sábado, 31 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 102 ANOS




Quem sou és tu
Ideia que de mim faço...
Estendo o braço
E o braço é nu
Mesmo de espaço...

Sai desde Deus
Até ser meu...
Em torno há os céus...
E além do céu
Ainda estou eu...

Na noite estendo
Meu braço, parte
Do que vou sendo...
Ei-lo, o estandarte
De Deus...


FERNANDO PESSOA, 31 DE DEZEMBRO DE 1914


sexta-feira, 30 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Não: devagar.
Devagar, porque não sei
Onde quero ir.
Há entre mim e os meus passos
Uma divergência instintiva.

Há entre quem sou e estou
Uma diferença de verbo
Que corresponde à realidade.

Devagar...
Sim, devagar...
Quero pensar no que quer dizer
Este devagar...

Talvez o mundo exterior tenha pressa demais.
Talvez a alma vulgar queira chegar mais cedo.
Talvez a impressão dos momentos seja muito próxima...
Talvez isso tudo...
Mas o que me preocupa é esta palavra devagar...
O que é que tem que ser devagar?
Se calhar é o universo...
A verdade manda Deus que se diga.
Mas ouviu alguém isso a Deus?

ÁLVARO DE CAMPOS, 30 DE DEZEMBRO DE 1934


quinta-feira, 29 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 105 ANOS




O BIBLIÓFILO

Ó ambições!... Como eu quisera ser
Um pobre bibliófilo parado
Sobre o eterno fólio desdobrado
E sem mais na consciência de viver.

Podia a primavera enverdecer
E eu sempre sobre o livro recurvado
Sorriria a um arcaico passado
De uma medieval moça e qualquer.

A vida não perdia nem ganhava
Nada por mim, nenhum gesto meu dava
Com gesto mais ao seu Amor profundo.

E eu lia, a testa contra a luz acesa,
Sem nada querer ser como a beleza
E sem nada ter sido como o mundo.

FERNANDO PESSOA, 29 DE DEZEMBRO DE 1911


quarta-feira, 28 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 97 ANOS




Clarim! Os mortos!

Contra Miguel de Vasconcellos
Republicano!

Eis outra vez o estrangeiro
Em Portugal!
Grita, clarim! Ao Conde Andeiro!
Mas quando a hora do Limoeiro
E do punhal?

Clarim, contra quem deu à França
A pátria e a grei,
Grita com fogo de esperança,
Vozes que chamem
O Rei!

E ao abismo do futuro clama
Por quem enfim
Vier, régia lusitana chama!
Pelo Rei que a Esperança chama,
Grita, clarim!

O Rei, a Lei, dias melhores ...
Não sejam mais, nem já mais vezes
Os marinheiros portugueses
Guarda Vermelha dos Traidores!

Hoje em que nada é português
Salvo a desgraça,
E em que um sopro maligno e soez
Por sobre as nossas almas passa;

Hoje em que manda quem serviu
Por condição,
E o próprio amor à Pátria é frio
Por Pátria ser um nome vão;

Hoje que, ruído o trono e a glória,
Só o Traidor
O louro e o ouro da vitória
Goza, vil como um vil actor;

Hoje uma voz que se levante
E diga, embora
Chore de ver, chorando cante,
Que vem nascendo além a Aurora,

Diga em palavras já tocadas
De outra Visão,
O Rei, e a Vinda das Espadas,
E o fim da Horda e da Traição.

FERNANDO PESSOA, 28 DE DEZEMBRO DE 1919


terça-feira, 27 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 98 ANOS



BÁQUICA MEDIEVAL

O nosso patrão é pai.
Faz-nos o bem..
Bebamos à saúde dele,
E à nossa também!
Não falte trigo p'ra semente,
Remédio ao doente,
Nem vinho à gente!

O nosso rei é padrinho.
Que Deus o ajude!
Bebamos à saúde dele
E à nossa saúde!
Não falte caridade a quem deve,
Direito a quem recebe
Nem vinho a quem bebe!

E vá à saúde da terra,
Que é bem preciso!
Livre-nos Deus, a nós e a ela,
De seca e granizo!
Que há três coisas que Deus proibiu -
A fome, o frio,
E um copo vazio!

FERNANDO PESSOA, 27 DE DEZEMBRO DE 1918


segunda-feira, 26 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 84 ANOS




Na erva brincam meninos.
Cobrem a erva a sorrir.
Mais tarde, ao som leve de sinos,
Já não há-de haver meninos
E a erva é que os há-de cobrir.

Na brisa ligeira os vestidos
Das senhoras a brincar.
Mas, vindo os fados temidos,
Hão-de vestir, sem sentidos,
O solo onde hão-de enterrar.

Na brisa rodam os risos.
São risos de quem existe.
Mas nos seus tempos precisos
Hão-de dormir todos lisos
No mesmo chão verde e triste.

E tudo isso, que faz pena
Afinal só finge ser.
Não creias na erva serena
Nem na má terra morena.
Não chores. Não há morrer.

Todos os meninos ledos
E as senhoras a brincar
São para os deuses brinquedos.
Fazem-nos morrer por medos.
Durmam bem, que hão-de acordar.

FERNANDO PESSOA, 26 DE DEZEMBRO DE 1932


domingo, 25 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 86 ANOS




O sino da igreja velha
Tem um som familiar,
E as casas baixas de telha
Têm telhados a brilhar.
Não sei a que o sino toca
Não sei o que o sino evoca
Meu coração não coloca
As coisas no seu lugar.

Era tão feliz outrora
Que já não sei se era eu.
Aquele que sou agora
Se existe, é porque morreu.
Não tem missa na igreja,
Nem coisa alguma que seja
O que sente ou deseja.
E o sino cessa no céu.

E à missa a que vão crentes
Ou a que vai quem lá vai
Que o sino com sons frequentes
Toca esse som que lhe sai -
Seja o que for vai tocando
E no meu coração brando
Como uma clepsidra soando
Cada som lembrado cai.

FERNANDO PESSOA, 25 DE DEZEMBRO DE 1930


sábado, 24 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 103 ANOS



Todo o meu corpo é o universo inteiro
Meu ser corpóreo é um imenso abismo
Onde, como astros de um (...) local
Universo de sonho e de Real
Enorme seu brilho (...) e passageiro
Sempre que dentro de mim me entrego e cismo.

Quanto eu sou porque sou consciência e alma?
Dentro de mim barca suave e calma
Num mar de Horror
Flutua a Realidade Exterior
Desconhecidos seres de outra matéria
Que os sentimentos ou os corpos, luzem
E o que em mim pensa conduzem
Para uma confusão divina e etéria..

Erro entre abismos dentro do meu ser
Ocupo-me indeterminadamente

FERNANDO PESSOA, 24 DE DEZEMBRO DE 1913


sexta-feira, 23 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 84 ANOS



Sol de inverno triste e frio
Embora claro e coitado,
Ao meu coração vazio
Não dás mais que alheio agrado...

Agrado de se estivesse
Em outra parte, ou de ser
Alguém outrem que tivesse
A dita que não sei ter.

Claro, e um pouco matinal
Ainda que no auge do dia,
Fazes-me bem, fazes mal...
Mal bom, bem sem alegria.

Lá fora talvez onde há
O pleno azul que é o céu,
Alguém por seu te terá.
Eu nem te tenho por meu.

FERNANDO PESSOA, 23 DE DEZEMBRO DE 1931


quinta-feira, 22 de dezembro de 2016

FAZ ESTE MES 92 ANOS



(LÀ BAS)

Dorme enquanto eu velo...
Deixa-me sonhar...
Nada em mim é risonho.
Quero-te para sonho,
Não para te amar.

A tua carne calma
É fria em meu querer.
Os meus desejos são cansaços.
Nem quero ter nos braços
Meu sonho do teu ser.

Dorme, dorme, dorme,
Vaga em teu sorrir...
Sonho-te tão atento
Que o sonho é encantamento
E eu sonho sem sentir.

FERNANDO PESSOA, DEZEMBRO DE 1924


quarta-feira, 21 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 101 ANOS


BRISE MARINE

Eu quero, Ó Vida, que tu acabes
Sem eu acabar...
Há uma ilha verde, meu amor, sabes,
Lá no fim do mar...

De ali nós vemos ao longe as velas
Como esquecendo
E as mãos não sabem já das capelas
Que estão tecendo...

Ali a sombra onde ardem sós
Dourados pomos
E a voz do mar sempre chora em nós
O que nós não fomos.

Aquilo que era os gnomos e as fadas
Já em nós não há...
Todas as princesas de todas as baladas
Morreram já...

Cruza os teus braços sobre o teu seio,
Esquece-me e vê
Só a ilha de verdes encostas no meio
Desse mar, que é

Todos os sonhos e todas as mágoas
Sem que haja a vida...
Ah a ilha verde sorrindo às águas...
E o sonho e a ida...

FERNANDO PESSOA, 21 DE DEZEMBRO DE 1915


terça-feira, 20 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS




Ali não havia electricidade.
Por isso, foi à luz de uma vela mortiça
Que li, inserto na cama,
O que estava à mão para ler -
A Bíblia, em português, porque (coisa curiosa!) eram protestantes.
E reli a Primeiro Epístola aos Corintios.
Em torno de mim o sossego excessivo das noites de província
Fazia um grande barulho ao contrário,
Dava-me uma tendência do choro para a desolação.
A Primeira Epístola aos Coríntios...
Reli-a à luz de uma vela subitamente antiquíssima,
E um grande mar de emoção chorava dentro de mim...

Sou nada...
Sou uma ficção...
Que ando eu a querer de mim ou de tudo neste mundo?
"Se eu não tivesse a caridade"...
E a soberana voz manda, do alto dos séculos,
A grande mensagem com que alma fica livre...
"Se eu tivesse a caridade"...
Meu Deus, e eu que não tenho a caridade!

ÁLVARO DE CAMPOS, 20 DE DEZEMBRO DE 1934


segunda-feira, 19 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 83 ANOS



DACTILOGRAFIA

Traço sozinho, no meu cubículo de engenheiro, o plano,
Firmo o projecto, aqui isolado,
Remoto até de quem eu sou.

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro,
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Que náusea da vida!
Que abjecção esta regularidade!
Que sono este ser assim!

Outrora, quando fui outro, eram castelos e cavalarias
(Ilustrações, talvez, de qualquer livro de infância),
Outrora, quando fui verdadeiro ao meu sonho,
Eram grandes paisagens do Norte, explícitas de neve,
Eram grandes palmares do Sul, opulentos de verdes.

Outrora...

Ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
O tic-tac estalado das máquinas de escrever.

Temos todos duas vidas:
A verdadeira, que é a que sonhámos na infância,
E que continuamos sonhando, adultos num substracto de névoa;
A falsa, que é a que vivemos em convivência com outros,
Que é a prática, a útil,
Aquela em que acabam por nos meter num caixão.

Na outra não há caixões, nem mortes,
Há só ilustrações de infância:
Grandes livros coloridos, para ver mas não ler;
Grandes páginas de cores para recordar mais tarde.
Na outra somos nós,
Na outra vivemos;
Nesta morremos, que é o que viver quer dizer;
Neste momento, pela náusea, vivo na outra...

Mas ao lado, acompanhamento banalmente sinistro.
Ergue a voz o tic-tac estalado das máquinas de escrever.

ÁLVARO DE CAMPOS, 19 DE DEZEMBRO DE 1933


domingo, 18 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 82 ANOS



Símbolos? Estou farto de símbolos...
Uns dizem-me que tudo é símbolo.
Todos me dizem nada.

Quais símbolos? Sonhos...
Que o sol seja um símbolo, está bem...
Que a lua seja um símbolo, está bem...
Mas quem repara no sol senão quando a chuva cessa
E ele rompe das nuvens e aponta para trás das costas
Para o azul do céu?
Mas quem repara na lua senão para achar
Bela a luz que ela espalha, e não bem ela?
Mas quem repara na terra, que é o que pisa?
Chama terra aos campos, às árvores, aos montes
Por uma diminuição instintiva,
Porque o mar também é terra...

Bem, vá, que tudo isso seja símbolos...
Mas que símbolo é, não o sol, não a lua, não a terra,
Mas este poente precoce e azulando-se menos,
O sol entre farrapos findos de nuvens,
Enquanto a lua é já vista, mística, do outro lado,
E o que fica da luz do dia
Doira a cabeça da costureira que pára vagamente à esquina
Onde demorava outrora (mora perto) com o namorado que a deixou?
Símbolos?... Não quero símbolos...
Queria só - pobre figura de magreza e desamparo! -
Que o namorado voltasse para a costureira.

ÁLVARO DE CAMPOS, 18 DE DEZEMBRO DE 1934


sábado, 17 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 104 ANOS



A barca dos meus sentidos
Voga, com remos perdidos,
Por este mar sem ruídos -

Por este mar sem plagas
Cujas doloridas vagas
Ó tédio vão, tu afagas;

À sombra da minha prece
Minha alegria fenece
E além o sol da alma desce.

Crepúsculo interior
Alma sem nexo e sem cor
Sem ter vida nem amor...

Voga sem remos nem velas,
Por este mar sem procelas,
Sob este céu sem estrelas,...

Voga com perdidos remos
Por este mar onde temos
(...) que perdemos.

Cinza de ociosa incerteza
Que quer seja ou não seja
E não usa ter tristeza;

Que não tem força p'ra ter
Tédio que seja viver
E nem anseia morrer.





FERNANDO PESSOA, 17 DE DEZEMBRO DE 1912


sexta-feira, 16 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 103 ANOS



Partem as naus para o Sul
Para o Sul - muito longe -
Importa pouco onde vão...
Leva-as o vento e o azul
Do céu cobre-as de pendão...

Partem as naus...Que doença
Tornou do poente os olhares
Dos que fitam sua ida?...
Triste de quem sonha e pensa...
O ocaso doura a partida...

Em outras terras, talvez,
Gozarei ser quem fui...
Com o sol se vão as naus...
Nos olhos há a viuvez
Dum sonho que se dilui
Em degraus e sem degraus...

Não penses... A noite é branca
No horizonte interrogado...
Flutuam restos de horas...
Quem me dera ser o agrado
Com que sentes o que choras...

Fica no ouvido da vista
O vulto indo das naus...
Partiram à conquista...
Descem, arrastando sedas,
Rainhas pelos degraus...

Não sei bem se penso ou sinto
Se ouço ou esqueço... Deusa órfã
Sentada em tombado plinto
E esperando quem não vem...

Résteas de horizonte bóiam
À tona de quem não sou...
Nunca voltaram as naus...
Qualquer cousa em mim errou...
Ninguém ocupa os degraus...

Antes de eu viver a terra,
Outra seria a tristeza...
- As naus voltarão um dia? -
E nunca chega à alegria!...

Quando vier a manhã
Só nos restará as esp'rança
Que um dia voltem as naus...
Uma péla de criança
Rola lenta pelos degraus...

FERNANDO PESSOA, 16 DE DEZEMBRO DE 1913


quinta-feira, 15 de dezembro de 2016

FAZ HOJE 84 ANOS



REALIDADE

Sim, passava aqui frequentemente há vinte anos...
Nada está mudado - ou, pelo menos não dou por isso -
Nesta localidade da cidade...

Há vinte anos!...
O que era eu então? Ora, era outro...
Há vinte anos, e as casas não sabem de nada...

Vinte anos inúteis (sei lá se o foram!
Sei eu o que é útil ou inútil!)...
Vinte anos perdidos (mas o que seria ganhá-los?).

Tento reconstruir na minha imaginação
Quem eu era e como era quando por aqui passava
Há vinte anos...
Não me lembro, não me posso lembrar.
O outro que aqui passava então,
Se existisse hoje, talvez se lembrasse...
Há tanta personagem de romance que conheço melhor por dentro
Do que esse eu-mesmo que há vinte anos passava aqui!

Sim, o mistério do tempo
Sim o não se saber nada.
Sim, o termos todos nascido a bordo.
Sim, sim, ou outra forma de o dizer...

Daquela janela do segundo andar, ainda idêntica a si mesma,
Debruçava-se então uma rapariga mais velha que eu, mais lembradamente de azul.
Hoje se calhar, está o quê?
Podemos imaginar tudo do que nada sabemos.
Estou parado física e moralmente: não quero imaginar nada...

Houve um dia em que subi esta rua pensando alegremente no futuro.
Pois Deus dá licença que o que não existe seja fortemente iluminado.
Hoje, descendo esta rua nem no passado penso alegremente.
Quando muito nem penso...
Tenho a impressão que as duas figuras se cruzaram na rua, nem então nem agora,
Mas aqui mesmo, sem tempo a perturbar o cruzamento.
Olhámos indiferentemente um para o outro.
O eu antigo lá subi a rua imaginando um futuro girassol.
E o eu moderno lá desci a rua não imaginando nada.

Talvez isso realmente se desse...
Verdadeiramente se desse...
Sim, carnalmente se desse...

Sim, talvez...

ÁLVARO DE CAMPOS, 15 DE DEZEMBRO DE 1932


quarta-feira, 14 de dezembro de 2016

POEMA SEM DATA




Nunca conheci quem tivesse levado porrada.
Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. 

E eu, tantas vezes reles, tantas vezes porco, tantas vezes vil,
Eu tantas vezes irrespondivelmente parasita,
Indesculpavelmente sujo.
Eu, que tantas vezes não tenho tido paciência para tomar banho,
Eu, que tantas vezes tenho sido ridículo, absurdo,
Que tenho enrolado os pés publicamente nos tapetes das etiquetas,
Que tenho sido grotesco, mesquinho, submisso e arrogante,
Que tenho sofrido enxovalhos e calado,
Que quando não tenho calado, tenho sido mais ridículo ainda;
Eu, que tenho sido cómico às criadas de hotel,
Eu, que tenho sentido o piscar de olhos dos moços de fretes,
Eu, que tenho feito vergonhas financeiras, pedido emprestado sem pagar,
Eu, que, quando a hora do soco surgiu, me tenho agachado
Para fora da possibilidade do soco;
Eu, que tenho sofrido a angústia das pequenas coisas ridículas,
Eu verifico que não tenho par nisto tudo neste mundo. 

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...
Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos, 
Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo? 
Então sou só eu que é vil e erróneo nesta terra? 
Poderão as mulheres não os terem amado,
Podem ter sido traídos - mas ridículos nunca!
E eu, que tenho sido ridículo sem ter sido traído,
Como posso eu falar com os meus superiores sem titubear?
Eu, que tenho sido vil, literalmente vil,
Vil no sentido mesquinho e infame da vileza.

ÁLVARO DE CAMPOS, SEM DATA