu és, que, só por ter-me
Consciente de ti nem a mim sinto.
E assim neste ignorar-me a ver-te, minto
À ilusão da sensação, e sonho
Não te vendo, nem vendo, nem sabendo
Que te vejo, ou sequer que sou, risonho
Do interior crepúsculo tristonho
Em que me sinto que sonho o que me sinto sendo.


FERNANDO PESSOA, DEZEMBRO DE 1911

domingo, 25 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 81 ANOS




Aquela loura a olhar a rir
Que tinha o lenço descaído
E cujo andar faz descobrir
O que há por trás do seu vestido,
Aquela loura fez-me mal


E o meu olhar foi casual
É isto. A gente vive asceta
E acha bastante só pensar
E em plena rua vem a seta
Que um corpo é arco de atirar.
Sim, o ascetismo continua
Mas fica essa visão da rua.


E entre mim e o que escrevo passa
O maneio que não olvido,
O olhar rindo com graça
A boca, o lenço descaído,
E já o meu coração não tem
A paz que a ela e a mim convém.


Mas (não desejo exagerar)
Não pesa muito essa visão
Que vem assim arreliar
A minha firme solidão…
O mal que faz consegue conter
Toda a brandura do prazer.


Bem: vamos à filosofia.
A cada qual, inda se o nada
Acata, há sempre uma alegria
Que dá e passa e dói e agrada…
E solidão todos a têm
O caso é que procurem bem.


FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1930

sábado, 24 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 98 ANOS



Todo o meu corpo é o universo inteiro
Meu ser corpóreo é um imenso abismo
Onde, como astros de um (...) local
Universo de sonho e de Real
Enorme seu brilho (...) e passageiro
Sempre que dentro de mim me entrego e cismo.


Quanto eu sou porque sou consciência e alma?
Dentro de mim barca suave e calma
Num mar de Horror
Flutua a Realidade Exterior
Desconhecidos seres de outra matéria
Que os sentimentos ou os corpos, luzem
E o que em mim pensa conduzem
Para uma confusão divina e etéria..


Erro entre abismos dentro do meu ser
Ocupo-me indeterminadamente


FERNANDO PESSOA, 24 DE DEZEMBRO DE 1913

sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

POEMA SEM DATA



EPISÓDIOS


...O tédio dos radidiotas e dos areochatos,
De todo o conseguimento quantitativo desta vida sem qualidade,
A náusea de ser contemporâneo de mim mesmo -
A ânsia de novo novo, de certo verdadeiro,
Da fonte, do começo, da origem.


A pedra no anel errado no teu dedo
Como fulgura na minha memória,
Ó pobre esfinge da aristocracia burguesa conversada em viagem!
Que vagos amores escondias na tua elegância verdadeira
Tão falsos, pobre iludida lúcida,
Encontrada a bordo deste navio, como de todos os navios!


Tomavas cocaína por superioridade ensinada,
Rias dos velhos maçadores menos maçadores que tu,
Pobre criança órfã de mais que pai e mãe.
Pobre-diabo meio flapper, tão ?transtransviada?!
E eu, o moderno que o não sou, eu que consinto
Nos arredores da minha sensibilidade as tendas dos ciganos,
De toda a modernidade papel-moeda;
Eu, incongruente e sem esperanças,
Passageiro como tu no navio, mas mais passageiro que tu,
Porque onde tu és certa eu sou incerto,
Onde tu sabes o que és eu não sei o que sou e sei que não sabes o que és,


E entre as dança tocadas ad nauseam pela banda de bordo
Debruço-me sobre o mar nocturno e tenho saudades de mim.


Que fiz eu da vida?
Que fiz eu do que queria fazer da vida?
Que fiz eu do que podia ter feito da vida?
Serei eu como tu, ó viajante do Anel Anafrodisíaco?
Olho-te sem te distinguir da matéria amorfa das coisas
E rio no fundo da meu pensamento oceânico e vazio.


No quintal da minha casa provinciana e pequena -
Casa como a que têm milhões não com eu no mundo -
Deve haver paz a esta hora, sem mim.
Mas em mim é que nunca haverá paz...
Porque então sorrio eu de ti, viajante superfina?


Ó pobre água-de-colónia da melhor qualidade,
Ó perfume moderno do melhor gosto, em frasco de feitio,
Meu pobre amor que não amo caricatural e bonita!
Que texto para um sermão o que não és!
Que poemas faria um poeta verdadeiro sem pensar em ti!


Mas a banda de bordo estruge e acaba...
E o ritmo do mar homérico trepa por cima do meu cérebro -
Do velho mar homérico, ó selvagem deste cérebro grego,
Com penas na cabeça da alma,
Com argolas no nariz da sensualidade,
E com consciência de meio-manequim de ter aspecto no mundo.


Mas o facto é que a banda de bordo cessa,
E eu verifico
Que pensei em ti enquanto durou a banda de bordo.
No fundo somos todos
Românticos,
Vergonhosamente românticos
E o mar continua agitado e calmo,
Servo sempre da atenção severa da lua,
Como, aliás, o sorriso com que me interrogo
E olho para o céu sem metafísica e sem ti... Dor de corno...


ÁLVARO DE CAMPOS


quinta-feira, 22 de dezembro de 2011

POEMA SEM DATA



POEMA EM LINHA RECTA


Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo.


E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo,
Eu, que tantas vezes não tido paciência para tomar banho,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Eu que tenho sido grotesco, mesquinho e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos aos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedindo emprestado sem pagar,
Eu, que quando tem surgido a hora do soco, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo.


Toda a gente que eu conheço e fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe, - todos eles príncipes - na vida...


Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse, não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os ouço e me falam.
Quem há neste largo mundo quem me confesse que uma vez foi vil? 
Ó príncipes, meus irmãos,


Arre, estou farte de semi-deuses!
Onde é que há gente no mundo?


Então sou só eu que é vil erróneo neste terra?


Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.


ÁLVARO DE CAMPOS

quarta-feira, 21 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 93 ANOS



Por cima das revoltas, das cobiças,
Da incerteza da vida e do escarcéu
De inúteis e constantes injustiças,
O mesmo sol doura no mesmo céu.


Imperturbavelmente, enquanto as gentes
Da terra turvam sua própria vida,
Resultam os arbustos das sementes
Numa continuidade indefinida.


Ah, a lição que, a podermos aprendê-la
Mais do que com a mente, com o instinto!,
Atravessara, qual longínqua vela
O mar do do nosso anseio ermo e indistinto.


Sejamos calmos como a Natureza,
Um pouco indiferentes e fugazes,
Órfãos já da ilusão e da surpresa,
Viúvos do sonho das humanas pazes,


E, abandonando o rio das paixões,
Salvos enfim, na margem concedamos
Aos Deuses sacrifício, e às ilusões
O esquecimento que ao passado damos.


Lembrar! 'Sperar! Ter fé e confiança!
É sempre a mesma inútil ilusão.
As folhas aos meus pés em branda dança
Falam do vento, e as vagas sombras vão


Alongando-se pela terra fora,
Cúmplices exteriores deste vago
Anseio porque a vida nunca fora
Que morre em mim como o tremer de um lago.


FERNANDO PESSOA, 21 DE DEZEMBRO DE1918

terça-feira, 20 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS



Ali não havia electricidade.
Por isso, foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler -
A Bíblia, em português, porque (coisa curiosa!) eram protestantes.
E reli a Primeiro Epístola aos Corintios.
Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A Primeira Epístola aos Coríntios...
Reli-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção chorava dentro de mim...


Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade"...
E a soberana voz manda, do alto dos séculos,
A grande mensagem com que alma fica livre...
"Se eu tivesse a caridade"...
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!


ÁLVARO DE CAMPOS, 20 DE DEZEMBRO DE 1934


segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS



DACTILOGRAFIA


Traço, sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Formo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.


Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.


Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiramente ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte,explícitas de neve,
Eram grandes palmares do sul, opulentos de verdes.


Outrora...


Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.


Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhámos na infância,

A falsa, que é a que vivemos em convivência com os outros,
Que é prática e útil,
Aquela em que acabam por nos meter no caixão.


Na outra não há caixões, nem mortes.
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas a cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos; 
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer.
Neste momento, pela náusea, vivo só na outra...


Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
Se, desmeditando, escuto,
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.


ÁLVARO DE CAMPOS, 19 DE DEZEMBRO DE 1933  

domingo, 18 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS



Símbolos? Estou farto de símbolos...
Uns dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.


Quais símbolos? Sonhos...
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa
E ele rompe das nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...


Bem, vá, que tudo isso seja símbolos...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas este poente precoce e azulando-se menos,
O sol entre farrapos findos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, do outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doira a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde demorava outrora (mora perto) com o namorado que a deixou?
Símbolos?... Não quero símbolos...
Queria só - pobre figura de magreza e desamparo! -
Que o namorado voltasse para a costureira.


ÁLVARO DE CAMPOS, 18 DE DEZEMBRO DE 1934









sábado, 17 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 77 ANOS


Num diminuendo que vem
Desde o princípio do mundo,
Meu coração não contém
Já mais que o seu próprio fundo.

Como quem vem dando esmola
A quem vem sendo roubado,
Neste caminho, que é escola,
Do mundo que nos é dado.

Chego quase nu de mim
À hora de ser quem sou.
Não se é isto o meu fim.
Aqui conheço: aqui estou.

FERNANDO PESSOA, 17 DE DEZEMBRO, DE 1934

sexta-feira, 16 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 98 ANOS



Partem as naus para o Sul
Para o Sul - muito longe -
Importa pouco onde vão...
Leva-as o vento e o azul
Do céu cobre-as de pendão...


Partem as naus...Que doença
Tornou do poente os olhares
Dos que fitam sua ida?...
Triste de quem sonha e pensa...
O ocaso doura a partida...


Em outras terras, talvez,
Gozarei ser quem fui...
Com o sol se vão as naus...
Nos olhos há a viuvez
Dum sonho que se dilui
Em degraus e sem degraus...


Não penses... A noite é branca
No horizonte interrogado...
Flutuam restos de horas...
Quem me dera ser o agrado
Com que sentes o que choras...


Fica no ouvido da vista
O vulto indo das naus...
Partiram à conquista...
Descem, arrastando sedas,
Rainhas pelos degraus...


Não sei bem se penso ou sinto
Se ouço ou esqueço... Deusa órfã
Sentada em tombado plinto
E esperando quem não vem...


Résteas de horizonte bóiam
À tona de quem não sou...
Nunca voltaram as naus...
Qualquer cousa em mim errou...
Ninguém ocupa os degraus...


Antes de eu viver a terra,
Outra seria a tristeza...
- As naus voltarão um dia? -
E nunca chega à alegria!...


Quando vier a manhã
Só nos restará as esp'rança
Que um dia voltem as naus...
Uma péla de criança
Rola lenta pelos degraus...


FERNANDO PESSOA, 16 DE DEZEMBRO DE 1913



quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 79 ANOS



REALIDADE


Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado - ou, pelo menos não dou por isso -
Nesta localidade da cidade...


Há vinte anos!...
O que era eu então? Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...


Vinte anos inúteis (sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil!)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?).


Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que  há vinte anos passava aqui! 




Sim, o mistério do tempo
Sim o não se saber nada.
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, ou outra forma de o dizer...


Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
Hoje se calhar, está o quê?
Podemos  imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...


Houve um dia em que subi  esta rua pensando alegremente  no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua nem no passado penso alegremente.
Quando muito nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
O eu antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E o eu moderno lá desci a rua não imaginando nada.


Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...


Sim, talvez...


ÁLVARO DE CAMPO, 15 DE DEZEMBRO DE 1932







quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

FAZ ESTE MÊS 87 ANOS



Ao longe, ao luar,
No rio uma vela,
Serena a passar,
Que é que me revela?


Não sei, mas meu ser
Tornou-se-me estranho,
E eu sonho sem ver
Os sonhos que tenho.


Que angústia me enlaça?
Que amor não se explica?
É a vela que passa
Na noite que fica.


FERNANDO PESSOA, DEZEMBRO DE 1924

terça-feira, 13 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS





O Mestre sem discípulos
Tinha uma máquina errada,
Que, apesar de ter vários manípulos,
Nunca fazia nada.


Servia de realejo
Quando ninguém a ouviria.
Quando parada, dava ensejo
A ser curiosa, mas ninguém a via.


Minha alma é talvez qualquer cousa
Como essa máquina errada.
É complicada, é caprichosa,
E não serve de nada.


FERNANDO PESSOA, 13 DE DEZEMBRO DE 1933

segunda-feira, 12 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 92 ANOS





Pousa um momento,
Um só momento em mim,
Não só o olhar, também o pensamento.
Que a vida tenha fim
Nesse momento!


No olhar a alma também
Olhando-me, e eu a ver
Tudo quanto de ti teu olhar tem,
A ver até esquecer
Que és tu também...


Só tua alma, nunca tu
Só o teu pensamento
E eu nada, alma sem eu.Tudo o que sou
Ficou com o momento
E o momento acabou!


FERNANDO PESSOA, 12 DE DEZEMBRO DE 1919

domingo, 11 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS



Era uma criança pobre a passar
Tão pequena, e um seu olhar
Pousou em mim, pousou em vão,
Porque eu ia passando, pensando,
Em grandes coisas meditando;
Deixara em casa o coração.


Mas depois acordei, e vi
Que não sentia, que não senti.
Eu creio em Deus e em Cristo, mas não
Tive ali o meu coração.


Por que é que eu penso tanto e ando
Alheio a quanto vai passando
No mundo, e é criança até?
Porque é que eu tenho 'sperança e fé
E não sou nada do que sou?
Porque é que a criança passou
Sem que eu sequer a olhasse bem?
Meu coração não é ninguém!


Ah, o crime de não ter sentido
Naquele olhar pobre e volvido
Para os meus olhos sua dor?
E eu sou poeta e pensador!


FERNANDO PESSOA, 11 DE DEZEMBRO DE 1933

sábado, 10 de dezembro de 2011

FAZ HOJE 78 ANOS





Vão regulares os pequenos do asilo
Como soldados, mas com mais vagar,
Olho-os e em mim não está tranquilo
O que sente por pensar.

Pobres crianças postas em fila
Pelo Destino, quatro a quatro vão,
Dóceis ( Minha alma não está tranquila),
Comuns na sua solidão.


Vendo bem, e à luz do sentimento,
Não sofrerei eu mais que eles? Sim,
Talvez, talvez... Mas neste momento
Não penso em mim -


Penso nos que sem ninguém senão escola
Sem achar amor senão uniforme,
Vão, pedintes que não pedem, sem sacola.
Sós,  juntos, pelo mundo enorme.


Seu passos são leves e breves - são de infância
Sem pais, sem nada, iguais, regulares, vão
E vão calcando ignorantemente, na distância,
O meu coração.


FERNANDO PESSOA, 10 DE DEZEMBRO DE 1933